Presença Ética-2002-ANO 2-VOL. 2.docx
APRESENTAÇÃO
Este é o segundo número da Revista “Presença Ética” que tem como tema: Ética, Política e Emancipação Humana. A intenção dos (as) autores (as) é suscitar o debate sobre a ética, enquanto dimensão da sociabilidade humana, ultrapassando a concepção conformista que permeia a discussão atual sobre “ética na política”. Os artigos buscam elucidar a premência de uma visão da subjetividade em sua inter-relação com a objetividade. Em síntese, trata-se de pensar que o indivíduo social é resultante das circunstâncias históricas, mas que essas mesmas circunstâncias são frutos da ação humana. Neste sentido, a política não pode ser vista apenas como expressão da relação de dominação de uma classe sobre outra, mas também como mediação para o processo de construção de uma sociedade emancipada.
Os artigos que compõem este número de “Presença Ética” buscam elucidar a importância da construção de valores novos, visto que o individualismo que está subjacente à lógica capitalista não pode dar sustentação a uma sociedade livre da dominação e da exploração. Dentro desta mesma ótica, busca-se estabelecer uma postura crítica diante do engodo das teorias éticas contemporâneas que, se por um lado anunciam, nos seus discursos, a perspectiva da justiça, da liberdade, por outro, contradizem-se quando insistem em defender as relações sociais que fundamentam o modo de produção capitalista.
Esperamos com isto influir no processo de emancipação humana pelo qual almejamos, considerando que todos somos sujeitos históricos e, portanto, responsáveis tanto pela crítica contundente, quando pela redefinição da história.
Agradecemos à coordenação da pós-graduação em Serviço Social da UFPE, em especial à Profª Ana Elizabete Mota, pelo incentivo a esta iniciativa que se materializou, também, pelo apoio financeiro. Agradecemos, também, aos (às) colaboradores (as); aos membros do Conselho Editorial e aos que contribuíram com seus artigos. Esperamos consolidar essas novas parcerias nas próximas edições.
Comissão Editorial
Ética e capitalismo
Ivo Tonet*
Introdução
Nunca, como hoje, se enfatizou tanto a importância dos direitos humanos, a necessidade do respeito à vida humana, de uma relação harmônica com a natureza, de uma ação política eticamente orientada, de uma recuperação dos verdadeiros valores. De outro lado, nunca foi tão disseminada a consciência de que há uma enorme confusão na área dos valores. Em todas as dimensões da vida social, valores que antes eram considerados sólidos e estáveis sofreram profundos abalos. Há uma sensação geral de desnorteamento e de insegurança. Parece que, de uma hora para outra, a sociedade se transformou num vale-tudo, onde não se tem mais certeza do que é bom ou mau, correto ou incorreto. E, sobretudo, parece que os valores que mais se impõe, são os de caráter, individualista, imediatista e utilitário, chegando, muitas vezes, ao cinismo mais aberto. Aspira-se a um mundo justo, solidário e humano, mas parece que estes valores se tornam cada vez mais distantes.
O objetivo desse texto não é o de refletir sobre o conjunto das questões implicadas no título acima. Pretendemos abordar apenas um aspecto. Trata-se da fratura, cada vez maior, que se está abrindo no mundo de hoje, entre a realidade objetiva e os valores éticos proclamados.
Que há uma dissociação entre dois momentos, na sociedade capitalista, é algo da natureza desta forma de sociabilidade. Que hoje, com as possibilidades que estão à disposição da humanidade para superá-la ela esteja se tornando cada vez maior, eis o que move a nossa reflexão.
* Prof. Do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas. Doutor em Educação pela UNESP – Marília.
- 1. Um período de decadência
Para aqueles que admitem que as classes sociais são os sujeitos fundamentais (embora de modo nenhum únicos) da história, o ano de 1848 marca o início do período de decadência da sociabilidade burguesa. Isto porque foi neste ano que a burguesia derrotou um conjunto de tentativas feitas pela classe trabalhadora de vários países europeus, para eliminar, pela raiz, a exploração do homem pelo homem. Sem dúvida esta não foi uma vitória definitiva – mesmo porque isto é algo impossível – do capital sobre o trabalho. Contudo, esta vitória, de grande importância exatamente porque se deu sobre a classe trabalhadora dos países mais desenvolvidos, permitiu à burguesia consolidar plenamente o seu poder econômico e político. Viu, então, abertas diante de si as portas para um desenvolvimento extraordinário das forças produtivas e para a configuração de uma ordem social à sua imagem e semelhança. Contudo, isto também significou, como foi muito bem expresso pelo lema positivista “ordem e progresso”, que o desenvolvimento da humanidade, daí para adiante, se faria tendo por base a propriedade privada e, portanto, a continuidade da exploração do homem pelo homem.
Como conseqüência, aquele impulso progressista, que levava a burguesia, desde o seu nascimento, a demolir as barreiras que a ordem feudal colocava ao desenvolvimento da humanidade, agora se transformava em uma força conservadora.
Naquele primeiro momento, em sua luta contra a ordem feudal, a burguesia foi responsável pelo impulso conferido ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia; pela supressão dos privilégios feudais e, portanto, pela ênfase na igualdade de todos os indivíduos; pela valorização da razão e da atividade humanas; pela intensificação do caráter universal da humanidade e pela ampliação do processo de individuação.
Tudo isso, não obstante ter sido realizado a um custo altíssimo de violência e exploração, abriu caminho para a elevação de toda a humanidade a um novo patamar de existência. Neste sentido, vale a pena ressaltar o caráter decisivo que a revolução industrial (1760-1830), capitaneada pela burguesia, teve para o desenvolvimento da humanidade. Com a revolução industrial, a humanidade viu abrir-se, pela primeira vez na sua história, a possibilidade de produzir riqueza suficiente para satisfazer as necessidades de todos os homens. Contudo, foi exatamente o enorme desenvolvimento das forças produtivas, que se iniciou a partir dela, que tornou claro, desde então, que a desigualdade social, como todo o seu cortejo dos chamados “problemas sociais”, já não era uma questão de escassez de conhecimentos, de recursos, de tecnologia ou de bens, mas um problema de exclusiva e total responsabilidade das relações entre os próprios homens.
Este é exatamente o fundamento da decadência desta forma de sociabilidade. Uma ordem social que, tendo alcançado a possibilidade de criar riquezas capazes de satisfazer as necessidades de todos, vê-se impossibilitada de atender essa exigência. E que, para manter-se em funcionamento, precisa impedir, de maneira cada vez mais aberta e brutal, o acesso da maior humanidade toda no sentido de uma elevação, cada vez mais ampla e profunda, do seu padrão de ser (ontológica e não apenas material e empiricamente entendido), o que se vê é uma intensa e crescente degradação da vida humana.
- 2. O que é decadência
Para evitar mal-entendidos, vale a pena clarificar um pouco esse conceito. Quando falamos em decadência não estamos afirmando que, de 1848 para cá, as coisas se tornaram piores em todos os aspectos. Tal afirmação não faria sentido, uma vez que ela é contraditada pelos próprios fatos.
Na esteira marxiano-lukacsiana, entendemos que a sociedade é um complexo de complexos. Vale dizer, uma totalidade (sempre em processo), articulada e formada por inúmeras partes. Embora matrizadas ontologicamente pelo trabalho, cada uma destas partes tem uma especificidade própria e uma autonomia relativa. Deste modo, a natureza delas e a função que exercem na reprodução do ser social são elementos importantes para o seu próprio desenvolvimento. Não há, pois, um evolver uniforme e homogêneo do conjunto do ser social. O mesmo vale para o processo que se dá no interior de cada uma das partes que o compõem. Poderá haver avanços em certos aspectos ao mesmo tempo que, em outros, poderá haver recuos.
Contudo, assim como o desenvolvimento da totalidade é o momento predominante em relação ao desenvolvimento de cada uma das partes, assim também podemos dizer que a direção – positiva ou negativa – que a totalidade toma é um dos critérios mais importantes para aferir o caráter de ascenso ou decadência de uma forma de sociabilidade. A questão, assim, é: considerado o patamar geral atingido pela humanidade, qual é a tendência geral em relação aos indivíduos singulares? A apropriação, ampla e profunda, do patrimônio acumulado; a possibilidade dos indivíduos, por meio dessa apropriação, realizarem largamente as suas potencialidades ou a exclusão e/ou o acesso limitado, estreito, unilateralizado e deformado? Uma vida cada vez mais digna e autenticamente humana ou uma vida sempre mais pobre e esvaziada de sentido?
Mas, há um outro critério, também da maior importância, para esse julgamento. Trata-se da resposta à pergunta: o que é que nos permite distinguir o que é positivo e o que é negativo no processo geral de tornar-se homem do homem? Evidentemente, esta resposta só pode ser dada na medida que definirmos quais são as linhas essenciais deste processo de tornar-se homem do homem.
Sem podermos nos alongar aqui a respeito dessa questão, e tomando como base o pensamento marxiano-lukacsiano, diremos, resumidamente, o que segue. Partindo do trabalho como momento fundante do ser social, podemos constatar que ser homem é (obviamente de modo sempre processual) ser criativo, social, consciente, livre e universal. De modo que o que permitir ao homem expandir, cada vez mais, as suas potencialidades, construir um mundo adequado a uma vida digna, criar bens que possam atender as suas necessidades, apropriar-se (cada indivíduo) do patrimônio – material e espiritual – comum ao gênero humano, participar, de modo cada vez mais consciente, do processo histórico, sendo seu sujeito efetivo, terá um caráter positivo. Tudo que se transformar em obstáculo a esse andamento, terá um caráter negativo.
Se articularmos esses dois critérios, poderemos com facilidade confirmar, sem cair numa homogeneização simplificadora, a decadência que marca a atual forma de sociabilidade.
Sem dúvida, não há como negar que, de 1848 para cá, houve um enorme desenvolvimento das forças produtivas. E que houve inúmeros avanços científicos e tecnológicos, que resultaram no melhoramento da vida de um número significativo de pessoas.
Vale ressaltar, contudo, já aqui, que não é por acaso que é no conhecimento e na transformação da natureza ou daqueles setores sociais que mais podem contribuir para a reprodução do capital que se fizeram sentir esses progressos. Exatamente porque aí se trata dos aspectos que mais contribuem para a produção de mercadorias, o que é uma exigência da própria dinâmica interna do capital.
Contudo, também não há como negar que, mesmo esse desenvolvimento científico e tecnológico não tem contribuído para melhorar a vida de toda a humanidade. Mas, não só não tem contribuído para melhorar como, sob certos aspectos, tem sido um fator de degradação profunda da vida humana. Basta lembrar dos avanços no campo da medicina. Sob o aspecto científico e tecnológico são enormes, enquanto sob o aspecto da socialização desses benefícios as coisas andam em sentido contrário.
O agravamento crescente dos problemas sociais de toda ordem está aí para confirmar que a dinâmica desta ordem social não vai no sentido de ampliar, mas diminuir – relativamente – o universo daqueles que têm acesso ao patrimônio da humanidade. Se houve, ao longo desses últimos cento e cinqüenta anos, ilhas e períodos de elevação do padrão de vida (sem levar em conta que mesmo esse conceito de padrão de vida é muito questionável), da maioria da população de alguns países (welfare state), também houve, do ponto de vista do conjunto espaço-temporal da humanidade, um crescente retrocesso.
Mas, não é apenas no âmbito da produção e do acesso à riqueza material que se verifica essa decadência. É na degradação do conjunto da vida humana, na crescente mercantilização de todos os aspectos da realidade social; na transformação das pessoas em meros objetos, e mais ainda, descartáveis; no individualismo exacerbado; no apequenamento da vida cotidiana, reduzida a uma luta inglória pela sobrevivência; no rebaixamento do horizonte da humanidade que leva a aceitar, com bovina resignação, a exploração do homem pelo homem sob a forma capitalista, como patamar mais elevado da realização humana.
Vale a pena relembrar, aqui, o que dissemos acerca da importância da revolução industrial para a história da humanidade. Ela significou a possibilidade de a humanidade produzir riquezas suficientes para atender as necessidades de toda a humanidade. Se, apesar disso, se verifica uma tendência geral no sentido da degradação da vida humana, então pode-se dizer que estamos vivendo um momento de decadência e não de progresso.
Sabemos que a exploração do homem pelo homem é da natureza do capitalismo. E que, portanto, a desumanização da vida humana está sempre presente, independente de qual seja o momento histórico. O que distingue, porém, o primeiro (primórdios até 1848) do segundo período do mundo moderno é que no primeiro a burguesia representava, ainda que apenas de modo limitado, os interesses de toda a humanidade. Ao contrário, no segundo seus interesses de classe particular colocam-se inteiramente em primeiro plano. Obviamente, em detrimento do restante da humanidade. Esse predomínio dos interesses dessa classe particular é o responsável maior pela crescente decadência – em todos os setores – dessa forma de sociabilidade.
Em resumo, esta forma de sociabilidade já não tem mais como abrir novos horizontes para a totalidade da humanidade. A concentração brutal da riqueza em pouquíssimas mãos e o cinismo dos que a detêm são apenas os aspectos mais visíveis desse fato.
Contudo, de algumas décadas para cá, este segundo momento (de 1848 a nossos dias), o da decadência, ganhou contornos muito particulares. Com a eclosão da crise, não há mais conjuntural, mas agora estrutural, do capital, aquilo que era um processo mais ou menos lento de decadência se tornou uma perspectiva de catástrofe iminente. Não no sentido da implosão imediata do sistema, mas no sentido de que os caminhos pelos quais a lógica do capital está conduzindo a humanidade colocam claramente em perigo a própria sobrevivência desta. A devastação da natureza e a violência, sob todas as formas, cuja matriz é a absurda concentração da riqueza em poucas mãos, levarão, fatalmente, a humanidade pelo caminho da sua destruição. Não é preciso citar os inúmeros estudos que comprovam essa afirmação.
Ora, é verdade que nenhuma forma de vida assiste passivamente a sua morte. Não enquanto puder lutar contra ela. Também é verdade que sua defesa face ao perigo implicará na ativação de todos os meios de que possa dispor. É exatamente o que acontece com a forma de vida burguesa. Sentido-se ameaçada, lança mão de todos os meios para defender a sua existência. Mesmo que isso signifique a barbarização mais brutal de toda a humanidade. Nesse sentido, o exemplo mais estarrecedor não é tanto o fato do atual presidente dos Estados Unidos invocar, descaradamente, a lei da força nas relações internacionais, mas o fato de seu cinismo ser largamente aceito sem grandes resistências.
- 3. A fratura entre os valores e a realidade objetiva
Diante desse quadro assustador, o que se passa no terreno dos valores? Mesmo entre a maioria daqueles que se pretendem comprometidos com a construção de uma ordem social justa? Uma dissociação cada vez maior entre o discurso e a realidade objetiva. Enquanto esta última vai no sentido acima apontado, de um aprofundamento na degradação da vida humana, o primeiro vai para o lado oposto: ou do apelo moralizante (solidariedade, ajuda, preocupação com o bem comum, etc.) ou das tentativas de fundar uma ética capaz de fazer frente a essa avalanche devastadora. Não é outro o sentido das tentativas em curso, tanto no sentido de exigir um comportamento ético no campo da política, quanto no sentido de buscar novos fundamentos para a justiça social ou, então, de alcançar um impossível desenvolvimento sustentável, que tenha entre seus pilares o objetivo de uma vida realmente digna para todos.
A conseqüência disto é uma fratura cada vez mais ampla entre os valores éticos proclamados e a lógica da realidade objetiva. Concretamente: uma é a lógica do ser, outra a lógica do dever-ser. A um ser que vai no sentido de tratar tudo, inclusive os indivíduos, como coisas, opõe-se o dever de tratar os indivíduos como fim. A um ser que se move no sentido cada vez mais individualista, opõe-se o dever de ser solidário. A uma realidade objetiva que está nucleada, cada vez mais, pelo interesse privado, se opõe o dever de preocupar-se com o interesse público, com o bem comum. A uma lógica que, por exigência da reprodução do capital, caminha sempre mais no sentido da devastação e da degradação da natureza, opõe-se o dever de ter maior respeito pela natureza. E assim por diante. Estamos diante de uma clara visão idealista da problemática dos valores. O que leva a pensar, por exemplo, que se nos conscientizarmos de que temos de ser solidários, justos e pacíficos, o mundo se tornará ipso facto solidário, justo e pacífico.
No entanto, por incrível que pareça, essa relação não harmônica entre ser e dever-ser é perfeitamente coerente mais ainda, é a única maneira de articular esses dois momentos numa forma de sociabilidade que, por sua própria natureza, impossibilita uma articulação harmônica.
Consideremos: qual é o valor supremo que rege esta forma de sociabilidade? Parece-nos que não há dúvida de que é a produção de mercadorias e, portanto, a reprodução do próprio capital. Qual é o valor supremo proclamado pela ética dominante? A vida humana, na sua forma mais digna possível. É evidente que entre esses dois valores há uma incompatibilidade radical. A produção de mercadorias implica, necessariamente, a transformação do próprio homem em mercadoria e, portanto, a manutenção da exploração do homem pelo homem. A conseqüência disto é a completa destituição do sentido mais genuíno da vida humana.
Ora, admitido esse pressuposto, a única possibilidade de fundar uma ética é a dissociação entre o reino da realidade objetiva e o reino dos valores. Estes, transcendentalmente fundados, teriam por missão orientar a transformação da realidade.
Foi este o grande feito de Kant e é por isso que ele é, ao nosso ver, o autor que deu a contribuição mais genial, no terreno da ética, mas não só, para a sustentação dessa ordem social. E não é por outro motivo que todos os pensadores pós-Kant, que não questionam radicalmente o capital, têm retornado a esse mesmo autor como fonte inspiradora. É o caso de H. Arendt, de Rawls, de Habermas e outros. O que Kant fez foi elaborar uma ética fundada transcendentalmente e não de modo objetivo e imanente. Com isso, ele apenas realizou, de modo intelectual, aquilo que é uma exigência do processo social regido pelo capital. Com efeito, a matriz ontológica do processo social é inteiramente regida pelo princípio do interesse particular. Coisa, aliás, reconhecida pelo próprio Kant quando diz que o homem tem uma natureza “socialmente insociável”. Ao contrário, o universo dos valores pretende-se voltado para o interesse universal. Salta aos olhos a radical inconciliabilidade desses dois universos. Como, ao nosso ver, o primeiro é o fundamento do ser social na sua totalidade e, portanto, também do universo dos valores éticos, então o segundo só pode comparecer sob a forma de uma dimensão abstrata. Vale dizer, o universo dos valores éticos só pode aparecer como um discurso vazio, que jamais pode ser efetivado praticamente. Trata-se, então, de um discurso vazio, mas socialmente necessário. Como argumento adicional, este discurso vazio se apresenta com um caráter de “princípio regulador”, ou seja, como algo necessário, mas configurado como um horizonte que jamais pode ser alcançado.
- 4. O alargamento da fratura
Já vimos como é da natureza da sociabilidade capitalista a existência de uma fratura insuperável entre a lógica da realidade objetiva e o universo dos valores. E que essa fratura existiu e existe mesmo nos espaços e nos momentos menos brutais do capitalismo. Porém hoje a crise estrutural do capital confere a esse fato um caráter novo. Ou seja, essa dissociação não só existe, como tende a se tornar cada vez maior e a assumir um caráter sempre mais perverso. Como falar em respeito à vida, em tratar as pessoas como fins e não como meios, em preocupação com a natureza e o bem-comum, em desenvolvimento integral do homem quando a realidade objetiva se encaminha a passos largos em rumos totalmente opostos?
Argumenta-se, muitas vezes, que nunca, como hoje, houve tanta preocupação com os direitos humanos, com as questões ecológicas, com a problemática ligada à qualidade de vida e ao espaço público. Isso é verdade. Contudo, em vez de tomar isso como sintoma de decadência, considera-se como uma demonstração de positividade. Ao contrário, ao nosso ver, a ênfase em todos esses aspectos é uma clara demonstração de decadência dessa forma de sociabilidade. Ela constitui a expressão de que quanto mais a realidade objetiva evolui no sentido da desumanização, mais o universo dos valores ganha um estridente caráter de discurso vazio e até de moralismo barato. Ou seja, quanto menos se vai no sentido de mudar a realidade objetiva, tanto mais se acentua o discurso sobre a necessidade de mudar a realidade. Como esse discurso não aponta em direção às causas mais profundas – a própria existência do capital -, mas apenas em direção aos efeitos – o neoliberalismo -, ele se perde no vazio. Se forem necessários exemplos, veja-se a reunião realizada recentemente na África do Sul, denominada Rio+10, sobre questões ambientais. A constatação, quase unânime, foi de que não só não houve avanços significativos, como houve, de modo geral, um retrocesso muito claro. Ditado por quem? Pela lógica de reprodução do capital.
Talvez um dos aspectos mais trágicos dessa decadência seja o fato de que a oposição a essa ordem social, que impossibilita uma vida efetivamente digna, se expresse, no universo dos valores, sob uma forma que, não obstante a intenção em contrário, é aquela que interessa à reprodução dessa própria ordem social. Vale a pena acentuar: essa ética abstrata, não só não se opõe à desumanização da vida, como é um elemento funcional a ela. Isso pode parecer absurdo. Como, então, a ênfase naqueles valores universais acima mencionados pode contribuir para a desumanização da vida humana? É fácil demonstrar isso. A lógica do capital, tomada na sua pura dimensão econômica, é tão perversa que, em pouco tempo, levaria à destruição do próprio capital. Como se sabe, o “desejo” mais profundo do capital, o seu “sonho dourado” seria destruir aquele que o produz, mas é necessariamente seu antagonista, o próprio trabalhador. Além das lutas dos que se opõem ao capital, são as outras dimensões sociais, entre as quais a ética, abstratamente posta, que impedem que essa lógica se realize de modo direto e brutal. Constituem elas uma espécie de freio, que, como no caso de veículo, não impede que este se mova, mas lhe impõem um certo ritmo. Contudo, à diferença dos freios do veículo, que podem alterar radicalmente o seu movimento e a sua direção, esses freios, por terem naquela lógica e o seu fundamento, não podem impedir nem mudar integralmente esse movimento desumanizador. Quando muito, contribuem para amenizar, e mesmo assim de forma bastante tópica e epidérmica, os aspectos mais gravosos e perversos. Ora, é exatamente nisso que reside a sua funcionalidade para a reprodução da ordem do capital. Permitir que ela funcione sem perder a sua natureza essencial, mas também sem deixar que as suas contradições internas emerjam com toda a sua força.
- 5. É sanável a fratura?
Milhões de pessoas de todos os quadrantes e de todos os níveis intelectuais, acham que é possível realizar o impossível, mas não o possível. Desejando, no entanto, que esse último se torne realidade. Eis um dos aspectos mais trágicos desse momento de decadência. O que é possível? Construir uma autêntica comunidade humana, um mundo onde os valores universais tenham realidade objetiva sem questionar a lógica do capital. Portanto, humanizar o capital. Ora, sob esta lógica nem mesmo um mundo “mais justo, mais livre e mais igualitário” é possível, dada a dinâmica intrínseca do próprio capital. O que é possível? Erradicar o capital e então construir uma autêntica comunidade humana, na qual os indivíduos possam transformar em prática cotidianaos valores universais, encontrando nisso a realização de uma vida verdadeiramente digna e cheia de sentido.
Como se pode ver, a distinção que fizemos, aqui, foi entre possível e impossível e não entre fácil e difícil ou entre mediato e imediato. O que não pode ser realizado tem a aparência de factível, ao passo que o que não pode ser realizado (embora seja apenas uma possibilidade), aparece como não efetivável. Parece mais fácil realizar o que é impossível e mais difícil realizar o que é possível. Como se explica isso? Em primeiro lugar, porque há uma inversão de sentido entre o primeiro e o segundo. O que é intrinsecamente impossível – a humanização do capital – é visto, dado o desconhecimento de sua lógica mais profunda e o peso esmagador de sua realidade imediata, como realizável, ainda que de modo lento e gradual. O que é possível – a erradicação do capital – é tido, dado o desconhecimento da lógica mais profunda e imanente do processo histórico e a enorme dificuldade de visualizar as mediações necessárias, – como de fato irrealizável. Em segundo lugar, por que no primeiro caso, a ação imediata e tópica pode mostrar um sucesso visível. Como, porém, a conexão dessa ação com o objetivo maior pode ser apenas suposta, mas não demonstrada porque, de fato, não existe, sua possibilidade passa, imperceptível e sorrateiramente, para o âmbito da fé e não da racionalidade. Non intelligo, sed credo (não entendo, mas acredito). Ou seja, não posso demonstrar a relação que existe entre o que estou fazendo e a humanização do capital, mas mesmo assim acredito!
No segundo caso, uma ação imediata e tópica, que pretenda estar voltada para a alteração radical da atual ordem social, não apresenta, nesse momento histórico, nenhum sucesso visível. E sabe-se como é importante sentir que se está realizando algo de positivo. A conexão pode existir, mas é praticamente impossível de ser percebida. Só um conhecimento profundo da realidade social, orientado por uma perspectiva teórica revolucionária, que permita apreender o seu movimento integral e não paenas superficial ou parcial, pode, de algum modo, possibilitar a captura dessa conexão. E mesmo assim, sem nenhuma garantia sólida, até por que se trata de uma questão eminentemente prática, ou seja, que diz respeito ao movimento da realidade social como totalidade. Daí porque, aqui, a questão se coloca assim: non intelligo et non credo (não entendo e não acredito). Vale dizer, não compreendo que se possa fundamentar a possibilidade de erradicação do capital e por isso não creio nisso.
Baseados numa compreensão ontológica do ser social e numa análise da sociedade capitalista, cremos que é possível afirmar, com tranqüilidade, que a dissociação entre a realidade objetiva e o mundo dos valores é superável. Mas, somente na medida em que houver uma radical transformação da atual ordem social. Ou seja, na medida em que, eliminado o capital, com todas as suas decorrências, for instaurada uma outra forma de sociabilidade fundada no trabalho livre. Somente a superação da propriedade privada e a instauração de uma forma de sociabilidade cujo fundamento seja o trabalho associado possibilitará ao discurso ético deixar de ser apenas um discurso abstrato para se tornar vida real.
Considerando, pois, a impossibilidade de um mundo verdadeiramente humano sob a regência do capital e a possibilidade desse mundo para além dele, toda discussão sobre valores éticos tem que, necessáriamente, ter como ponto de partida o questionamento radical do capital, da propriedade privada. Toda lógica do capital é o fundamento ontológico dessa forma de sociabilidade, é uma discussão estéril, falseadora e fadada ao fracasso. É compreensível que os gregos, medievais e modernos pré-1848 buscassem como viver justamente numa sociedade injusta (isto é, numa sociedade fundada sobre a propriedade privada). Isto por que eles não tinham como compreender a matriz que se constituía no fundamento da cidade injusta e muito menos a conexão ontológica entre essa matriz (o trabalho sob a forma de propriedade privada) e o universo dos valores éticos. Mas, depois que Marx desvendou estas questões não há mais como deixar de tomá-las como ponto de partida. Qualquer exemplo mostra isso com meridiana clareza. Basta um: como discutir acerca do respeito à vida humana, acerca de uma vida realmente digna e cheia de sentidos em por em questão o ato fundante dessa sociedade, responsável final por tornar esse respeito e essa vida impossíveis?
De modo que antes de qualquer discussão ética é preciso responder a pergunta: é possível e, portanto, constitui-se num valor decisivo para a humanidade, a superação da sociabilidade regida pelo capital? Se a resposta for negativa, então não haverá como superar a fratura entre o mundo da realidade objetiva e o mundo dos valores. Deste modo, a ética jamais poderá deixar de ser abstrata, no sentido de dissociada da vida real. Se, como pensamos, a resposta for afirmativa, então estará aberto o caminho para pensar uma ética que possa vir a tornar-se concreta.
O mais interessante, e isto convém salientar, é que nos dois casos a ética é, hoje, necessariamente abstrata. Ou seja, não pode se tornar vida cotidiana real. Mas, há uma enorme diferença entre a abstração da ética pensada no interior da sociabilidade do capital e daquela pensada em direção a uma futura sociabilidade do trabalho. No primeiro caso, a abstração é o outro lado da moeda da concretude da matriz do capital. Situa-se, portanto, no interior da ordem do capital. Por isso, jamais poderá deixar de ser uma ética alienada e alienante.
No segundo caso, tendo (a reflexão ética) por base o processo torna-se homem do homem e compreendendo os obstáculos postos pelo capital à autêntica realização humana e as possibilidades apontadas pelo trabalho, a abstração é apenas um momento que aponta para além de si mesma, ou seja, para uma forma de sociabilidade onde ela possa se tornar concreta. Por isso mesmo, um caráter revolucionário. Por que, ao fundar os valores na objetividade do processo histórico-social e ao evidenciar a impossibilidade de realizar esses valores universais no interior da ordem social do capital, ela se inscreve no movimento de luta pela superação dessa mesma ordem.
A guisa de conclusão
Em resumo, podemos dizer que ética e capitalismo se excluem radicalmente. Se por ética entendemos aqueles valores que elevam o indivíduo a superar a esfera da particularidade para conectar-se com a universalidade do gênero humano, e se a sociabilidade regida pelo capital está fundada no interesse particular, então não há como conciliar estas duas dimensões. Se isto é verdade, duas constatações se impõem. Primeira: toda tentativa de fundar uma ética no interior desta forma de sociabilidade só pode resultar numa ética abstrata e contribui, não obstante intenção em contrário, para a reprodução dessa ordem social essencialmente injusta. Mais ainda: a ênfase dada, hoje, à questão dos valores, sem um questionamento radical da matriz fundante desta ordem social, não tem nada de positivo. Pelo contrário, é a expressão do extravio e da impotência de uma consciência que, ignorando a dinâmica da realidade objetiva, pretende ditar normas do alto de um pedestal transcendental. Segunda: a fundamentação de qualquer ética autêntica tem de ser precedida, necessariamente, pela demonstração da possibilidade e da necessidade – ontológicas – da superação da exploração do homem pelo homem. Somente assim o discurso ético deixará de ter apenas uma coerência lógica para ter uma coerência ontológica, vale dizer, terá a possibilidade (ainda que só a possibilidade) de se transformar, em outra ordem social, em prática cotidiana.
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RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Produção de sujeitos, apassivização de campos coletivos e constituição de horizontes emancipatórios
Maria Lídia Souza da Silveira[1]
“Se corre El peligro de que los árboles impidam ver El bosque, perseguindo la quimera de realizar El socialismo com la ayuda de lãs armas melladas que nos legada El capitalismo (la mercancia como célula econômica, la rentabilidad, El interes material individual como palanca, etc.), se puede llegar a um callejón sin salida. Entretanto, la base econômica adaptada há hecho su trabajo de zapa sobre El desarollo de la consciência. Para construir El comunismo, simultaneamente com la base material, hay que hacer El hombre nuevo”.
(Ernesto Che Guevara)
Uma indagação inicial se impõe. Tem sentido ainda se refletir sobre o homem novo, formas distintas de subjetividade, novo projeto societário, fundados numa real emancipação dos sujeitos humanos, quando a sociabilidade reinante afirma a indispensabilidade do conformismo, as vantagens da indiferença perante as perdas e dores humanas, a diluição das diferenciações de classe e, portanto, da consequente superação do sentido de um outro ordenamento social?
No intuito de iniciar uma reflexão em torno destas questões, entendo que um primeiro cenário precisa ser explicitado. Trata-se de considerar, na concretude da formação social brasileira, o que tem sido evidenciado nas últimas décadas: uma intensa crise econômica – corolário natural no âmbito dos processos de acumulação predatória presentes na atualidade do movimento do capital – , concomitantemente a permanência de processos refinados de dominação e uma profunda crise de fragmentação social.
Este quadro vai explicar na cotidianidade da vida das classes trabalhadoras, em recessão, acesso restrito aos serviços de saúde, educação, assistência, desemprego, aumento dos que vivem abaixo da linha da pobreza, além do brutal crescimento da violência; no universo dos que trabalham vai se ampliando – e de certa forma sendo naturalizada – a desregulamentação do trabalho e a contínua perda de direitos, produto de lutas sociais travadas. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da resistência e ofensividade destas classes, constata-se visível retração, o que significa dizer que componentes estratégicos, constituintes de um outro ordenamento social, tendem a se refazer.
Nessa direção é inegável e cada vez maior a perda do sentido de compartilhamento, a ausência de gestos de solidariedade e de campos coletivos, com potencialidade de conformação de sentidos para os experimentos das diferenciadas expropriações continuamente vividas.
O que se está a verificar é a manutenção e estreitamento por parte do Estado brasileiro, da relação de associação e subordinação à ordem internacional, em nítido adensamento e conformação à lógica capitalista, cujo esteio essencial se mantém: o da acumulação privada. Concomitantemente a estes procedimentos, os setores dominantes elaboram uma barragem ideológica de tal monta, que mais que incidir na conformação do consenso, funciona, sobretudo, como elemento de brutal apassivização, ao por a circular na tessitura das relações sociais, para além de valores de competitividade, consumo, individualismo, indiferença, auto-culpabilização e conformismo, entre outros, a crença, internalizada, da inexistência de outras alternativas possíveis ao capitalismo.
Por outro lado não há como negar a evidência de uma ampla exclusão social, ocasionando a imensos contingentes populacionais, extrema miséria com padrões ínfimos de existência material, lhes reservando a quase que impossibilidade de desenvolvimento de suas habilidades, inteligência, sensibilidade, enfim, de sua humanidade.
A dominação político-econômica em andamento se reveste de domínio racial, cultural, sexual, entre outros, operando num infinito universo ideológico, no interior do qual é essencial forjar uma rede sutil e competente que incorpore a todos, na qualidade de iguais, direcionada a legitimar as formas de dominação em curso.
Nesse contexto de movimentação do capital, para além de suas determinações na ordem da materialidade, precisa ser perscrutada a sua capacidade de potencializar um singular ideário, deslocando contradições, estruturando valores, demarcando territórios de pensamento, interiorizando culpas, ampliando a sua racionalidade já em curso; movimento esse simultaneamente tensionado, ainda que de forma extremamente frágil, pela presença operativa do trabalho.
Ponto de partida real do processo de humanização do ser social, o trabalho, na sua objetivação no interior da sociedade capitalista, precisa ser degradado e transmutado em mero meio de subsistência e fonte de acumulação. Assim, conforme assinala Ricardo Antunes[2],
“A força de trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria, cuja finalidade vem a ser a produção de mercadorias. O que deveria ser a forma humana de realização do indivíduo reduz-se à mera possibilidade de subsistência do despossuído. Esta é a radical constatação de Marx: a precariedade e perversidade do trabalho na sociedade capitalista.”
Nesse percurso, a teoria do valor mercantil recupera esse conjunto de fazeres e significações das quais os sujeitos produtores – imersos em relações concretas de produção e circulação – encontram-se apartados. Uma das constatações feitas é a de que no processo de troca de mercadorias vai se verificar um duplo movimento de abstração; durante o ato de troca, a abstração do caráter concreto e particular da mercadoria, reduzida que é à entidade abstrata, na medida em que seu “valor de uso” passa a ter o mesmo valor da outra mercadoria pela qual foi trocada.
Dessa forma, os sujeitos transacionam essas mercadorias “como se” estas estivessem autonomizadas nesta relação, o que não implica que na consciência dos sujeitos elas sejam efetivamente autônomas. Até porque é corrente no próprio senso comum, o fato de que as mercadorias não se reproduzam sem o trabalho.
O caráter abstrato presente no ato da troca, de forma alguma pode ser transferido mecanicamente à consciência de seus agentes. Esse desconhecimento que efetivamente faz com que os agentes envolvidos desconsiderem as distintas dimensões presentes em seu ato, o reduz, de uma certa forma, “num encontro casual de indivíduos atomizados no mercado” (Zizek)[3], a produzir, por assim dizer, uma dimensão social “recalcada” presente no seu ato, e que vai emergir, na qualidade de seu contrário, como razão que universaliza esses gestos. Assim, o paradoxo dessa relação entre a efetividade social da troca da mercadoria e a “consciência” dela, reside no fato de que o desconhecimento da realidade, em verdade é seu componente constitutivo. Em outras palavras, o fetiche é parte da própria mercadoria e não seu atributo.
Este fetichismo existente precisa ser compreendido e denominado corretamente. Evocando ainda Marx, Zizek vai ressaltar que sob o capitalismo, as formas intersubjetivas de dominação e servidão se disfarçam “sob a forma de relações sociais entre coisas, entre os produtos do trabalho “[4], deslocando dessa maneira, das relações entre os homens para a do fetichismo entre as coisas.
Portanto, com a sociedade burguesa, as relações que a conformam de servidão e dominação, ainda que existentes, são recalcadas. A aparência é a de que presentes nas relações sociais estão sujeitos livres. E o sintoma que vai emergir desse conjunto de relações existentes, subvertendo essa aparência construída de liberdade e igualdade, consiste exatamente nas ‘relações sociais entre coisas’.
Tal desequilíbrio presente no ordenamento capitalista, ao invés de ser revelador da realização incompleta destes princípios e, portanto, o marco de uma insuficiência a ser aperfeiçoada com o tempo, vai de fato existir na qualidade de seu componente constitutivo.
Fundamental se faz situar nesse movimento do capital, certas medidas essenciais à manutenção de todas estas relações, voltadas mais diretamente para o mundo do trabalho, centradas na conformação de um novo padrão de acumulação, e que terá repercussões, seja na ordem da materialidade, da subjetividade dos sujeitos, ou ainda no processo de organização e luta dos trabalhadores.
Assim, o que vai prevalecer é a reversão de suas conquistas fruto de lutas sociais travadas, fazendo eclodir o desemprego, a desregulamentação e terceirização do trabalho, a implementação de novas formas de gerenciamento e controle sobre a produção. O esforço capitalista, voltado para a obtenção de maior lucratividade, vai implicar na assunção de novos padrões de concorrência assentados no avanço tecnológico e na premissa da “qualidade” e “produtividade”, procedimentos voltados à menor utilização do trabalho vivo.
O que está em andamento nada mais é, portanto, que o próprio itinerário do capital na sua necessidade de gestar um novo padrão de acumulação. A acumulação flexível, segundo David Harvey[5], é marcada
“por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional.”
Ao se introduzir a “flexibilização” na organização do trabalho, busca-se criar a aparência de que não há mais divisão entre concepção e execução no processo produtivo, face à nova figura do trabalhador polivalente. Graças a polivalência – ao contrário da especialização típica do fordismo-, o trabalhador passa não só a operar várias máquinas, mas participa, igualmente, de grupos de trabalho, com capacidade de opinar sobre a produção dos processos e rotinas.[6]
Esta moderna gestão coletiva supõe competição de grupos entre si visando maior produtividade, a partir de metas previamente definidas pela empresa, O trabalhador não só se integra ao processo de trabalho, mas, principalmente, se sente responsável pelo alcance dos objetivos da empresa.
Do ponto de vista mais diretamente ligado aos trabalhadores, estas alterações no mundo do trabalho, e em especial, a flexibilização, veiculam num certo sentido a idéia de que as classes trabalhadoras estão mortas como força ativa da história, Tende a ser construído um apartamento da memória social de suas lutas e conquistas da sua recente história coletiva.
James Petras[7] realiza estudo inquietante, no qual analisa nesse processo em curso, a contínua transitoriedade da experiência do trabalho por parte dos trabalhadores. Ressalta as relações no seu interior constituídas, marcadas pelo sentido de provisoriedade, para o qual não vale a pena investir em profundidade, seja através de laços com os companheiros, patrões, ou ainda para as demais esferas de convivência.
Assim, diz o autor, “a transitoriedade se torna um estilo de vida, no qual não há comprometimentos profundos e onde existe pouca base para a solidariedade social. O resultado é o declínio dos sistemas de apoio social, a atomização e um crescente sentimento de vulnerabilidade individual.”
Esta subordinação à lógica mercantil que vai sendo conformada, esta direção intelectual e moral constituída, embasada na economia, na política e num determinado campo cultural e ideológico, vai afetar as formas de sociabilidade existentes, produzindo marcas profundas nos sujeitos individuais e coletivos.
Esferas de produção de subjetividade e emancipação
Penso ser da maior importância inscrever a reflexão em torno da educação e formação das classes subalternas, ao se considerar as possibilidades de emancipação humana.
Nessa perspectiva não se pode prescindir de uma referência, ainda que breve, às formas através das quais se conhece – compreendendo e interpretando – a realidade. Assim como desconsiderar a presença da educação na sua variedade de sentidos e componentes agregadores, estabilizadores e transgressores, ou ainda, potencializadores de práticas individuais e sociais.
A concepção de conhecimento adotada supõe a idéia basilar de Antonio Gramsci[8] de que todos os homens são filósofos, e mesmos os mais simples, interpretam e elaboram a sua vida, tendo, portanto, para o presente algum princípio orientador de seu experimento cotidiano. Nesse processo, misturam de forma absolutamente desordenada, contraditória e acrítica, um conjunto variado de concepções de mundo.
Coexistem, portanto, nessas formas de conhecimento e reconhecimento de si mesmos e da vida, um caldo cultural conformado por determinantes de classe próprios, operando na qualidade de esteio para a organização das vidas dos sujeitos, a partir das transformações que vão se operando no campo da ciência, arte, filosofia, economia, política e nas relações em geral, alterando costumes e visões do mundo.
Nesse quadro, a apropriação destes elementos pelos indivíduos se coloca como contínua possibilidade, se refletindo não só na linguagem como igualmente na sua
personalidade e subjetividade, enfim, no conjunto das relações sociais. Esta apropriação individual e coletiva segundo Emílio Gennari [9] “é um dos fatores que a cada momento tende a consolidar, atualizar ou superar os limites dessa mesma ordem”.
A reflexão em torno da emancipação, na sua complexidade, não pode prescindir da consideração de conjunturas históricas no interior das quais o protagonismo humano vem sendo continuamente subsumido a uma “atualizada” lógica mercantil, acoplada à égide ao consumo e a uma dimensão de historicidade, cristalizada no plano da imediaticidade e de um tempo presente eternizado.
Trata-se, portanto, de pensar os processos subjetivos a partir dos registros de interioridade presentes em cada sujeito, tensionados e interpelados através das expressões concretas da sociabilidade hegemônica. Assim, a subjetividade não é imanente ao indivíduo, mas vai se constituir a partir do intercruzamento destas dimensões, não existindo, portanto, a separação entre o plano individual e o coletivo, entre os registros de indivíduo e sociedade.[10]
Nesse sentido, um pressuposto que se impõe diz respeito à consideração de que a subjetividade é socialmente produzida, operando numa formação social determinada, sob o crivo de um determinado tempo histórico e no âmbito de um campo cultural.
Marx vai organizar esta vinculação a partir da análise do homem inserido no processo produtivo, produzindo e produzindo-se:
“O trabalho não produz só mercadorias, produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral”.[11]
Trata-se, portanto, de um processo que implica em sujeição real, desapropriação da própria condição de indivíduo perante um poder que, para além de tornar estranho o produto do trabalho, torna igualmente estranho o trabalho para o trabalhador, internalizando esta relação. Tal poder que se institui despoticamente, se evidencia não só objetivamente, mas também no campo simbólico, ao processar o desenvolvimento da forma mercadoria em fetiche.
Leon Rozitchner[12] efetiva uma síntese desses registros ao ressaltar que “a própria subjetividade vive também em um mundo de objetos cuja forma reproduz, de algum modo, a mesma estrutura do sujeito: a mercadoria também é um objeto cuja forma reproduz uma cisão fundamental em seu modo de aparecer: valor de uso, por um lado, valor de troca por outro”.
Há, portanto, uma determinação geral a partir da qual tanto os sujeitos quanto os objetos são produzidos: a forma mercantil.
O desafio de desvendamento desta questão aponta para a aparente contradição que se estabelece entre as condições subjetivas do homem trabalhador e as condições objetivas, dele apartadas, que o enfrentam na qualidade de capital. Assim, na relação mercantil, em particular através de seu valor de troca, transmuda-se a natureza da própria relação criada: de relação entre pessoas em relação encoberta por coisas. Ou ainda, como enfatiza Lucien Sève[13] “coisificação de pessoas e, ao mesmo
tempo, personificação das coisas “.
O acesso às formulações de Marx, permite a percepção de como a individualização do homem e sua personalidade se constituem na concretude da vida social, no interior de um determinado processo histórico que interpela e marca o sujeito. A sua análise vai desvendando como um objeto exterior, a mercadoria, atua como um sujeito mistificador que, ao encobrir o lugar real do sujeito produtor, encobre em verdade, o poder de sua atividade que permanece obliterada no próprio processo de sua objetivação.
Dessa forma expropria-se o trabalho coletivo – produto da força humana num movimento singular de cooperação – secundariza-se a experiência do trabalhador, ao mesmo tempo em que é forjado um outro tipo de perda: desenvolve-se um certo campo subjetivo imaginário que, usurpado objetivamente no seu ‘fazer individual’ e na ‘cooperação’, transfere ao capitalista o poder que lhe foi subtraído.
Marx vai revelando como através do processo de intercâmbio de mercadorias, vai sendo constituída uma relação que aparece entre objetos, sendo obliterado o pano de fundo da relação determinante – entre os próprios sujeitos -. Esta aparente desvinculação, essa ‘ignorância’ invisível socialmente, determinará produções subjetivas particulares nos homens que vivenciam este processo.
Este mecanismo é considerado por Rozitchner e pelos psicanalistas brasileiros Joel Birman [14]e Jurandir Freire Costa[15], ao enfatizarem esta condição trágica do sujeito no mundo via formas de subjetivação hoje produzidas, calcadas num enorme mal-estar que pode ser compreendido em várias frentes. Seja pelo retraimento do Estado, em relação aos agenciamentos assumidos, que, como destaca Birman (2000), atuavam na produção de formas de subjetivação e de gestão de laços sociais, através de instituições que operavam, não só como centro de ordenação social, mas também de disciplinamento; seja pela fragilização dos partidos na qualidade de ‘universais relativos’, que funcionavam como campos ideológicos e de força no âmbito das diferenciações de classe e nos antagonismos sociais; seja nos sindicatos e movimentos sociais que vêm perdendo tanto em ofensividade, como na qualidade de campos coletivos que referenciem os setores subalternizados na sociedade. Há, portanto, não só uma fragmentação social imensa, mas esta é acompanhada de fragilização de valores substantivos referenciais coletivos.
Estas ponderações auxiliam no reconhecimento de como a presença da globalização e do neoliberalismo conseguiram, através da recriação contínua de formas de acumulação de capital, de um lado, desconectar ainda mais os caminhos da economia dos registros do social, e de outro, subsumir os componentes de nosso psiquismo e subjetivação à ordem mercantil.
Entre outras dimensões, esta condição revelaria um conjunto de impossibilidades com as quais os sujeitos estão se defrontando, em especial a de identificar e realizar ações fundamentais, portadoras potenciais de alternativas de alteração significativas do curso de sua vidas.
Superá-las implicaria em multiplicidade de acessos, tanto na ordem da materialidade – o que significa introduzir as questões relativas aos componentes sócio-político-históricos -, quanto no sentido de percebê-los vinculados às dimensões do corpo e do afeto.
Esse apartamento das dimensões da vida encontra em Eric Hobsbawn[16] mais um elemento explicativo. Segundo o autor, a perspectiva histórica que vem informando majoritariamente as identificações dos sujeitos na atualidade do capital, na qualidade de uma forma de vivência que marca este século XX, é a de um presenteísmo constante.
Seu significado é o de “uma espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público” vivido numa determinada época. E do ponto de vista da cultura de um povo, esta intensificação significa a negação da memória e da história. Este’ presenteísmo’ nomeado pelo autor, ao recalcar o passado cristalizando a dimensão do tempo presente, no hoje, retira das possibilidades existentes no presente, os seus componentes transgressores, a sua dimensão de porvir.
Um elemento central na busca de sua compreensão se refere à contínua produção de desigualdades sociais no âmbito de nossa formação social, assentadas num ordenamento fundado no reinado mercantil. No seu interior, os códigos de convivência social permanecem enraizados na acumulação privada de riquezas, em hierarquias sociais produzidas em contextos de antagonismos II sociais, fundadas na exclusão da maioria dos indivíduos. Evidencia-se, igualmente, uma imensa apropriação ideológica das movimentações de resistência de segmentos que questionam a ordem – sendo transmudados estes gestos em banditismo -. Todas estas situações e relações vão interferir decisivamente nos processos de constituição dos sujeitos.
Estes códigos, por sua vez, fazem circular valores, formas de relação, bem como a presença de certos modelos identificatórios.
Nessa direção, Birman (1999) destaca nos processos de subjetivação em curso, as moldagens impregnadas pela cultura do narcisismo e pela sociedade do espetáculo, que vão enfatizar a exterioridade e o autocentramento.
Este referencial naturaliza a brutal desigualdade humana e, do ponto de vista da ordem vigente, contribui para o enrigecimento dos componentes de tensão presentes na sociedade, fortalecendo o congelamento da memória histórica e refreando a dimensão de porvir.
Esta racionalidade que preside as relações sociais através da reificação do presente, não só reforça a perspectiva de manutenção do ordenamento capitalista, como investe na destruição de vínculos que possam vir a ocasionar a humanização dos sujeitos. Ao fazê-lo, busca um tipo de formatação das subjetividades numa perspectiva de imediaticidade, na qual o efêmero e o fragmentário, a produção de curto prazo e a insensibilidade perante o outro são componentes fundantes.
Assim, o projeto societário hoje hegemônico – ainda que tenha como base essencial a acumulação privada – se reforça através de hierarquias, normas e legislações legitimadoras de uma igualdade anunciada, ainda que formal, para a qual se atribuem regulações e disciplinamentos democráticos que irão dar sustentabilidade legal à desigualdade instituída. E este projeto, o do capital, majoritariamente é aceito e, mais que isto, internalizado pelos sujeitos. Ao se reproduzir, assegura também a permanência do modo de produção capitalista, da sociedade capitalista.
A concepção de subjetividade com a qual o marxismo vai romper, e que está presente no âmbito da hegemonia burguesa, é a que supõe o indivíduo na qualidade de ente abstrato e idealizado, por conseguinte, exterior às suas efetivas relações sociais. Marilena Chauí[17] ressalta o fato de que esta visão de subjetividade plasmada no interior do capitalismo, se sustenta menos nas relações intersubjetivas e mais numa subjetividade conformada pela mass media e pela publicidade, apresentando uma incapacidade de simbolização, de transcender ao dado, de relacionar-se com o possível e, sobretudo, com a marca de uma certa infantilidade que se expressa perante a promessa de satisfações imediatas. Banaliza-se a competição e a violência, sucumbindo-se, assim, “à velocidade e fugacidade das imagens, sem passado e sem porvir”.
Antonio Gramsci[18] auxilia na junção de outros componentes de análise, ao destacar que uma nova civilização só teria condições de se afirmar, através da presença na história das classes apartadas continuamente do poder político e do efetivo desenvolvimento de suas condições “intelectuais e morais”, – as classes subalternas -, o que implicaria na possibilidade de constituição de uma outra forma de sociabilidade, com a marca da emancipação aludida por Marx.
Esta dimensão repõe com qualidade nova o lugar das classes trabalhadoras neste processo em termos de sua efetiva participação e, mais que isto, sinaliza para a importância do desenvolvimento de uma consciência histórica da realidade, com capacidade de fecundar as possíveis ações políticas. Tal concepção histórico-crítica impõe em sua singularização, a inclusão de um conjunto de componentes que possam favorecer a formação da personalidade dos trabalhadores. Esta vai supor, portanto, uma construção histórica dos processos subjetivos.
Esta relevância dos sujeitos históricos, explicitada por Gramsci, vai implicar na valoração da própria constituição desses sujeitos na qualidade de personalidade, vontade e processo organizativo, num movimento real de construção de um novo “bloco histórico”.
Em verdade, Gramsci retoma o potencial educativo do próprio marxismo. Salientará, portanto, não a autonomia ou prevalência dos campos de objetividade/subjetividade, mas o seu mútuo engendramento.
Há uma aproximação conceitual a ser feita e que consiste em vislumbrar neste sujeito fragmentado, imerso em situações particulares, crenças, símbolos, vontades dispersas – características do senso comum -, a presença, ainda que recalcada, de outros componentes valorativos, práticas, percepções e intuições, situações vivenciadas que podem ser decifradas e compreendidos – tornadas bom senso, nos termos gramscianos-. Há potencialidades que podem se espraiar a partir de um outro OUTRO: um campo coletivo, referência distinta ao entorno dominante, com capacidade de possibilitar a criação de laços de solidariedade e de partilha, substituindo o conformismo e a indiferença das subjetividades abstratas, descontextualizadas e fundadas no prisma do autocentramento dos indivíduos; campo que pode ‘produzir,’ também, uma subjetividade coletiva, contextual, a repor como dimensão possível da existência individual-social, a perspectiva de uma outra sociabilidade, na necessária afirmação da emancipação dos sujeitos humanos.
Pensando-se em termos de uma configuração destas situações sociais vivenciadas pelos sujeitos, Vera Telles[19] ressalta as significações que passam a ter nesse processo de subjetivação, as próprias lutas sociais travadas. Assim,
“a importância das lutas sociais, enquanto abertura de espaços públicos nos quais as experiências diversas podem ser tematizadas, problematizadas e, por essa via, desprivatizadas enquanto condição comum que interpela a sociedade na formulação e exigência de direitos. É nessa articulação entre o privado e o público que identidades são construídas e reconstruídas, definidas e redefinidas, criadas e recriadas, num espaço de conflito em que as práticas de resistência, abertas ou surdas e cotidianas nas suas vitórias e derrotas, sucessos e insucessos, para além de seu significado material em cada momento específico, redefinem e refundam tradições, reafirmam e reorientam práticas, elaboram e reelaboram valores e referências por onde homens e mulheres, em situações concretas de vida, percebem o seu lugar na sociedade e sobretudo percebem a eficácia de suas ações e de suas palavras na produção de fatos e acontecimentos que afetam ou podem afetar as circunstâncias de suas vidas.” (p.59)
Encontra-se, pois, na totalidade social, a presença não de um sujeito único, marcado por um processo de obliteração do real, produzido por formas ideológicas oriundas do capital, que o alienam e o impedem de desvelar a gênese da exploração. A absolutização desse sujeito alienado poderia sugerir que na vida social, o capital na qualidade de efetiva chefia, unificaria e implementaria seu ideário de tal forma que forjaria sempre subjetividades subalternizadas ao seu ordenamento.
A radical contestação desse processo de naturalização da alienação poderia, também, fazer supor, em contrapartida, a existência no interior da dinâmica social de um ‘não lugar’ da alienação, um certo ponto protegido ou até mesmo não vulnerável às influências da ideologia dominante, o que sem dúvida é impossível.
Neste contexto vale registrar que ainda que a apreensão de si e do mundo se apresente aos sujeitos de forma fragmentada, confusa, fatalista, gestada a partir dos valores hegemônicos, isto não se constituirá empecilho à emergência de outros interesses individuais e coletivos, outros sentimentos, valores, interpretação diversa da conjuntura ou ainda de outro projeto societário. No entanto, isso não ocorrerá espontaneamente nem automaticamente no interior das relações sociais. Supõe um investimento na criação de espaços coletivos, espaços formativos, instâncias organizativas com enraizamento social, campo através do qual possa ser exercitado o aprendizado de construção de referências identificatórias e de diferenciação de classe. A formulação de Antonio Gramsci[20] ajuda a melhor esclarecer este sentido:
“Deve-se insistir sobre o fato, existe realmente uma forte atividade volitiva, uma intervenção direta sobre a “força das coisas”, mas de uma maneira implícita, velada, que se envergonha de si mesma; portanto a consciência é contraditória, carece de unidade crítica, etc. Mas quando o “subalterno” se torna dirigente e responsável pela atividade econômica de massa, o mecanismo revela-se em certo ponto um perigo iminente; opera-se, então, uma revisão de todo o modo de pensar, já que ocorreu uma modificação no modo de ser social. Os limites e o domínio da “força das coisas” são restringidos. Por quê? Porque, no fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não mais o é: tornou-se uma pessoa histórica, um protagonista; (…)
Estes elementos desagregados, incoerentes, não críticos e episódicos que vão compor a concepção de mundo do conjunto das classes subalternas, consistem no senso comum, ponto de partida e ao mesmo tempo, produto do devenir histórico. O movimento de fazer a crítica desta visão de mundo reside num dos elementos essenciais à conformação dessa subjetividade com a marca da maioridade histórica. Acrescenta o autor:
“O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um ‘conhece-te a ti mesmo I como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no inventário. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário “(Idem: 12)
Nesta mesma direção Emílio Gennari[21] ressalta os distintos impactos produzidos nos sujeitos, num amálgama de sentimentos não só diversificados mas de natureza distinta. Assim:
“um movimento contraditório entre a coerção imposta pelas necessidades de sobrevivência, que gera no homem-massa sentimentos de impotência, medo, submissão ou até de dívida de gratidão, e a busca constante de espaços de liberdade nos quais
seja possível reafirmar a subjetividade dos indivíduos negada pela ordem dominante.”
Ressalte-se, portanto, que na dinâmica da vida social, as apreensões dos sujeitos podem ocorrer de forma diferenciada, ainda que tenham como ponto de partida a mesma realidade social, o que não significa afirmar nem que estão alienados dessa realidade, nem que estão cooptados pela racionalidade que a organiza de forma hegemônica. A presença destes distintos olhares – e lugares -, verdadeiros para cada sujeito, de per si, introduzem de forma contundente a temática da subjetividade e de sua importância efetiva, seja nos processos de conhecimento e reconhecimento individual, seja na gestação de campos coletivos, a agregar componentes culturais, simbólicos, de partilhamento com outros sujeitos os experimentos de solidariedade e conflitos, e a experimentação de ações coletivas.
Assim, retomar este debate de forma mais substantiva sugere a sua inscrição na agenda político-formativa dos trabalhadores, visto que a reconstrução desta forma particular de subjetividade é componente essencial para que a perspectiva do devir se coloque como possibilidade.
Este investimento, no plano da formação, pode permitir a constituição de elos entre o tempo das exterioridades (imediato) – que parece adquirir uma autônoma opacidade para quem nele está imerso -, e o tempo mediato, de compreensão do plano que não aparece, da busca coletiva de desvendamento do “segredo das formas” que estruturam a realidade dos fenômenos e experimentos humanos. Estes acessos são extremamente significativos no interior desse embate de racionalidades inscritas na vida social.
Eis parte do desafio posto às classes subalternas: afirmar sua personalidade e subjetividade, construindo uma identidade com capacidade de potencializar os elementos que estão postos no real, na tentativa de proporcionar um sentido novo às condições dadas, a partir de uma perspectiva anti-capitalista, o que significa apostar numa ordem humana emancipadora, criação histórica de uma outra sociabilidade, novos campos coletivos, outros possíveis…
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Moral e Moralismo
Cinara Nahra[22]
- Ética e Moral
A palavra Ética se originou a partir de três termos gregos. O primeiro é o Êtos (C/epsilon e tao), que significa a cada ano, ou aquilo que se repete a cada ano. O segundo Êthos (c/epsilon e téta) que significa costumes, hábitos. E finalmente o terceiro é o Éthos, (c/éta e téta) que significa modo de ser, caráter.
Observe-se que entre os dois primeiros termos existe uma linha de continuidade óbvia: aquilo que se repete a cada ano acaba formando os hábitos, os costumes, sejam de uma pessoa, sejam de um povo. Em relação ao terceiro termo, porém, existe algo novo, algo que não está presente nos dois anteriores. Quando falamos em caráter, imediatamente nos vem à mente a preocupação com o bom e o mau. Contemporaneamente, inclusive, quando dizemos .que”X é uma ‘pessoa de caráter”,estamos querendo dizer que “X é, uma pessoa de bom caráter”. O oposto, evidentemente é o mau caráter, inúmeras vezes fazemos referência do tipo “y é um mau-caráter”, indicando que Y não é uma pessoa que possua bons valores. No terceiro termo que dá origem a palavra ética, pois, há uma preocupação com aquilo que é bom ou mau, que não existe nos dois termos anteriores. A ética no terceiro sentido (Éthos) remete mediatamente a considerações sobre o que é bom e sobre o que é mau.
Essa pequena análise filosófica serve para que possamos entender alguns problemas que enfrentamos, contemporaneamente, na aplicação da palavra ética. Se tomarmos ética no segundo sentido, ética no sentido de hábitos e costumes, teremos que nos render a uma concepção relativista que admite que sejam quais forem os hábitos ou costumes de um povo eles seriam considerados éticos, porque, afinal de contas, se ética nada mais é do que hábitos e costumes, todos os costumes e hábitos de quaisquer povos seriam éticos. Por esta concepção deveríamos admitir, por exemplo, que o costume ainda em voga hoje em determinadas tribos de cortar o clitóris das mulheres é ético, porque, obviamente, são os costumes desta tribo. Ainda por esta mesma concepção deveríamos admitir que a escravidão foi correta, porque, afinal, foi um costume dos povos e das épocas que a admitiram. A visão relativista, em última instância, nos diz: quem poderia julgar os hábitos e os costumes dos povos? Ninguém. Assim, cada povo teria os seus próprios hábitos e costumes e ninguém teria o direito de julgá-los são éticos. Se eles são costumes, eles são, já, éticos.
Se tomarmos a ética no terceiro sentido, há de emergir, entretanto, a questão: esses costumes, estes hábitos, este comportamento, enfim, é bom? Trata-se de bons hábitos ou não? E aí então a pergunta: trata-se de hábitos, de comportamentos éticos ou não? Observe-se que o uso da palavra ética neste contexto é completamente diferente do uso da palavra ética no contexto anterior. A pergunta sobre se algo é ético ou não a partir do segundo sentido do termo deve sempre ser respondida positivamente se constatamos que algum comportamento ou conjunto de ações se repete quotidianamente dentro de um determinado povo, constituindo-se em costume deste povo. Por outro lado, a pergunta sobre se algo é ético ou não a partir do terceiro sentido do termo requer a referência a uma outra noção, que é a noção de bom ou de ruim, de certo ou de errado. Ainda que algo se constitua como o costume de um povo, resta a pergunta: “Mas esses são bons hábitos”? “É certo fazer isto?” e daí “Isto é ético?”. E a resposta, sim ou não, não pode ser dada tendo como referência apenas a constatação empírica ou histórica de que as pessoas agem assim ou tem este hábito. A resposta: sim é ético, sim é correto, ou não, não é ético, não, não é correto, deve estar referenciada em algum padrão, em algum princípio, que deve ser bem diferente da mera constatação de que se trata de um costume. Dizer que algo é ético, pois, quando nos referenciamos no terceiro sentido do termo, significa muito mais do que dizer que algo é bom ou certo, porque é praticado, porque as pessoas agem assim. Dizer que algo é ético neste terceiro sentido do termo significa questionar o modo como as pessoas agem, questionar os costumes, os hábitos, seja das pessoas, seja dos povos, e perguntar: “Ok, as pessoas fazem isso, mas é certo que elas façam isso? É bom que elas ajam assim? É ético? Elas deveriam agir assim?”
E é exatamente para apreender esta diferença que um dos maiores filósofos da moral de todos os tempos, Imanuel Kant (1724-1804) vai introduzir uma diferença semântica extremamente importante, exatamente para dar conta destes dois sentidos diferentes no qual usamos a palavra ética. Kant vai nos dizer que todo conhecimento racional é ou material ou formal. Como protótipo do conhecimento racional formal nós temos o ramo do conhecimento chamado Lógica. Como protótipo do conhecimento racional material nós temos os ramos do conhecimento chamados de Física e de Ética. Neste momento Kant deixa de lado a Lógica como objeto de análise e passa a comparar especificamente a Física com a Ética. A Física, diz ele, se ocupa das leis da natureza, sendo chamada de filosofia natural. A Ética vai se ocupar das leis da liberdade, sendo também chamada de filosofia moral. A Física (Filosofia Natural) vai ser composta por uma parte empírica e uma parte inteiramente racional chamada de Metafísica da Natureza. Do mesmo modo, a Ética vai ser composta por uma parte empírica (chamada de Antropologia prática) e uma parte inteiramente racional, a Metafísica dos Costumes, que nada mais é do que a Moral.
Para Kant a Ética será composta pela Antropologia Prática mais a Moral. Mas o que é a Antropologia Prática? A antropologia prática não é nada mais nada menos do que os costumes, os hábitos, o Êthos no seu segundo sentido. Já a Moral seria a Metafísica dos Costumes, a parte totalmente racional do estudo da Ética. O estudo da Moral, pois, não poderia se reduzir ao mero estudo dos costumes, e dos hábitos. O estudo da Moral necessariamente deve ter um aporte relativo ao Dever ser, ao modo como deveríamos agir, muito mais do que ao modo como agimos, um aporte, pois, à racionalidade e a Razão, e, portanto, diz Kant, àquilo que é universal. E o estudo, pois, da Moral, entendida exatamente neste sentido de estudo do dever ser, feito unicamente através da racionalidade humana, que vai nos fornecer um princípio, chamado por Kant de Lei Moral, que segundo ele nos fornece um critério universal para que possamos saber se nossas ações são certas ou erradas, se devem ou não devem ser praticadas. A Lei Moral, também chamada no campo humano de Imperativo Categórico é assim enunciada: “Age de tal modo que o princípio subjetivo da tua ação possa sempre valer como princípio de uma ação universal”.
Foge aos propósitos deste artigo discutir a Lei moral kantiana. O que é importante aqui, para os propósitos da nossa discussão, é que Kant apreendeu muito bem (e talvez tenha sido o primeiro a fazê-Io ao longo da história da ética, embora não, é claro, o último, porque depois uma série de outros filósofos trabalharam esta distinção, alguns até de um modo totalmente diverso do kantiano) o sentido desta diferença entre os dois sentidos do Etos. Cabe a Antropologia prática estudar o Ethos, no sentido de hábitos e costumes, e cabe a Moral estudar o Ethos, no sentido claro de dever ser, de como deveríamos agir. Dizer, pois, que um comportamento ou ação é ético no sentido em que a antropologia prática concebe, significa simplesmente dizer que este comportamento ou ação é costume ou hábito de um povo. Dizer, no entanto, que um comportamento ou ação é ético no sentido em que o estudo da Moral concebe, significa dizer que este comportamento ou ação é certo ou é errado, deveria ser praticado ou não deveria ser praticado, é bom ou não é bom.
É este aporte kantiano que nos fornece a chave pra que possamos bem compreender as noções de ética e moral. Fazer a pergunta sobre se uma ação ou comportamento é ético, grosso modo, significa perguntar se esse comportamento ou ação é moral, ou seja, se ele é certo ou errado, se deveria ser praticado ou não. Isto implica necessariamente sair do ponto de vista da antropologia prática e adentrar no campo do que Kant chama de moral, que é o
campo por excelência da racionalidade.
Isto implica e exige uma atitude de questionamento e reflexão radical. Exige que nos questionemos sobre os motivos e os porquês de nossas ações, exige, principalmente, que nós sejamos capazes de nos colocar no mundo a partir do ponto de vista universal. O ponto de vista universal é aquele a partir do qual vemos as ações e as atitudes não apenas a partir do nosso interesse pessoal, ou do interesse de nosso grupo, ou mesmo do interesse da sociedade na qual estamos inseridos, mas a partir do ponto de vista da humanidade, ou seja, a partir do ponto de vista da nossa condição de ser humano.
- Moral e Moralismo
O ponto de vista universal, que é o ponto de vista efetivamente ético o ponto de vista efetivamente moral, é completamente diferente do ponto de vista que poderíamos chamar de “moralista”. Mas o que é uma concepção moral moralista? Moralismo, poderíamos dizer que é uma concepção deturpada em relação ao que é Moral, ao que é certo e ao que é errado. E aquela que se pretende emitir julgamentos de valor negativos sobre aquilo que se refere ao comportamento pessoal de indivíduos que não prejudicam a outrem com seu comportamento ou que valora distintamente pessoas ou grupos de pessoas em função de certas características naturais (físicas, sexuais ou geográficas) ou opções diferenciadas. São moralistas, pois, julgamentos do tipo: “praticar sexo antes do casamento é errado”, “dissolver o casamento é errado”, “usar roupas curtas é errado”, “praticar sexo com pessoas do mesmo sexo e errado”, e valorações do tipo: “os negros são inferiores”, “os arianos são superiores”, “os nordestinos são inferiores”, “as mulheres são inferiores”.
Curiosamente uma das maiores contribuições para que possamos entender o que é o Moralismo, vem de um dos filósofos mais controversos, e mal compreendidos da história da filosofia, que é Friedrich Nietzsche (1844-1900). Nietzsche nunca usou a expressão moralismo, mas foi um dos primeiros a fazer uma crítica feroz ao que ele chamou de Moral Judaico-Cristã, e foi um dos primeiros a afirmar a necessidade de que seja feita uma crítica dos valores
morais, uma crítica da moralidade. No prólogo do seu livro “Genealogia da Moral” afirma Nietzsche:
“Por fim, uma nova exigência se faz ouvir. Enunciemo-Ia esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão. Para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram sob as quais se desenvolveram e se modificaram; um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor destes “valores” como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento”[23]
Nietzsche aponta aqui, com muita clareza, um caminho para a reflexão moral que parece se constituir no caminho certo para que se entenda o problema da Moral. Há de se fazer uma crítica dos valores morais, há de se questionar o valor de todos os valores, há de se avaliar quais foram os valores que vigoraram ao longo dos últimos 2500 anos, para, quando for o caso, romper com eles. Conforme. ele diz, nos chamando para o questionamento, até que ponto muitas coisas que nos acostumamos a definir como “boas” e “ruins” são efetivamente boas e ruins?
“Até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem. E se o contrário fosse verdade? se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, através do qual o presente vivesse como que as expensas do futuro? Talvez da maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo? De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos.”
Havemos de admitir que considerações como essa de Nietzsche, são bastante ambíguas e problemáticas. O que estaria ele querendo nos dizer aqui? Que aquilo que costumeiramente tomamos como bom pode ser no fundo um grande mau e que aquilo que aprendemos que seja o mal pode ser um bem? E que, se é assim, e a medida que as distinções entre bom e mau são por essência distinções morais, deveríamos jogar a Moral na lata de lixo da história? Embora muitos tenham assim compreendido Nietzsche, é necessário que sejamos mais cuidadosos nessa avaliação. Quando Nietzsche fala de que talvez haja um veneno no bem (bem sempre entre aspas) e que talvez a moral seja o perigo entre os perigos, não estaria ele querendo nos advertir justamente contra uma Moral moralista? Não estaria ele justamente querendo nos alertar que há alguns julgamentos padrão a respeito do que é certo e do que é errado que fazemos quase que automaticamente, mas que, se parássemos para refletir sobre eles com mais calma, teríamos que admitir que podem não ser assim tão certos? Em outras palavras, será que muitas das coisas que admitimos como sendo moralmente certas são efetivamente certas e muitas das coisas que admitimos como sendo moralmente erradas são efetivamente erradas?
Por exemplo, é moralmente admissível nos dias de hoje que convivam no mesmo mundo pessoas miseráveis, como muitos que encontramos mendigando, e homens que ganham milhões por dia num único jogo bem feito na bolsa. Mas será que isto é efetivamente certo? Por outro lado, é considerado imoral que as pessoas andem nuas pelas ruas. Mas será que isto efetivamente imoral? Claro que não vou discutir aqui se estes certos são certos e estes errados são errados, o que importa aqui é que nos questionemos sobre se efetivamente certas coisas que temos introjetadas como certas são efetivamente certas, são efetivamente morais, e sobre se coisas que temos internalizadas como erradas são efetivamente erradas, são efetivamente imorais.
Saindo já, da terminologia Nietzscheana, podemos perguntar: ate que ponto muitos dos valores morais que construímos ao longo dos séculos, não seriam valores moralistas? Aqui Nietzsche também pode dar luzes a nossa investigação. Ele afirma que a moral ocidental está baseada nas idéias de culpa, má consciência e nos ideais ascéticos. Os ideais ascéticos, diz ele, estão baseados nas noções de humildade, pobreza e castidade. Ao se perguntar, posteriormente, sobre “o que significa o ideal ascético?” Ele afirma:
“O pensamento em torno do qual aqui se peleja é a valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence natureza, mundo, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada em relação com uma existência totalmente outra , a qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para esta outra existência. O asceta trata a vida como um caminho errado, que se deve, enfim, desandar até o ponto onde começa; ou como um erro que se refuta- que se deve refutar com a ação: pois ele exige que se vá com ele, e impõe, onde pode a sua valoração da existência. Que significa isso? Um tal monstruoso modo de valorar não se acha inscrito como exceção e curiosidade na história do homem: é um dos fatos mais difundidos e duradouros que existem… Pois consideremos com que regularidade, com que universalidade, como em quase todos os tempos aparece o sacerdote ascético; ele não pertence a nenhuma raça determinada; floresce em toda parte; brota de todas as classes”[24]
O ascetismo, pois, característico da moral ocidental, implica na negação do pathos, da paixão, do sentimento, do instinto, do prazer. Implica, enfim, na negação de tudo aquilo que no homem é animal. Se for assim, não poderíamos dizer que o ascetismo é uma das características de uma moral moralista? Se uma concepção moralista é aquela que “se pretende emitir julgamentos de valor negativos sobre aquilo que se refere ao comportamento pessoal de indivíduos que não prejudicam a outrem com seu comportamento ou que valora distintamente pessoas ou grupos de pessoas em função de características naturais (físicas, sexuais ou geográficas) ou opções diferenciadas”, não poderíamos deduzir que muitas vezes estes julgamentos de valor negativos são emitidos exatamente em função de uma postura ascética que quer estender a sua concepção ascética do mundo a todo mundo? Em outras palavras, será que muitas vezes o moralismo não surge em função de uma postura ascética?
- A Moral invertida: O Moralismo
Conforme já vimos, a Moral exige necessariamente um aporte ao universal. O aporte moralista, porém é um aporte deturpado. Deturpado, em primeiro lugar, porque os julgamentos moralistas, embora se pretendam universais, não se qualificam para uma pretensão à universalidade quando os analisamos mais profundamente. Ao contrario, exatamente por não respeitar a diferença e o diferente, os julgamentos moralistas são extremamente subjetivistas. Afinal de contas, em que nos basearíamos para fazer, por exemplo, um julgamento do tipo “ter filhos fora do casamento é errado”, ou “as mulheres devem restringir-se às atividades do lar?” Estes julgamentos não atendem ao critério da universalidade. Se todas as mulheres resolvessem a partir de agora ter filhos sem serem casadas, nada de catastrófico aconteceria no mundo. Do mesmo modo, se todas as mulheres resolvessem a partir de hoje trabalhar fora o máximo que isto geraria seria uma grande dor de cabeça para alguns maridos machistas. A universalização destes comportamentos não gera nenhuma conseqüência nefasta para a humanidade, ou mesmo para a sociedade na qual estamos inseridos. Isto mostra que o que é errado não são estes comportamentos. O que e errado e julgar que estes comportamentos (por exemplo, ter filhos sem ser casado; mulher trabalhar fora de casa) são errados, julgar que estes comportamentos são imorais.
Observe que algo bem diferente se dá em relação a atos ou comportamentos relativos à corrupção, a mentira, ao roubo, a exploração. Se todas as pessoas do mundo resolvessem mentir, ou agir corruptamente, ou roubar ou explorar o semelhante seria o caos. As conseqüências, pois, para a sociedade e para a humanidade seriam extremamente negativas, extremamente nefastas, o que mostra que estes comportamentos (praticar a corrupção, mentir, roubar, explorar) são errados, são imorais.
A grande questão, porém, é a seguinte: porque muitas vezes muitas pessoas estão dispostas a aceitar, ou pelo menos a serem condescendentes com atos e comportamentos do segundo tipo (corrupção, roubo, mentira) e a condenar prontamente os comportamentos do primeiro grupo (mulher trabalhar fora, ter uma produção independente)? É extremamente importante que estejamos dispostos a fazer uma profunda reflexão sobre este comportamento (ser condescendente com comportamentos do segundo grupo e condenar os do primeiro). Esta reflexão pode nos Ievar a compreender que muitos dos julgamentos que fazemos do ponto de vista moral, nada tem de moral, são totalmente moralistas.
Esta consciência implica em compreender que fazemos parte de uma sociedade cujos valores estão profundamente invertidos, uma sociedade moralista, e exatamente por isto, imoral, anti-ética. Com esta consciência estamos muito mais aptos para compreender problemas seríssimos do Brasil e do mundo contemporâneo, como falta de ética na política, a falta de solidariedade com o outro, desumanização da sociedade, a falta de investimento no social, o egoísmo. Uma moral moralista é uma moral invertida. É uma moral que diz ser certo o que é errado e diz ser errado o que é certo. É uma moral imoral. É, talvez, a expressão máxima da imoralidade.
- Preconceito
Para seguir adiante na análise do que é o moralismo vamos analisar o que é o preconceito. A mera análise da palavra nos diz digo sobre o significado do termo: pré + conceito. Pelo dicionário temos três definições:
1. Um conceito formado antecipadamente e sem fundamento razoável.
2. Um estado de superstição. Superstição que obriga a certos atos ou impede que eles sejam praticados.
3. Um estado de cegueira moral.
Vamos inicialmente analisar a definição 1. O que é um conceito formado antecipadamente e sem fundamento razoável? É basicamente um conceito injustificado, ou seja, um conceito para o qual não se consegue dar boas razões. Se por exemplo, um indivíduo X afirma que as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens e ao ser questionado sobre os motivos desta sua afirmação ele não consegue dar uma justificativa, este indivíduo está sendo preconceituoso em relação às mulheres, e isto está ainda de acordo com a definição. Suponhamos, entretanto, como hipótese adicional, que este mesmo indivíduo X tem, em mãos, uma pesquisa na qual se observa que os resultados obtidos por mulheres em testes de QI são, em geral, inferiores aos resultados obtidos pelos homens. Neste caso, pela definição, o indivíduo X deixaria de estar expressando um preconceito porque agora ele tem uma boa justificativa para sua afirmação. O conceito deixa de ser um pré-conceito e passa a ser um conceito. Um conceito equivocado, talvez, diríamos nós aludindo a outra série de razões para mostrar que testes de QI, por exemplo, não servem para medir a capacidade intelectual das pessoas. Mas aí tudo é uma questão de crença, e não poderíamos mais dizer que o indivíduo X é preconceituoso no sentido em que é definido primeiramente preconceito. Se ele efetivamente acredita na validade dos testes de QI ele está simplesmente fazendo uma mera observação ao dizer que as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens.
Se há dúvidas sobre isso façamos o raciocínio inverso. Suponhamos que X tenha em mãos uma pesquisa na qual se mostre que os resultados obtidos pelos homens em testes de QI são inferiores aos das mulheres. Neste caso nosso X teria que admitir a afirmação: os homens são intelectualmente inferiores às mulheres. Esta seria uma observação do mesmo tipo de Y é homossexual, para alguém que se descobrisse que mantém relações com pessoas do mesmo sexo, ou do tipo Z é amarelo, para alguém que tenha a cor de pele amarela. Não há aí nenhum preconceito. O problema, o grande problema, é que afirmações como estas, muitas vezes, vêm carregadas de um conteúdo que transcende a mera observação, e passa-se, então, a se atribuir à observação um caráter valorativo geralmente depreciativo, e aí está o preconceito. São os casos em que as observações encerram já em si um julgamento de valor negativo, mas que só se consegue descobrir no contexto. Neste caso dizer que Joana é mulher tem muito mais implicações do que a mera observação sobre o gênero a qual pertence; Joana é negra significa muito mais do que uma mera constatação sobre a cor de sua pele; Joana é homossexual não significa uma simples referência a sua opção sexual, Joana é prostituta é muito mais do que uma observação sobre a sua profissão,
É por isto que acredito que a boa definição sobre preconceito passa necessariamente pela definição 3, Preconceito tem a ver com moralidade. Na realidade o preconceito é fruto de uma concepção moral deturpada, ou se quiserem, uma concepção moral moralista.
Na realidade o preconceituoso é antes de tudo um “negador de diferenças”. O preconceituoso acha que tudo aquilo que é diferente de si próprio, pelo mero e único fato de ser diferente de si próprio, é inferior. Existe aqui um forte componente narcísico e egoísta. O preconceituoso não aceita a diferença e vaiara como ruim tudo aquilo que não é feito a sua imagem e semelhança.
O preconceito pode se manifestar de diversas formas. Na sua forma mais rude ele toma o nome de discriminação. O que é discriminação? É a negação de direitos que são reconhecidos como sendo direitos de todo ser humano à determinados grupos ou pessoas em função de pertencerem a determinado gênero, determinada raça, determinada região ou terem determinada preferência sexual ou de crença que é perfeitamente compatível com a liberdade alheia. A discriminação se apresenta sempre de forma manifesta, dos mais diversos modos, passando desde a proibição de freqüentar determinados locais, até a hostilização pública e chegando a discriminação na própria legislação,
Mas o preconceito pode ser também dissimulado, e talvez nesta sua forma de apresentação ele seja tão ou talvez ainda mais nefasto do que a que ocorre na discriminação. O preconceito dissimulado é aquele que se esconde, que opera não ostensivamente, aparecendo nos bastidores e não nos palcos, é aquele que escorrega … É possível aqui estabelecer uma analogia entre esta manifestação do preconceito e as estratégias do poder autocrático. Conforme nos diz Norberto Bobbio:
“Como já afirmei o poder autocrático não apenas esconde para não fazer saber quem é e onde está, mas tende também a esconder suas reais intenções no momento em que suas decisões devem tornar-se públicas. Tanto o esconder-se quanto o esconder são duas estratégias habituais do ocultamento. Quando não se pode evitar o contato com o público coloca-se a máscara. Nos escritores da razão de estado o tema da “mendacidade” é um tema obrigatório assim como é obrigatória a referência à nobre mentira de Platão ou aos discursos sofísticos de Aristóteles. Torna-se communis opinio que quem detém o poder e deve continuamente resguardar-se de inimigos externos e internos tem o direito de mentir, mais precisamente de simular, isto é, de fazer aparecer o que não existe e de dissimular, isto é, de não fazer aparecer o que existe “[25]
A simulação e a dissimulação são características do poder autocrático como afirma Bobbio. Podemos ir além dele afirmando que o preconceito que se dissimula também é uma das estratégias deste poder; poder este que se manifesta nas diversas instâncias da sociedade. Este preconceito que não discrimina ostensivamente, mas que opera nos bastidores, tenta produzir como resultado de seu operar uma discriminação muito mais fina, refinada e talvez por isso mais perversa. E sua perversidade está justamente no seu mascaramento. É como se ele produzisse resultados discriminatórios sem, entretanto fazer aparecer sua fonte. Ao operar deste modo ele se torna extremamente difícil de ser combatido.
Pra continuar nossa análise, vou fazer aqui uma discussão em relação a dois preconceitos clássicos, o preconceito contra os homossexuais e o preconceito contra as prostitutas.
5. O preconceito contra os homossexuais
Como se apresenta o preconceito contra os homossexuais nos dias de hoje? Aqui no Brasil neste fim de século os gays e lésbicas estão realmente sendo aceitos pela sociedade ou trata-se apenas de uma aceitação aparente?
Há vários elementos que devem ser analisados para que se compreenda mais profundamente o que está acontecendo em nossa sociedade no que se refere a esta questão. No plano relativo aos direitos observe-se que houve e há uma resistência enorme a aceitação do projeto de Martha Suplicy que permite a ampliação dos direitos relativos a homossexuais que vivem juntos e constroem patrimônios em comum. Por outro lado há uma série de decisões judiciais que são favoráveis aos homossexuais. No mês de junho de 2000 (só pra dar um exemplo), a Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu por unanimidade que um casal de lésbicas poderia resolver a partilha do patrimônio numa Vara de Família. A decisão desfez o entendimento anterior de que Varas de Família deveriam tratar apenas de questões envolvendo uniões estáveis entre marido e mulher.
Estes dois fatos refletem o que está acontecendo na sociedade brasileira em nível de aceitação do homossexualismo. Na realidade está sendo travada uma luta surda e quotidiana entre aqueles que são partidários, ainda que não se dêem conta, de uma moral preconceituosa que não aceita gays e lésbicas e aqueles que entendem que o direito de se relacionar sexual e afetivamente com pessoas do mesmo sexo é um direito inalienável de todo ser humano. Observe-se, entretanto, e é basicamente para isso que quero chamar atenção, que os partidários desta moral preconceituosa são em muito maior número do que se supõem. Há uma minoria que expressa seu preconceito e muitas vezes até discrimina, mas há também um outro contingente de pessoas, aquelas que não tem coragem de assumir seu preconceito e praticam o que chamamos de “preconceito dissimulado”. Esse preconceito, hipócrita por excelência, acaba se revelando em vários momentos: quando os pais que tem em suas relações amigos homossexuais desabam quando descobrem que seu próprio filho é gay ou quando um casal homossexual centrado, bem resolvido e bem sucedido visita a sua sala de jantar toda noite através das imagens transmitidas pela maior rede de telecomunicações do país em novela no horário nobre, e o público mostra nas pesquisas que prefere a retirada dos personagens da novela.
São estes fatos, estas atitudes e muitas outras, que se manifestam no dia-a-dia que mostram o quanto é grande o preconceito contra os homossexuais, o preconceito que não se revela, o preconceito que não ousa dizer o seu nome. Surge, então, uma outra questão a ser abordada posteriormente que é a questão da dissimulação: porque as pessoas dissimulam o preconceito? Porque elas dizem não ter aquilo que elas de fato tem?
- 6. O preconceito em relação à prostituição
E o preconceito em relação as prostitutas, como se apresenta? Na realidade temos aqui uma das maiores expressões da hipocrisia humana. As mesmas pessoas que utilizam da prostituição são as primeiras a condená-la. A questão básica em relação a prostituição é a seguinte: porque a comercialização do sexo deve ser vista como imoral, se ela é consentida tanto por quem está vendendo seu corpo quanto por quem está comprando? A prostituição só deve ser condenada em dois momentos:
a) quando a pessoa que está se prostituindo está sendo obrigada por alguém ou por alguma condição exterior a ela a fazê-lo, ou seja, não é de sua livre e espontânea vontade (que é a maioria dos casos relativos ao comércio internacional do sexo).
b) quando a pessoa que está se prostituindo é menor de idade, e deste modo, não tem condições de compreender todas as conseqüências de seu ato.
Nestes dois casos a prostituição se torna imoral (a prostituição, claro, e não quem a pratica) Em qualquer outro caso, entretanto, a condenação moral a prostituição é uma condenação moralista e preconceituosa, já que não há nenhum motivo para que se condene a prostituição e não se condene outras profissões que são exercidas sem a vontade legítima de quem a exerce. Na realidade, em todas profissões há os que a exercem porque necessitam, os que a exercem porque gostam e os que a exercem porque necessitam e gostam. Se há algo a ser condenado, este algo deve ser a sociedade em que vivemos que permite e é conivente com a dissociação entre trabalho e realização pessoal. Mas porque os moralistas de plantão nunca pensaram em salvar os bancários, os médicos, os professores, enfim, todos aqueles que estão descontentes com suas profissões exercendo-as apenas por necessidade e conscientizá-los de que devem procurar outras atividades? Porque se pensa que apenas as prostitutas é que estão exercendo suas profissões por mera necessidade e que, portanto, devem ser salvas da perdição?
A questão da prostituição é extremamente complexa. Muitos afirmam que a prostituição é fruto do processo de exclusão social, e que elas(eles) são jogadas(os) neste mercado pela falta de oportunidades de emprego. Obviamente que isto ocorre, ou seja, o desemprego contribui com a prostituição, mas ele não é o único fator a influenciar a prostituição. Há um elemento último fundamental que é a escolha de quem se prostitui e não há como fugir a isto. Em grandes centros urbanos a possibilidade de auferir ganhos com a prostituição para um determinado tipo de mulheres ou de homens (geralmente com juventude e beleza) é muito maior do que a possibilidade de auferir ganhos com empregos que exigem nível de escolaridade médio. E neste caso, ainda que exista a possibilidade concreta do emprego, muitos preferem a opção da prostituição. Trata-se de uma escolha e não de uma imposição.
Este é um dos tipos de prostituição. Há, evidentemente, uma outra situação em que as pessoas se prostituem única e exclusivamente em função de condições econômicas totalmente adversas (o que é o caso de muita gente no Brasil e em países muito pobres em que a prostituição é uma das únicas opções de sobrevivência). Nestes casos há uma espécie de imposição social. A prostituição, que é fruto deste tipo de condição social, tende a diminuir drasticamente a medida em que houver melhor distribuição de renda e adoção de políticas públicas efetivas nos países em que ela existe.
Mas seja qual for o motivo que leva as pessoas a se prostituírem, o fato é que a sociedade é extremamente preconceituosa e cruel com as prostitutas. Apesar de como se diz, ela ser uma das mais milenares profissões, a sociedade atual muitas vezes não concede a ela nem este status, ou seja, o status de ser uma profissão.
Uma das formas de manifestação deste preconceito e desta crueldade é através da violência. Classicamente dividimos a violência em violência física, sexual e psicológica. Os profissionais do sexo são vítimas diárias e quotidianas destes três tipos de violência. A violência sexual muitas vezes ocorre no próprio exercício da profissão, quando alguns clientes se sentem tentados a violar qualquer acordo que tenha sido feito sobre o que é admissível ou não na relação. A ausência do acordo também é motivo para a violação, sob a alegação de que o pagamento significa o poder total sobre o corpo da profissional, o que obviamente é uma visão imoral. Mas a condição a que o profissional do sexo, principalmente a prostituta, se encontra é, infelizmente, extremamente favorável a este tipo de abuso. Não só porque, em função de sua inferioridade física, a possibilidade de uma reação é muito pequena, mas principalmente porque a chance de uma prostituta ver aceita uma reclamação por violência sexual durante o exercício da sua profissão, diante de um tribunal, é praticamente nula.
A violência física a que os (as) profissionais do sexo estão sujeitos (as) também é preocupante. O preconceito é tão forte que faz com que muitos não os (as) vejam como cidadãos (ãs), como pessoas que são sujeito de direitos, exatamente como muitas vezes acontece com os mendigos, homossexuais, travestis etc… E ao não reconhecê-los (as) como cidadãos (ãs), imediatamente há a caracterização do diferente e do inferior. E ao inferior não se respeita, se humilha, se maltrata. Essa é a perversa lógica dominador. A perversa lógica da violência.
Mas a violência psicológica, que no caso eu chamaria de violência moral/psicológica, parece ser a pior, pois se manifesta a todo o momento. A sociedade parece disposta a condenar, a todo momento, as prostitutas e a prostituição. O termo chulo para designar prostituição é usado para designar, nos mais diversos contextos, algo ruim. Conviver com este estigma, como se, a todo momento, a sociedade dissesse ao(à) profissional do sexo que ele está fazendo algo errado é um fardo pesado demais. O que as pessoas e o sistema social como um todo fazem com as prostitutas, condenando-as, é uma maldade, uma violência, uma imoralidade. Uma imoralidade que está diretamente ligada ao preconceito.
- 7. A Dissimulação e a Hipocrisia
Quando fizemos a análise sobre o preconceito em relação aos homossexuais e as prostitutas apareceram os conceitos de dissimulação e de hipocrisia. Dissimular vem do latim dissimulare que significa não revelar os seus sentimentos ou desígnios. Significa, também, obrar dissimulada mente, afetar, não perceber ou não ouvir o que se faz e diz. Não deixar aparecer, cobrir, disfarçar. Não dar a perceber, calar. Fingir, apresentar como escusa. Tornar pouco sensível ou notável; atenuar o efeito de. Ocultar-se, esconder-se. Já hipocrisia vem do latim hypocrisis que significa declamação, ato de representar. Hipocrisia pode significar também a manifestação de qualidades ou sentimentos bons que na realidade não se tem.
A dissimulação e a hipocrisia são alguns dos sentimentos mais perversos do ser humano. O dissimulado mente, engana, finge. Trata o outro sempre como meio, nunca como fim, trata o outro sempre como meio para atingir seus objetivos, não vendo o seu semelhante como um sujeito de direitos, como alguém que tem o direito à verdade, alguém que tem o direito de não, ser enganado. André Comte Sponville escreveu o livro chamado Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Entre estas virtudes ele cita a fidelidade, a coragem, a justiça a temperança, a tolerância a doçura. Se fosse escrito um pequeno tratado dos grandes vícios, a dissimulação, junto com a hipocrisia, estaria entre eles. Curiosamente vem da literatura, através de Shakespeare, as apresentações mais perfeitas sobre o comportamento dissimulado, tanto nas suas obras trágicas, como, por exemplo, no Rei Lear, em Mac Beth, quanto nas comédias como Muito Barulho pra Nada e Medida por Medida.
O comportamento dissimulado está diretamente associado a moral moralista. Se, conforme já vimos, os julgamentos moralistas não são universalizáveis, sendo subjetivistas, o moralista não tem como justificar racionalmente sua atitude. Esta impossibilidade de justificação, em última instância, é a prova de que estamos diante de um modo de valoração errado, imoral. O moralista, pois, não tem como argumentar racionalmente em relação a sua convicção, no fundo ele sabe que ela não se sustenta. Exatamente por isto ele finge. Ele disfarça, esconde e opera na surdina. Ele dissimula. Quando ele não age com dissimulação ele age com autoritarismo. Ele tenta impor a sua concepção, impor o seu modo de valorar. O autoritarismo é a outra face da dissimulação, é a outra face de uma mesma moeda. O que há de comum entre ambos é que eles se distanciam do espaço da argumentação, da racionalidade. Exatamente porque este espaço, o espaço da racionalidade, exige a justificação, e é exatamente esta que não pode ser dada pelo moralista, exatamente porque os julgamentos de valor moralistas não são racionais.
O comportamento hipócrita apresenta um passo a mais em relação ao do dissimulado. O dissimulado finge não acreditar no que acredita, não julgar como julga, já o hipócrita finge não fazer o que faz. A hipocrisia, como podemos ver pela própria origem latina da palavra, traz o elemento da encenação. O hipócrita apresenta-se como sendo quem ele não é e exigindo de todos um comportamento que ele não tem. A hipocrisia também é característica do moralismo, sendo talvez uma de suas expressões máximas. O hipócrita é uma vítima do seu próprio moralismo. Ele mostra através da sua existência as contradições do moralismo. A hipocrisia é um monumento vivo mostrando, através dos séculos, a que ponto podem chegar as manifestações ‘da irracionalidade humana.
- 8. A Moral do egoísmo e do individualismo
A postura moralista, como vimos, caracteriza-se, então, pela irracionalidade e pela inversão de valores. A irracionalidade pode ser vista através da impossibilidade de que universalizemos julgamentos de valor moralistas. A inversão de valores caracteriza-se, justamente, por declarar como certo, como bom, aquilo que é errado ou ruim e como errado ou ruim aquilo que nada tem de ruim ou errado. São característicos deste modo de valoração: o preconceito, a negação das diferenças, a postura ascética, a dissimulação e a hipocrisia, entre outros.
O modo de valoração moralista tem, como sua outra face, a “Moral do Egoísmo”. A Moral do Egoísmo tem origem na Grécia Antiga entre os Sofistas. Trasímaco, um dos mais radicais sofistas, dizia que justiça nada mais é do que a representação dos interesses dos mais fortes, e encorajava seus pupilos a seguir unicamente seus próprios interesses, dizendo que a única coisa que interessa aos indivíduos em uma sociedade é adquirir força e poder. A Moral do egoísmo, sob o nome de Objetivismo, tem na sua versão contemporânea Ayn Rend, (1905-1982) como sua maior defensora. Ayn Rend é uma das responsáveis pela formulação dos princípios “morais” que fundamentam o neo- liberalismo. Ayn Rend nos diz:
“Somente direi que todo sistema político está baseado e se origina em uma teoria ética… e que a ética objetivista é a base moral requerida por este sistema econômico-político que é destruído em todo o mundo, destruído precisamente porque lhe falta defesa e validez moral e filosófica: o sistema norteamericano original, o capitalismo. Se morre, terá sido por abandono, por não ter sido descoberto nem identificado; nenhum outro assunto foi jamais ocultado através de tantas distorções, conceitos errôneos e más interpretações. Hoje em dia, muito poucas pessoas sabem o que é o capitalismo, como
funciona e qual sua história. Quando digo capitalismo me refiro ao capitalismo de “laissez-faire” total, puro, sem controle algum, sem regulamentações, com uma clara separação entre Estado e economia. Um sistema de capitalismo puro assim não existiu jamais nem nos Estados Unidos, já que desde o começo houve uma série de controles governamentais que o limitaram e distorceram. O capitalismo não é um sistema do passado; é o sistema do futuro… se é que a humanidade há de ter um futuro”[26]
Ayn Rend descreve como ninguém a moral do egoísmo, um dos sustentáculos do capitalismo neoliberal. Entre outras pérolas temos:
“Não existe tal coisa como direito a um emprego – somente existe o direito ao livre contrato, quer dizer, o direito de um homem empregar-se se outro homem o escolher para ocupá-lo. Não existe o direito a uma habitação, unicamente o direito a trabalhar em liberdade para construir uma casa ou comprá-la. Não existe o direito a um salário justo ou a um preço justo se ninguém está disposto a pagá-lo, a encontrar colocação para um homem ou comprar seu produto. Não há direitos de grupos especiais, não há direitos de camponeses, de operários, de homens de negócio, de empregados, empregadores, de idosos, jovens ou de ainda não nascidos. Somente existem os direitos do homem, direitos que são propriedades de cada homem individual e de todos homens como indivíduos. O direito a propriedade e o direito ao livre comércio são os únicos direitos econômicos do homem (que de fato são direitos políticos)”[27]
Por mais que Ayn Rend não queira, a sua moral do egoísmo quando aplicada acaba descambando para uma moral altamente individualista, do descompromisso total para com o outro, do “o que me importa é que eu me dê bem”. Trata-se do coroamento da máxima maquiavélica de que “os fins justificam os meios”. Através da moral do individualismo estamos autorizados a fazer qualquer coisa que esteja a nosso alcance, com muito poucos limites, para atingir nossos objetivos. E aí se passa por cima do outro, engana-se, mente-se. Vale tudo e tudo é válido desde que venhamos a nos dar bem. E o “se dar bem” nada mais é do que conseguir dinheiro, bens (às vezes até não muito). Não nos enganemos. É a moral do individualismo que está por trás tanto do ato do adolescente que ataca o outro, chegando a cometer o assassinato, para conseguir o tênis da moda, até o Lalau que desvia o dinheiro da construção de um prédio público para seus bolsos. Entre um extremo a outro, entre o extremo do menino que rouba o tênis até o do grande corrupto, está uma sociedade inteira atônita, onde muitos, nos mais diversos graus, cometem atitudes que derivam da mesma lógica, da lógica do egoísmo, e não percebem.
A moral do individualismo acaba sendo profundamente imoral, exatamente como o moralismo. O que ambas tem em comum é exatamente a sua irracionalidade, mostrada pela impossibilidade total de sua universalização. O moralismo quando universalizado revela-se contraditório, e o egoísmo, universalizado, provoca o caos social.
- 9. A Transvalorização de todos os valores
Se, como vimos, o modo dominante ocidental de valoração, através do moralismo, da moral do egoísmo e de suas variações é tão perverso e pernicioso, tão imoral, nada mais resta a quem tem consciência da sua perniciosidade senão combatê-lo. Este combate nos remete necessariamente a Nietzsche e ao início de nosso artigo. Nietzsche nos fala de uma nova exigência, que é a necessidade de criticar os valores morais, colocando em questão o próprio valor destes valores.
Fazer uma crítica dos valores, colocar em questão o valor dos valores, implica em primeiro lugar em tomar uma atitude de profunda pesquisa e reflexão sobre a sociedade ocidental e sobre o comportamento dos indivíduos. Quais são os princípios de nossas ações? Como julgamos? Será que o que costumeiramente tomamos como certo é efetivamente certo? Uma análise inicial nos remete a tomada de consciência de que a Moral ocidental é profundamente perversa e deturpada. Se aceita a miséria e condena-se o prazer. Quando não se condena o prazer deriva-se para o extremo oposto e em nome dele pratica-se todo o tipo de ações, inclusive aquelas que prejudicam e desrespeitam o outro. Desrespeita-se a diferença e o diferente ou, ao contrário, descambamos para o extremo de aceitar, em nome do respeito a diferença, práticas e comportamentos que desrespeitam profundamente os direitos individuais. Já em nome do respeito aos direitos do indivíduo (como o direito a propriedade e ao livre comércio) admite-se práticas profundamente danosas para o bem comum (como prejudicar o meio-ambiente, estabelecer condições indignas de trabalho). A lista é infindável!
Há de se fazer uma reflexão profunda sobre as práticas recorrentes em nossa sociedade, sobre os nossos valores, sobre a nossa Moral enfim. Esse é o primeiro momento de um processo cujo nome tomamos emprestado de Nietzsche, um processo de transvalorização de todos os valores. O segundo momento deste processo é justamente classificar estes valores em bons valores, ou seja, valores que devem ser mantidos, e maus valores, valores que devem ser recusados e combatidos. Dos valores que assumimos quais realmente deveríamos adotar? Será que os julgamentos que fazemos sobre o que é certo e o que é errado, sobre o que devemos ou não fazer, realmente refletem o que é certo, o que efetivamente deveria ser feito, como efetivamente deveríamos nos comportar. E a nossa prática, como é nossa prática? Estamos sempre dispostos a criticar a imoralidade dos outros, mas será que muitas vezes também não nos comportamos de modo totalmente egoísta e imoral? O terceiro momento deste processo é justamente a construção de novos valores, e, portanto, a mudança da ação, uma mudança de atos, uma nova prática.
Obviamente que estes três momentos do processo de transvalorização não se dão de forma estanque. Acontecem ao mesmo tempo, com vitórias e reveses como em todo processo de transformação. A sua efetivação, entretanto, é imprescindível ainda que mais não seja para a manutenção da vida sobre o planeta Terra. Faz parte da construção de um novo mundo. Um novo mundo que é possível e que mais do que possível é necessário. Mas não nos enganemos. O processo de transvalorização dos valores, de construção de valores novos, valores que efetivamente promovam a vida e a qualidade de vida é longo, penoso e infelizmente exige muitos atos que poderíamos chamar quase de heróicos. Não tenho dúvidas que devemos começar esse processo por nós próprios, ou seja, cada um por si próprio. Que cada um de nós faça uma profunda reflexão sobre a nossa própria prática, nossos mais pequenos atos, nossas atitudes diárias perante nossos familiares, nossos colegas, nossos amigos. Será que nós não agimos muitas vezes de modo moralista ou egoísta? Trata-se de um processo doloroso e duro, no qual corremos o risco de ser mau interpretados e de sofrer. Mas o dia em que cada um de nós tiver transformado a si próprio, teremos, enfim, transformado o mundo!
Elementos reflexivos sobre a
insustentabilidade do desenvolvimento
sustentável na sociabilidade do capital
Andréa Lima[28]
“Não nascemos livres: a liberdade é uma conquista – e mais: uma invenção”.
(Octávio Paz)
Estamos vivenciando mais do que nunca os efeitos sintomáticos do desenvolvimento econômico sem limites que desencadeou um processo de degradação ambiental no mundo inteiro. São crises de ordem econômica, política, social e ecológica assentadas na racionalidade capitalista da produção e consumo que intensificou a degradação ambiental em todo o mundo, considerando que a “pedra filosofal” do capitalismo maduro está na produção pela produção – o produtivismo.
Este produtivismo ilimitado/que se utiliza, cada vez mais, do advento de novas técnicas para aumentar a produção, provoca, necessariamente, o aumento da pobreza. Isto ocorre em virtude da concentração de riqueza que aumenta, substancialmente, as taxas de desemprego no mundo inteiro e implica na degradação do meio ambiente, surgindo, assim, uma questão social e uma questão ambiental a ser entendida e enfrentada como faces de uma mesma moeda. Sobre isto, Bihr (1991:129) adverte: “é então exatamente o modo de produção capitalista em seu conjunto que, ao submeter a natureza aos imperativos abstratos da reprodução do capital, engendra a crise ecológica”.
Não é de estranhar o fato deque os maiores poluidores do planeta sejam os países industrializados. Os EUA[29] lideram o ranking perverso da poluição no mundo. Se hoje temos uma “economia global”, temos, também, inevitavelmente, uma degradação ambiental planetária. No entanto, as conseqüências dessa degradação assumem particularidades. Uma questão se impõe: como chegamos a esta racionalidade econômica na qual o sentido e a essência da natureza foram devorados, usurpados e transformados em mercadoria? Como chegamos a este modelo de desenvolvimento capitalista perverso, homogeneizado e destruído do meio ambiente?
Nas sociedades primitivas, o uso e a exploração da natureza pelo homem era realizado numa espécie de simbiose perfeita, retirando da natureza apenas o que necessitava para a sua subsistência.
A partir do uso e da transformação da natureza, os primeiros hominídeos inventaram as ferramentas simples de pedra, depois aprenderam a usar o fogo. Com o passar dos tempos, imersos no processo evolutivo, passaram a elaborar ferramentas mais sofisticadas para facilitar a atividade da caça, inventando assim, as lanças com pontas. No Paleolítico Superior, os instrumentos eram feitos com ossos. É neste período que se registra o início da arte. Tempos depois construíram o arco e a flecha, e, com as formações das aldeias e também do começo da agricultura (economia doméstica) têm-se as premissas para o desenvolvimento da propriedade privada.
No final da Idade do Bronze, inaugura-se a época da produção de metais e das diferenças sociais, pois os indivíduos se distinguiam pelo cobre e pelo ouro que possuíam. A cada passo da evolução, o homem se viu diante de novas necessidades e é esta busca permanente pela satisfação de suas necessidades que definiu um novo sentido para o uso da natureza: os recursos naturais não seriam usados somente para as suas necessidades básicas, mas serviria para “sustentar” novas necessidades e toda base de produção material.
Para Marx, a relação homem – natureza era antes de tudo, uma relação de transformação. O homem consciente do que a natureza poderia porvir retirava dela o que necessitava, e esta ação era para ambos, transformadora.
“A própria primeira necessidade satisfeita, a ação da satisfação e o instrumento já adquirido da satisfação, conduz a novas necessidades – e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico” (Marx e Engels, 1984: 32).
As necessidades humanas são precisamente históricas, pois elas se alteram, se diluem para consolidação de outras, não há, portanto, um único caminho para resolução destas necessidades, pois elas se diferem, divergem, elas caminham entre o requinte e a brutalidade, entre o que explora e o que é explorado, das necessidades materiais mais básicas de uma classe ao consumo do supérfluo da outra classe.
Se antes, nas sociedades “primitivas”, a produção era voltada para a satisfação das necessidades humanas, na aurora da modernidade o ato de produzir se volta para a produção da valorização do capital.
Com o surgimento do sistema capitalista, aliado ao pensamento mecanicista da época, o sentido da dominação e apropriação da natureza ficou mais latente, tornou-se implacável e ilimitado. A natureza, vista como mero objeto de manipulação e dominação, tornou-se fonte de riqueza e de lucro para o desenvolvimento das forças produtivas.
É imperativo ressaltar que a aceleração do processo produtivo que tem sua base na acumulação do capital provocou crises em todas as esferas da sociedade, porém, o uso predatório e sistemático da natureza alertou para um fato por muito tempo ignorado: a natureza não é uma fonte inesgotável de recursos e deste fato emerge um problema a ser enfrentado: a degradação do meio ambiente.
A degradação ambiental não é um problema contemporâneo, ela se arrasta secularmente, sendo agravada ao longo de toda história. No entanto, o grito silencioso da natureza só seria escutado na década de 60, no paroxismo da Guerra Fria; na aurora dos movimentos que pediam o desarmamento nuclear; sob bombas de Napalm que caiam no Vietnã; da linha dura do Governo de Kruschev; da construção do muro de Berlim; no triunfo da Revolução Cubana; do assassinato de John F. Kennedy; no nascer da Primavera de Praga; das ditaduras latino-americanas; do AI-5 brasileiro; do Maio Francês.
Uma década efervescente, sobretudo no cenário político, uma década em que o autoritarismo fora contestado e combatido, sob variadas formas, em várias partes do mundo, a exemplo dos movimentos de contra-cultura e dos movimentos que pediam uma chance para paz (peace and love). É, portanto, neste cenário histórico que surgem as primeiras inquietações públicas sobre a degradação do meio ambiente, provocada, substancialmente, pelo industrialismo.
Na década de 60, o livro da jornalista Rachel Carson[30], intitulado “Primavera Silenciosa”, causou verdadeira celeuma no mundo inteiro por denunciar as agressões sistemáticas que a natureza vinha sofrendo por parte dos setores industriais.
O sentido e a ação da preservação moderna do meio ambiente tem seu início com o poético e instigante alerta do Best seller de Carson, no qual mencionava que o canto dos pássaros seria apenas uma lembrança no mundo envenenado por pesticidas sintéticos.
O livro “Silent Spring” foi considerado um clássico pelas idéias preservacionistas que continha, instigando a criação de novos movimentos ambientalistas e ecológicos e fortalecendo os movimentos já existentes, publicizando, assim, a complexidade da crise ambiental.
No final dos anos 60, as organizações e movimentos sociais saíram na frente dos órgãos oficiais do governo e deram visibilidade para a crise ambiental, que há muito tempo se instalara no planeta, mas só naquele momento os efeitos desta crise estavam sendo sentidos em larga escala e os problemas advindos da crise postos em debate no mundo inteiro.
A publicação do relatório “The limits of grawth” (Os limites do crescimento econômico) [31] e o fortalecimento dos movimentos ambientalistas possibilitaram uma série de encontros e fóruns internacionais para a discussão das questões ambientais e do desenvolvimento. Este histórico documento denunciava a pilhagem da natureza pelo crescimento econômico ilimitado e irresponsável. O relatório criticava terminantemente o aumento do consumo provocado pelo modelo de desenvolvimento capitalista.
Incentivado por estas e outras denúncias, surge o conceito de ecodesenvolvimento, utilizado em 1973 pelo canadense Maurice Strong, que apresenta o ecodesenvolvimento como proposta alternativa de política de desenvolvimento. Entretanto, foi Ignacy Sachs (1976-1986) que ampliou e formulou os princípios básicos deste conceito, colocando a satisfação das necessidades básicas dos seres humanos como uma meta a ser alcançada; o uso prudente e limitado dos recursos naturais; promoção da gestão participativa e a preservação do meio ambiente natural e construído; a salvaguarda dos valores éticos, da cultura e a criação de um sistema social em que estivesse assegurado emprego, saúde, educação.
De acordo com Leff (2001: 18), antes que qualquer tentativa de efetivação da proposta do ecodesenvolvimento fosse efetivada na prática, o potencial crítico desta proposta foi dissolvido pelas estratégias do poder hegemônico.
Em junho de 1972, aconteceu a antológica Conferência de Estocolmo, que contou com uma delegação de 113 países, que objetivavam a discussão da preservação do meio ambiente e a melhoria do ambiente humano. A “Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Humano” levou a UNESCO, juntamente com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, a criarem, no ano de 1975, o Programa Internacional de Educação Ambiental.
A Recomendação nº 96, desta conferência, apontava a Educação Ambiental como elemento estratégico e crítico para o enfrentamento da crise ambiental e, também, serviu de base para promover a I Conferência sobre Educação Ambiental em 1977, em Tibilisi (URSS), momento em que foram definidas estratégias para nortear e difundir a Educação Ambiental no mundo inteiro. Em Tibilisi, foi referendada a necessidade de incorporar todos os aspectos ambientais, como o político, o social, o cultural, a dimensão ética e a ecologia para a promoção do desenvolvimento ambiental.
Ainda na década de 70, foram produzidos dois importantes documentos: a Declaração de Cocoyok de 1974 e o Relatório de Dag-hammerskjold – este último foi imprescindível para pensar o político, o econômico-social e a cultura como elementos ambientais que, também, sofrem degradações. No documento de Dag-hammerskjold são indicados como problemas ambientais o autoritarismo, o extermínio de etnias e a desvalorização da cultura.
Enquanto relatórios, acordos, protocolos eram criados no marco destas históricas conferências, a população do mundo inteiro e o planeta sofriam com os efeitos catastróficos da degradação do meio ambiente natural e construído. Os países de economia periférica aumentavam o seu endividamento financeiro com as agências internacionais’ (FMI, BID, Banco Mundial); as taxas de desemprego aumentaram praticamente em quase todos os países do mundo; a fome crescia nos países do Sul, na África e Ásia; o agravamento da pobreza tornava-se irreversível; o problema da escassez de água aparecia em várias partes do globo terrestre; o chamado efeito estufa aumentou excessivamente o aquecimento do planeta; a população mundial produz bilhões de toneladas de lixo provocado pelo consumo excessivo; o descuido com o humano e com o meio ambiente produziu acidentes como o de Chernobil; o acidente com o Césio-137 em Goiás; o ambiente tornou-se cada vez mais inabitável, insustentável e desumano.
Para a manutenção de uma sociedade cada vez mais consumista tornou-se oportuno construir uma proposta eficaz para assegurar o crescimento econômico de forma menos destrutiva para o meio ambiente, um desenvolvimento ecologicamente sustentável.
A urgência de soluções para os graves problemas ambientais e as pressões dos movimentos ambientalistas para o enfrentamento da questão ambiental impulsionaram a ONU a criar, no ano de 1984, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente(CMMAD) para avaliar as agressões ambientais e os progressos alcançados na resolução destes problemas. Depois de três anos de intenso trabalho, a referida comissão produziu um relatório que propunha uma estratégia de desenvolvimento sustentável menos radical, se contrapondo às propostas da vertente que difundiu uma concepção de ecologia, digamos assim, mais democrática e menos mercadológica.
O Relatório Burtland, também conhecido como “Nosso futuro Comum”, envolto ao projeto neoliberal, lançou a proposta e o conceito do Desenvolvimento Sustentável como um “processo que permite satisfazer as necessidades da população atual sem comprometer a capacidade de atender as gerações futuras”, confluindo assim, a produção e o acúmulo do capital com o caráter da preservação, do crescimento econômico com “limites”.
É imperativo ressaltar que, nas entrelinhas deste relatório, está o discurso da política neoliberal e da defesa da globalização. A proposta do Desenvolvimento Sustentável foi forjada no transformismo[32], comumente usado pela classe dominante.
Apesar do Relatório Burtland identificar fossos sociais enormes entre os países, de relatar que a dívida dos países do terceiro mundo agrava ainda mais os seus problemas ambientais e que as estratégias de desenvolvimento dos países industrializados são insustentáveis para o meio ambiente; a comissão propõe uma política de consenso com saídas diplomáticas e sem radicalidade para o enfrentamento da pobreza nos países de economia periférica. Propõe, tão somente o empenho das Nações Unidas para melhorar a qualidade de vida no planeta. Para Leff, “O discurso da ‘sustentabilidade’ leva, portanto, a lutar por um crescimento sustentado, sem uma justificação rigorosa da capacidade do sistema econômico de internalizar as condições ecológicas e sociais (de sustentabilidade, equidade, justiça e democracia) deste processo” (2001: 19).
A partir desta nova concepção acerca do Desenvolvimento Sustentado proposto pelo Relatório Burtland, foi decidido na XLIV Seção da Assembléia Geral das Nações Unidas, através da resolução 44/228, que a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento aconteceria no Rio de Janeiro em Junho de 1992 (Rio-92). A resolução, também, indicava os principais pontos a serem discutidos nesta Conferência: proteção da atmosfera; proteção da qualidade da água doce; proteção das áreas oceânicas e marítimas; combate ao desmatamento, desertificação e seca; conservação da diversidade biológica; controle de dejetos, principalmente químicos e tóxicos; erradicação da pobreza e melhorias da qualidade de vida e de trabalho no campo e na cidade; proteção das condições de saúde.
Na Rio-92 foram reunidos 114 Chefes de Estados; 170 Delegações Oficiais; representantes do FMI e do Banco Mundial e mais de 3000 ONG’s[33] para discutir sobre a Questão Ambiental e o Desenvolvimento. Além dos muitos acordos entre os países, foi aprovado durante a conferência dois importantes documentos: a carta da Terra e a Agenda 21.
A Declaração do Rio, conhecida também como Carta da Terra, é um belíssimo texto que versa sobre os anseios, desejos e vontades de todos os povos do mundo, colocando na centralidade da discussão sobre o Desenvolvimento Sustentável, o ser humano, além de consagrar o direito dos países pobres ao desenvolvimento. É sem dúvida um incentivo à paz, à cooperação e à participação. Trata-se, na verdade, de um tratado para o presente e para as gerações futuras.
A Agenda 21 é o chamado produto central da conferência, “trata-se de documento político com compromissos assumidos pelos Estados, traduzidos em ações concretas, sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Será uma espécie de guia da cooperação internacional para as próximas décadas, pois as ações que estiverem nela contempladas terão melhores condições de receber cooperação internacional para a sua realização?[34].
A Conferência do Rio de Janeiro marcou historicamente as discussões acerca dos problemas ambientais pelo fato de trazer, para o debate sobre o meio ambiente, o problema da fome, as disparidades econômicas e sociais entre os Países do Norte e do Sul; a dívida externa dos países pobres e dos Estados em Desenvolvimento. Realizada num caleidoscópio multi-racial, multicultural, de etnias, crenças, ideologias e interesses distintos, tinha de tudo: dos “ecochatos” às organizações comprometidas com a degradação humana e ecológica, das propostas que sinalizavam para erradicação da pobreza ao jogo de impobridades das forças políticas hegemônicas para a manutenção e funcionamento do mercado.
Das várias sessões de debates, ocorridas durante a Rio-92, merecem destaque dois acontecimentos: a recusa dos EUA (representado pelo ex-presidente George Bush) em não assinar o acordo que obriga os países a reduzirem em 20% a emissão de gases poluentes e o momento da discussão sobre Diversidade Biológica, em que alguns países ricos, liderados pelos EUA, lançaram a proposta de que a Diversidade Biológica de um país fosse “patrimônio comum da humanidade”, o que causou uma divisão entre os países que defendiam a soberania do seu território, entre eles o Brasil.
Sem tirar o mérito da Conferência, a sua importância, relevância e contribuição histórica para a discussão da questão ambiental e da construção de possibilidades para um mundo realmente sustentável, é importante ressaltar que houve também na Rio-92 propostas absurdas de internacionalização da biodiversidade em nome do mercado consumidor. Na sessão que tratava da erradicação da pobreza não vimos, por exemplo, a construção de um protocolo com objetivo de colocar um fim na dívida externa dos países pobres.
As propostas e os acordos de cooperação, firmados na Rio-92 sobre desenvolvimento econômico sustentado; mudanças climáticas e biodiversidade foram condensados como plano de ação que deveria ser executado pelos países que referendaram a Agenda 21. Mas o que mudou depois da implantação da Agenda 21? Quais as mudanças substanciais alcançadas na melhoria da qualidade de vida nos países periféricos? O que mudou no continente africano? Houve empenho dos países desenvolvidos para a erradicação da pobreza? Os direitos humanos foram ampliados para promoção do desenvolvimento humano?
Estamos distantes, exatamente, uma década da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ocorrida em 1992 e as indagações feitas anteriormente sobre as possíveis mudanças que ocorreriam com a efetivação da Agenda 21 são dúvidas elementares que podem ser respondidas através da complexidade que a realidade expõe quanto à situação dos países pobres que estão cada vez mais pobres; da destruição das florestas tropicais em mais de 2,5% só nos anos 90; através da pauperização cada vez mais crescente de milhões de pessoas no mundo inteiro. A resposta para saber se houve empenho e concretude das ações contidas na Agenda 21 para um ambiente mais “limpo”, sustentado e humano é necessariamente histórica e objetiva.
Apesar de importantes, as estratégias preservacionistas, as micro-ações cotidianas, os esforços da implementação das Agendas 21 Locais, os protocolos e acordos firmados, o trabalho das ONG’s e da sociedade civil organizada, não surtiu o efeito desejado, ansiado e construído de forma coletiva no que confere ao combate à pobreza; à mudança no padrão de consumo; à proteção e promoção da saúde humana; do comprometimento dos países ricos em doar 0,7% do PIB para ajudar no desenvolvimento dos países pobres. Transcorridos dez anos, passamos do simulacro “do muito ter sido feito” para o real e o que a história nos mostra, algo que o projeto capitalista foi capaz de realizar ao longo do seu intenso processo produtivo: uma degradação ambiental continuada e a decrepitude dos valores éticos e morais do ser humano.
É imperativo saber, que não houve imobilismo no enfrentamento dos problemas ambientais, mas mudanças no alvo a ser atingido. O modelo de desenvolvimento hegemônico que de fato é o maior responsável pelos impactos que o meio ambiente vem sofrendo, tornou-se a partir do conceito e da ilusão do discurso do Desenvolvimento Sustentável algo conciliável com o patrimônio comum da humanidade: a natureza. O que subordinou, fragmentou e destruiu a natureza para a reprodução do capital, apresentou-se como um caminho conciliador entre a economia, o equilíbrio ecológico e melhoria das condições de vida da população mundial.
Minha crítica transita os espaços das centenas de ações “ecológicas reformistas” que não tocam no ponto nevrálgico do problema ambiental: o produtivismo. A racional idade produtiva não é atingida, pelo contrário, é reinventada, renovada com práticas e idéias de um ambientalismo mercadológico que abre o caminho para a (re) apropriação da natureza na “nova” ordem econômica. Segundo Bihr (1991: 133),
um reformismo ecológico é possível. Pode-se, de fato, conceber muito bem que os movimentos sociais e/ou os Estados conseguem impor aos industriais e às administrações normas e controles obrigatórios em matéria de ocupação das paisagens e do uso da exploração das riquezas naturais de modo a favorecer modos de produzir e de consumir que não só sejam mais ecológicos, mas, além disso, abram novos caminhos para acumulação do capital. Isso já acontece no que diz respeito à indústria de reciclagem de resíduos industriais que prometeria um belo futuro na perspectiva do desenvolvimento de um capitalismo ecologicamente reformado.
Sabe-se hoje que os efeitos danosos do neoliberalismo e da “globalização” no campo da política e da economia contribuíram, também, para intensificar a degradação do meio ambiente no decorrer dos anos 90, agravando, assim, os problemas ambientais discutidos na Rio-92.
Pela via do neoliberalismo e pelo fenômeno da globalização, têm-se o advento de novas técnicas para gerar investimentos, suprir e ampliar o mercado que é cada vez mais competitivo, temos um Estado cada vez mais forte para atender aos interesses das corporações transnacionais e das agências multilaterais e um novo ethos social, construto da mundialização capitalista. Um ethos perverso, individualista, fragmentado e que vê, ainda, a natureza como mais uma ferramenta a ser manipulada, subjugada, coisificada, mercadorizada.
Segundo dados do Fundo Mundial da Natureza (WWF), divulgados no “Relatório Planeta Vivo 2002”, o ser humano está usando 20% a mais dos recursos naturais do que o planeta é capaz de repor e em 2050 estaremos consumindo o dobro da capacidade dos recursos provenientes da terra. A exploração da natureza pelo modelo de desenvolvimento passou do limite que o planeta pode suportar, de acordo com o relatório.
O retrocesso no âmbito da questão ambiental foi geral, tanto no que confere ao ecológico quanto nas outras dimensões da vida social. A poluição atmosférica causa mais de três milhões de mortes por ano no mundo; as emissões do gás carbono aumentaram consideravelmente nos anos 90, talvez pelo fato dos países industrializados estarem motivados com a campanha dos EUA contra o Protocolo de Kioto[35]. Estamos diante de um fato que vai marcar profundamente esta década, a produção de alimentos que nunca foi capaz de saciar a fome, (em virtude dos interesses econômicos-políticos da burguesia) será possivelmente diminuída nos próximos anos. Estudos recentes da ONU colocam a questão do aquecimento global numa relação direta com a produção de alimentos, “os países mais pobres serão os mais afetados, pois poderão perder seus potenciais de produção em razão das mudanças climáticas[36]”.
Os acordos multilaterais sobre Meio Ambiente no que se refere ao combate à pobreza, à transferência de tecnologia e da redução dos níveis de poluição nos países industrializados foram completamente ignorados, pois a resolução destes problemas remete necessariamente, à extinção do modelo de desenvolvimento predatório hegemônico.
A Conferência de Johannesburgo, intitulada de Rio+10, foi uma tentativa de validar o que tinha sido discutido e acordado na Rio- 92, se constituindo em mais uma busca das Nações unidas em (re)estabelecer metas para a promoção do Desenvolvimento Sustentável.
A maioria das ONG’s presentes na, Cúpula da Terra criticaram o Plano de Ação Global construídos na Rio+ 10, pois não fixava metas ou avanços fundamentais sobre o desenvolvimento dos países pobres, como a questão da dívida externa; a transferência de recursos e de tecnologia; dos subsídios para a exportação agrícola etc. De acordo com Andrew Hewett da ONG inglesa Oxfan, o encontro foi “o triunfo da ganância e do interesse pessoal, uma tragédia para os pobres e para o meio ambiente[37]“.
As discussões acerca da energia foi um ponto de impasse da conferência. Como já era de se esperar, os EUA como maior consumidor de petróleo do mundo, tratou de derrubar as iniciativas que ampliaria as fontes renováveis de energia, como a solar e a eólica[38], descartando qualquer mudança mais radical no uso dos combustíveis fósseis.
Os impasses ocorridos na Cúpula da Terra, a falta de soluções concretas para o desenvolvimento dos países periféricos e o descumprimento dos muitos acordos firmados anteriormente nas antológicas conferências sobre Meio -Ambiente são velhos pleonasmos que descambam para um mundo cada vez mais degradado, pauperizado, estranhado, espoliado, no qual a liberdade humana é solapada pelos acordos ambientais subservientes às regras do jogo da ordem societal, das regras da OMC, FMI, do Banco Mundial e do unilateralismo americano.
O que se viu foi uma reunião acontecer num clima tenso de uma nova guerra: a guerra “preventiva” de Bush. Os acontecimentos do 11 de Setembro nos EUA respingaram no mundo inteiro. Em nome da “guerra contra o terror”, direitos políticos, civis e sociais foram cerceados em quase todos os continentes. O etnicismo, o racismo, a xenofobia e o genocídio são símbolos desta nova guerra nociva ao gênero humano e ao planeta. A Rio+ 10 é contemporânea ao momento em que os EUA e países da União Européia intensificam a campanha de internacionalização da Amazônia.
Tudo isso acontece em plena crise do Oriente Médio, mediante o provável ataque americano ao Iraque. Os Chefes de Estados, delegações e participantes da conferência assistem a derrocada do Estado de Direito, vêem o autoritarismo triunfar, presenciam a redução da qualidade de vida das populações pobres. Assim, a Rio+ 10 aconteceu no cenário insustentável do projeto de Desenvolvimento capitalista para o meio ambiente.
A incompatibilidade entre o atual padrão de produção e consumo e o Desenvolvimento Sustentável é visível. Somente com o passar de uma década frustrada para o meio ambiente, temos a clareza de que a trilha percorrida para a sustentabilidade ambiental fracassou, se perdeu na ideologização do discurso do Desenvolvimento Sustentável globalizado e na sua artificialidade de preservação ambiental, equidade, justiça e de direitos para os povos do presente e para as gerações futuras. E este fracasso não está somente assentado na ação predatória dos indivíduos em suas vidas cotidianas, mas ancorado ao mercado mundializado e aos seus instrumentos eficazes de produção e reprodução da ordem vigente.
O discurso ideológico de cunho neoliberal do Desenvolvimento Sustentável que propõe a “satisfação das necessidades da população sem comprometer a capacidade de atender às gerações futuras “foi devorado pelo consumismo voraz dos países industrializados. Hoje estamos além da capacidade de recursos que a biosfera pode prover. As promessas de combate à pobreza e de promover o desenvolvimento dos países pobres propagadas nos fóruns internacionais não têm condições objetivas de efetividade frente aos interesses do capital internacional.
Os acordos comerciais internacionais como o NAFTA, a OMC e o projeto estratégico de ordem político, econômico e militar para as Américas – ALCA e o Plano Colômbia são indiscutivelmente destrutivos para o meio ambiente. Tanto estes, como os protocolos, os acordos de cooperação para o meio ambiente tirados nas conferências da ONU são, na maioria das vezes, instrumentos para anexar, regular e aumentar a dependência dos países periféricos e em desenvolvimento.
Estes acordos multilaterais mercadorizam a natureza, promovem o genocídio de etnias, segregam os povos ameríndios, põem em risco a segurança alimentar da população mundial, criam barreiras comerciais, definem regras que impedem a autonomia dos países do Sul. São metas de um desenvolvimento que compromete o direito às necessidades mais básicas da população: o direito de comer e beber água potável; o direito à saúde, educação, ao saneamento. Compromete o direito à liberdade de orientação sexual e coloca em xeque a possibilidade da efetivação dos direitos humanos e coletivos.
Desta forma, a proposta de Desenvolvimento Sustentável, mergulhado no caldo sexista; privatista; de massificação cultural; do novo colonialismo imposto aos países periféricos; da política de desemprego e aniquilamento das leis trabalhistas contidos no caldeirão do neoliberalismo, surge com o objetivo de “ordenar” o ambiente, promovendo seu “equilíbrio” em consonância com o mercado “global”. Portanto, esta proposta é funcional à hegemonia sócio-econômica que degradou o ambiente, tornou a natureza um mero objeto da produção e do consumo, dilacerando, de forma cada vez mais intensa, os valores morais da socialidade humana.
É urgente a unificação das lutas em torno da construção de propostas alternativas anti-capitalistas. E preciso subverter esta (des) ordem mundial, pois os movimentos ecológicos e ambientais por si só, não apresentam mudanças significativas para o meio ambiente, uma vez não explicitam a necessidade das transformações na estrutura complexa da sociedade. Sobre isto, Benjamim(1990:21) comenta:
o movimento ecológico não conseguirá impedir que se renovem, nessa fase expansiva do capitalismo, os velhos traços que determinaram a nossa exclusão: o aumento da dependência, o controle da tecnologia de ponta e da capacidade de inovação, a homogeneização artificial de padrões de produção e consumo, a internacionalização da economia sobre o controle de empresas oligopolistas e assim por diante. Dentro do novo, renova-se o velho, que é a concentração de riqueza e poder, em detrimento da maioria dos homens, mesmo num mundo um pouco mais limpo.
A crise ambiental deixou de ser uma preocupação exclusiva da Ecologia e dos movimentos ambientalistas para ser entendida como uma problemática econômica/política e social. É preciso inserir o movimento ambientalista numa agenda sócio-política que busque uma nova sociabilidade humana, não limitando sua intervenção num campo reformista de propostas que perpetuam o projeto burguês.
Diante da produção em larga escala da escassez, da desigualdade social e da insustentabilidade ambiental, o florescer da inconformidade é eminente. Há sinais de resistência no mundo inteiro, há um leve cheiro de rebeldia no ar.
Os protestos anti-globalização dão indícios de uma longa batalha a ser travada contra o grande capital. É imperativo a articulação entre os movimentos: sindicatos, partidos políticos de esquerda, trabalhadores(as) rurais, sem-terras, sem-tetos, organismos de defesa dos direitos humanos, movimentos feministas, movimentos ecológicos etc. O Fórum Social Mundial, as manifestações em Seattle, em Praga, em São Paulo são prelúdios que anunciam que os movimentos sociais estão vivos, estão tecendo novos sonhos, redesenhando utopias, outra sociabilidade é possível, é urgente. Desta forma, qualquer proposta de desenvolvimento que venha conciliar meio ambiente e mercado é inviável, inverossímil. A proposta para um ambiente sustentado não pode ser pensada fora de alternativas emancipatórias.
BIBLIOGRAFIA
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BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa (O movimento operário europeu em crise). São Paulo: Boitempo, 1998.
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MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: teses sobre Feuerbach. São Paulo: Moraes, 1984.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.
Crítica à teoria da justiça como
equidade de John Rawls
Maria Alexandra Monteiro Mustafá*
- 1. Considerações preliminares sobre a teoria da justiça como equidade
A teoria da justiça como equidade, elaborada por John Rawls, surge num contexto liberal, como proposta ético-política que põe em discussão a questão da desigualdade social, sem considerar as bases de fundamentação do modo de produção capitalista.
A concepção de sociedade, presente na teoria rawlsiana, é de que a sociedade é uma cooperativa onde todos produzem e todos ganham neste processo de “cooperação”. No entanto, para Rawls, nesta sociedade existem desigualdades que podem ser minimizadas graças ao “princípio da diferença” que regularia uma sociedade futura, desde que as vantagens obtidas por um grupo social não impliquem em desvantagens para o outro grupo social. Com isto, ambos os grupos – os menos avantajados e os mais avantajados – sairiam ganhando e isto se constituiria num processo de “justiça como equidade”.
Esta pretensão se consolidaria a partir de uma proposta neo-contratualista que resgata o pensamento de Kant, numa perspectiva a – histórica, numa tentativa de oferecer alternativas ao utilitarismo clássico de Bentham e ao neo-utilitarismo, amplamente disseminado nas sociedades capitalistas.
Rawls contrapõe a sua contundente crítica ao utilitarismo e a J autores notoriamente liberais, tais como Nozick e Ackerman, numa tentativa de constituir-se como alternativa ao liberalismo /1 disseminado por estes dois pensadores. No entanto, a discordância entre tais pensadores e Rawls não se constitui uma questão de caráter fundamental, visto que, como afirmado anteriormente, todos se posicionam no âmbito do liberalismo, havendo entre eles uma divergência conceitual, mas não de posicionamento político. Para uma melhor compreensão da teoria rawlsiana, faz-se necessário um resgate das teorias contratualistas e de sua reatualização nos dias atuais, especialmente no que concerne ao contratualismo kantiano. É isto que tentaremos fazer a seguir.
- 2. O Neocontratualismo
O neo-contratualismo floresce neste século como tendência filosófico-política que retoma os conceitos fundamentais da tradição das teorias do contrato desenvolvidas entre o início dos ‘600 e o fim dos ‘700, tendo como principais representantes: Tomás Hobbes, John Locke, Jean Jacques Rousseau e Emanuel Kant.
A idéia básica desta tendência é que o contrato está na origem da sociedade e é o fundamento do poder político. O contrato marca a passagem do estado de natureza ao “estado” social e político. Mesmo se todos os teóricos contratualistas convergem com esta base comum, as suas perspectivas são diversas com relação à natureza do contrato, à definição do estado de natureza e à proposta ideal de organização sócio-política que deve emergir do contrato, dando origem a posturas diversas no interior do próprio contratualismo.
Para os fins deste ensaio, interessa-nos mais de perto, a perspectiva contratualista kantiana na qual o contrato originário, ou pacto social, segundo Nedel (2000:30), “enseja a passagem do estado de natureza, onde qualquer posse é tão provisória, para o estado civil em que posse e propriedade são peremptórias, com a finalidade de possibilitar o exercício do direito natural, através da coação. A constituição do estado civil é dever moral, porque o estado de natureza é de injustiça permanente, de liberdade desenfreada, sem lei externa. Pelo contrato opera-se a renúncia de toda posse particular e liberdade exterior, bem com a união de todas as vontades particulares e privadas de um povo numa vontade comum e pública. Embora seja idéia pura da razão, tem uma realidade objetiva,’ a de obrigar cada legislador a instituir leis como se derivassem da vontade comum de todo um povo, e de considerar cada cidadão como se tivesse dado seu consentimento”.
A retomada das idéias contratualistas conserva a linha teórica de fundo, mas reformula e atualiza os conceitos, no sentido de propor um novo pacto que possa refundar as estruturas da organização política, sublinhando o papel das leis e das constituições. Tomando como referência a teoria dos jogos, o neo-contratualismo se preocupa em estabelecer as regras que deverão orientar o comportamento dos contratantes nas suas relações sociais e políticas que constituem a dinâmica do jogo. Por isto, o neo-contratualismo é uma teoria de caráter precisamente fictício, distante de uma análise realística da sociedade e cria uma situação hipotética na qual sujeitos hipotéticos deverão executar escolhas também estas hipotéticas sobre os princípios que fundamentam as regras a serem estabelecidas.
Em oposição direta ao utilitarismo, o neo-contratualismo se define como teoria deontológica, que reconhece no contrato o procedimento típico, através do qual se constituem os princípios que devem reger a vida comum.
John Rawls, enquanto um dos principais seguidores desta teoria filosófico-política, confere ao neo-contratualismo um caráter ético, através da introdução de princípios de justiça que estão na base das escolhas das regras sociais. Com efeito, a justiça se torna o objeto central da teorização de Rawls que a define em termos de equidade. Graças à importância que tal teoria assume no debate filosófico-político atual, e à originalidade que caracteriza a vinculação ao pensamento kantiano- especialmente por aquilo que se refere às inovações de conceito como “posição originária” e “véu de ignorância” como condições exigidas para assegurar a imparcialidade do sujeito moral – a tomaremos em análise, renunciando assim a outras teorizações da mesma corrente de pensamento.
- 3. A teoria da “justiça como equidade” de John Rawls
O debate político-filosófico intensificou-se nos ano (2Q) com a teorização feita por John Rawls, através da sua obra mais famosa – Uma teoria da justiça. A postura do autor é definitivamente contratualista e resgata o pensamento de Locke, de Rousseau e especialmente de Kant, mesmo se podendo encontrar aí elementos de uma figura de ética inspirada em Hobbes.
A influência hobbesiana pode ser identificada quando se entende que a teoria da justiça se insere no âmbito das teorias éticas que privilegiam a discussão não da melhor vida possível para o homem, mas a escolha das regras de colaboração para a convivência social. Em outras palavras, o contratualismo de Hobbes é entendido “como o pacto social celebrado pelos indivíduos entre si onde todos renunciam cabalmente seus direitos naturais e os atribuem a um terceiro. Assim, supera-se o estado de natureza e institui-se o estado social, com a escolha de quem há de representar as pessoas, ou seja, soberano” (Nedel, 2000: 29). Segundo esta interpretação, Rawls teria transformado a teoria do contrato de teoria política em teoria moral, na qual “O contrato se torna apenas mais um artifício lógico, um método construcionista,para esclarecer, explicitar, e aplicar as intenções comuns acerca da justiça” (Abbà, 1995: 115). Em outras palavras,visão contratualista, pelo fato de ser essencialmente de natureza ética, utiliza o artifício contratual para determinar e justificar as regras de justiça, escolhidas por sujeitos racionais e livres.
Aqui se pode perceber uma outra dimensão da tradição hobbesiana, isto é, a preocupação da definição das características dos sujeitos contratantes. Todavia, Rawls recupera claramente de Kant o conteúdo desta definição, quando descreve os sujeitos como racionais,livres e iguais, e considera estas condições como indispensáveis à realização do acordo ou contrato na posição originária. A posição originária, portanto, não é somente um conceito de base kantiana, mas reflete exigências, derivadas da postura hobbesiana, de definir as condições ideais para que sujeitos entrem em acordo sobre consideradas justas. A idéia mesma de posição originária pode ser entendida como aquela do estado de natureza em Hobbes. Todavia, Rawls sobre este aspecto se aproxima muito mais ao pensamento de Locke[39] e de Rousseau[40], já que não se preocupa em analisar a situação do homem antes do contrato especificamente de assegurar condições iguais para que o contrato aconteça e seja estabelecido em comum acordo com todos.
Rawls define a sua teoria como essencialmente deontológica, segundo a qual a ação moral é conforme as normas, de justiça, e se opõe a teorias teleológicas, realizando em modo especial uma forte crítica ao utilitarismo que vem entendido por ele como a teoria cujo critério de Justiça, das escolhas e do agir, sendo maximização de um valor ou de um fim,se constitui como critério não moral, mas reduzido ao útil ou ao bem-estar social.
As motivações filosóficas e éticas extraídas do pensamento de Kant reconduzem à idéia de que os princípios morais são objeto de escolha racional, de pessoas livres e iguais e, por isto, não e encontram em uma situação de heteronomia, ou seja, condicionadas por desejos ou movidas por interesses particulares. Só nesta condição de autonomia, as pessoas estão em grau de definir as regras morais que devem guiar a sua conduta na comunidade.
A adoção do conceito kantiano de autonomia induz Rawls a idealizar uma situação hipotética por ele entendida como posição originária, caracterizada por um véu de ignorância, isto é, pela completa desinformação sobre suas posições na sociedade e sobre os fatores históricos ou sociais que possam condicionar os seus interesses. Em outros termos, a posição originária constitui o ponto de vista do qual o eu noumênico[41] vê o mundo e pode escolher em’ modo imparcial e livre os princípios para a formação de uma sociedade bem ordenada sobre princípios da justiça como equidade.
Rawls justifica sua interpretação sobre o pensamento de Kant nestes termos: “Creio que Kant defende a idéia de que uma pessoa age autonomamente, quando os princípios da sua ação são escolhidos por ele como a expressão mais adequada possível da sua natureza de ser racional, livre e igual. Os princípios em base aos quais age não são adotados em função da sua posição social ou dos seus dotes naturais, ou em função do particular tipo de sociedade em que vive, ou daquilo que lhe ocorre querer. Agir em base a estes princípios significaria agir em modo heterônomo. O véu de ignorância priva a pessoa na posição originária do conhecimento que a mantém em grau de escolher princípios heterônomos” (Rawls, 1983: 216).
A posição originária é uma situação hipotética que poderia representar, como já dissemos, a substituição do “estado de natureza” nas teorias contratualistas modernas e a pretensão de assegurar a imparcialidade, já que desvinculamos os sujeitos dos seus condicionamentos históricos, isto é, pressupondo a ignorância sobre as suas posições na sociedade, admite a possibilidade da escolha de princípios universais, não correspondentes a interesses particulares.
Com este artifício, Rawls se distancia de uma visão realista e fundamenta sua teoria sobre a base de uma concepção abstrata de homem desvinculado da vida concreta, do concreto sócio-político-cultural e econômico das suas relações de classe e dos vínculos comunitários e familiares. Pode-se dizer, antes de tudo, que esta concepção de homem abstrato e a – histórico vai de encontro a suas pretensões de consideração da pessoa moral como pessoa racional, já que na sua concepção, a capacidade de planejar a própria vida vai acontecer sem o referimento à realidade.
Além disto, a própria concepção de sujeito moral está comprometida no sentido de que se o véu de ignorância pressupõe a ausência de qualquer concepção de valor e qualquer noção de bem, isso priva as pessoas da capacidade de realizar uma verdadeira escolha; as pessoas não colocam em ato a sua faculdade de decidir à base de convicções éticas e por isto não se percebem como sujeitos de conduta moral, capazes de serem virtuosos e não somente de agir segundo as regras estabelecidas. Ao privilegiar a imparcialidade como condição capaz de assegurar a igualdade e como forma de alcançar princípios universais, Rawls despreza a realidade objetiva e subjetiva, descuida da história e, sobretudo, do homem na sua globalidade, na sua identidade e na sua consciência de ser historicamente situado.
A este propósito, convém ressaltar as reflexões de M. Toso que se pergunta: “Como é possível, partindo do ‘véu de ignorância’ dos contraentes, desprovidos de qualquer sistema de valores e de bens sociais objetivos para superar a heteronomia e o utilitarismo, conseguir a adesão de uma figura de sociedade assim qualificada e caracterizada como aquela liberal social? Só confundindo o plano da ética geral, dos princípios fundamentais e gerais, com o plano da ética particular” (Toso, 1989: 72).
Estas considerações nos conduzem à discussão sobre os aspectos mais controversos na teoria rawlsiana: aquele do primado do justo sobre o bem e aquele da separação entre ética pública e ética privada.
Os autores, que dão sustentação à crítica do primado do justo sobre o bem, apresentam pontos de vista diversos: alguns entendem que o neo-contratualismo rawlsiano afirma o primado do justo sobre o útil e não sobre o bem; outros reconhecem uma concepção implícita do bem no interior da justiça como equidade, a qual se revela na idéia de uma justiça substantiva; e, finalmente, outros ainda admitem a recusa total por parte de Rawls de defender uma teoria do primado do bem, dada a dificuldade de alcançar um consenso sobre as concepções de bem nas sociedades modernas, caracterizadas pelo pluralismo.
Antes de tudo, Rawls admite que o justo e o bem são os dois conceitos da ética. Todavia ele considera que somente as teorias teleológicas têm o primado do bem sobre o justo e, entre estas, o utilitarismo é aquela que coloca em relação às duas noções na forma mais simples, na medida em que identifica o justo com a maximização do bem. A crítica contra o utilitarismo incide sobre o fato de que este, ao definir o bem como satisfação de um desejo racional, toma em consideração o conceito de bem como valor pertencente ao senso comum e assim generaliza a concepção daquilo que poderia ser a escolha racional de um só homem.
Além disto, ao afirmar que a justiça requereria a condivisão do maior bem possível à maioria, o utilitarismo justifica a perda da liberdade de poucos para compensar a maior vantagem de outros, o que é inconcebível na teoria de Rawls que dá a prioridade ao direito à liberdade como primeiro princípio da justiça.
Ora, aqui se pode constatar que Rawls leva em consideração uma noção redistributiva de bem, como sinônimo de útil, e desconsidera todas as outras teorias teleológicas entre as quais a heudaimonia aristotélica, que defende a idéia do bem como realização de um fim, como felicidade ou a vida boa. Todavia, como reconhece Antonio Da Re, “sempre em ‘uma teoria da justiça’ a separação entre justo e bem vem ulteriormente reproposta com uma intencionalidade que vai além da polêmica com o utilitarismo e da simples identificação do bem com o útil” (Da Re, 1998:46).
Como dissemos anteriormente, Rawls define a sua teoria como teoria substantiva da justiça e, neste sentido, se pode falar de uma concepção implícita do bem. Com efeito, a idéia de justiça como equidade se fundamenta sobre dois princípios básicos que se inspiram nos valores de liberdade (prioritariamente) e da igualdade. Os dois princípios, segundo Rawls, são o fruto de um acordo entre pessoas morais, cujo interesse comum “não é o de entrar a fazer parte de uma dada sociedade ou o adotar uma determinada forma de governo, mas o aceitar certos princípios morais” (1981: 31). Estes são apresentados nos seguintes termos: “1- cada pessoa tem um igual direito à mais extensa liberdade fundamental compativelmente com uma liberdade similar para os outros; 2- as desigualdades sociais e econômicas devem ser combinadas em modo de ser a) racionalmente previstas em vantagem de cada um, b) relacionadas a cargos e posições abertas a todos “(1981: 66).
Entre estes princípios o primeiro tem prioridade sobre o segundo e se refere aos direitos civis e políticos entendidos como as liberdades fundamentais que se traduzem politicamente como direito ao voto – ativo e passivo – liberdade de palavra e de reunião, de consciência e de pensamento, ·direito à propriedade pessoal, inadmissibilidade de prisão e detenção arbitrárias. O segundo princípio tem como objeto a distribuição da riqueza e da renda, a estrutura dos organismos caracterizados por diferenças de autoridade e responsabilidade e pressupõe que as diferenças e desigualdades na distribuição de renda não devem provocar dano a ninguém, porque em tal caso seriam injustas; são, porém, admitidas se provocam vantagem não a poucos ou a muitos, mas a todos, e em particular aos menos avantajados.
Do ponto de vista dos pensadores que se podem definir comunitaristas, isto revela não uma concepção parcial, mas uma precisa concepção do bem, isto é uma concepção liberal individualista. Em outras palavras, aquilo que vem apresentado como um mero procedimento de tipo formal que torna possível a formulação dos princípios de justiça, na realidade se baseia em uma concepção antropológica e política, na qual o homem, enquanto ser racional, é livre de direcionar o próprio plano de vida como melhor lhe convém, e a política constitui o nível que estabelece um status comum de igual cidadania, através da democracia constitucional. Neste sentido, a principal tese de Rawls consistiria em defender a idéia da sociedade liberal, através da configuração de uma democracia constitucional. Assim não se trataria de uma teoria neutra ou ausente de uma concepção do bem, mas de uma teoria consistentemente fundamentada em uma antropologia e em uma filosofia política com tendência teórica bem definida e traduzida nos termos do liberalismo individualista. Exatamente por isto, o argumento fundamental da crítica dos comunitaristas consiste em desmascarar a ilusoriedade de uma pretendida neutralidade do justo.
Aqueles que afirmam a inexistência de uma concepção sobre o bem se baseiam na idéia defendida pelo próprio Rawls, de não levar em consideração as diversas concepções de bem implícitas nas doutrinas religiosas, filosóficas ou políticas, que constituem o mundo dos valores das pessoas na posição originária, isto é no momento da escolha dos princípios de justiça. Estamos, portanto, diante de uma teoria procedimental que, reconhecendo no pluralismo a dificuldade de alcançar um consenso sobre a noção de bem, privilegia o valor da liberdade, sem, porém, dar-lhe a fundação ética necessária, e nem mesmo uma justificativa da sua razão de ser. Trata-se de uma liberdade entendida em sentido formal, ou como afirma M. Toso, “uma liberdade pela liberdade, uma liberdade sem abertura e adesões a bens humanos concretos e sem fundamento e não pode constituir, em última análise, uma base moral coerente para o agir sócio-político construtivo de uma “sociedade justa” (Toso, 1989: 71).
Além disto vale considerar que nem estes princípios nem os critérios de racionalidade que definem a posição originária constituem objeto de escolha por parte dos contraentes. Este fato pode ser interpretado como uma recusa à adoção de uma concepção de bem ou, por outro lado, como uma opção por uma teoria parcial do bem.
O fato é que, na sua obra Uma teoria da justiça, Rawls se atribui a tarefa de elaborar uma teoria substantiva da justiça, mas se defronta com a dificuldade do pluralismo em relação às concepções do bem, problema que tenta enfrentar no seu livro posterior Liberalismo Político. Todavia, a sua tentativa de resolver a questão do pluralismo se mostra insuficiente, favorecendo o surgimento de críticas que o acusam de manter a dicotomia entre público e privado e a defesa de uma neutralidade do Estado em relação a concepções de bem definidas como particulares.
A dicotomia entre público e privado se explicita na condição de véu de ignorância que caracteriza os contraentes na posição originária, já que, como temos visto, esta prescinde das concepções de valores dos indivíduos. Isto significa que as concepções particulares de bem são excluídas no processo de escolha de princípios universais que serão adotados pelo Estado como regra constitucional. As pessoas privadas, enquanto seres racionais e portadores de uma própria concepção de bem, são livres de agir conforme esta concepção, quando saem da situação de véu de ignorância, mas têm a obrigação de respeitar os princípios universais anteriormente acordados.
Com isto, o Estado se abstém de adotar uma concepção de bem particular e assim é salvaguardada a sua neutralidade. Em última análise, coloca em realce uma concepção de justiça universal e pública, à qual todos devem obedecer, e uma multiplicidade de concepções particulares de bem que regula a vida privada de cada um. Trata-se, portanto, de uma postura ética que, na sua relação com a política, prescinde da condição de sujeito moral, já que elimina a possibilidade de participação do homem com os seus valores e as suas convicções morais, no momento da definição dos princípios e deixa total liberdade para sua expressão nas relações privadas, como se estes fossem separados da vida pública e política.
Segundo Rawls, o pluralismo se põe como problema devido à dificuldade de encontrar um consenso sobre os princípios de justiça entre as diversas doutrinas compreensivas. Por isto, em Liberalismo Político o autor apresenta como solução desta dificuldade a possibilidade de um consenso por intersecção, que corresponde à aceitação de princípios de justiça, fundados em razões não coincidentes, ao invés do consenso strictu sensu, que pressuporia a unificação das razões que fundamentam os respectivos princípios.
Segundo a interpretação de João Rosas, a postura rawlsiana considera o pluralismo por razões pragmáticas, como uma problemática do contexto histórico atual e não por razões filosóficas e isto não lhe permite chegar ao “eixo central da Filosofia Moral contemporânea e às disputas já clássicas sobre a natureza dos conflitos de valores e obrigações morais” (Rosas, 1997: 555), o que aconteceria se Rawls elaborasse o estatuto teórico do pluralismo.
Com efeito, a desvalorização da filosofia é também registrada por Höffe, que identifica em Rawls a tentativa de colocar sobre o mesmo plano a Weltanschauung religiosa, filosófica e política. As doutrinas compreensivas articulam valores e virtudes no interior de um sistema, mas ao subscrever todas como Weltanschauungen, Rawls “modifica a competência (ou tarefa) de uma filosofia da democracia” no sentido que “deve requerer aquela renúncia que está no centro de Liberalismo Político, isto é não pode mais admitir que a filosofia vá em busca de Weltanschauengen verdadeira ( true doctrine)”. Isto significa negar à filosofia o papel de “juiz no sentido kantiano de instância crítica” e a capacidade de refletir “sobre como uma sociedade, apesar da presença de Weltanschauengen rivais, alcance princípios de justiça comuns e, A partir disto, assegura a estes seja uma legitimidade, seja confins precisos”. (Höffe, 1995: 47).
A ausência do fundamento filosófico na reflexão rawlsiana conduz à adoção do consenso por intersecção sobre uma concepção política (e não mais moral) de justiça. O consenso por intersecção se baseia na idéia de que as doutrinas compreensivas são caracterizadas por uma racionalidade, entendida como capacidade de ordenar fins e meios necessários à consecução dos fins, e de uma razoabilidade, que consiste na disposição à cooperação e implica a capacidade do sentido de justiça e a aceitação do desacordo.
Segundo Rosas é nesta base que Rawls encontra justificativas para considerar a “justiça como equidade” objeto de um consenso por intersecção: “Na situação inicial de escolha, as partes devem selecionar os princípios que especificam o conceito de justiça, a partir de um menu fornecido pela história do pensamento político[…]. Tanto a descrição da posição originária como os princípios de justiça que os representantes escolherão devem ser avaliados por nossas convicções mais profundas. O objetivo deste procedimento é, segundo Rawls, aquele de alcançar um equilíbrio reflexivo entre a constituição hipotética e as nossas convicções” (Rosas, 1997: 560).
Todavia, segundo o mesmo autor, Rawls não resolve de modo satisfatório o problema do pluralismo, no sentido de que uma sociedade bem ordenada, entendida como sociedade democrática, deve conviver com o pluralismo e por isto admitir o desacordo também sobre a concepção de justiça, o que é incompatível com a proposta de justiça como equidade. Em outras palavras, o consenso por intersecção é impossível em uma sociedade democrática que, por sua natureza é essencialmente pluralista. Além disto, a introdução do problema do pluralismo nas sociedades democráticas requer que se evidencie a questão do próprio conceito de sociedade bem ordenada e não apenas o tema da justiça, isto é, exige a consideração dos fins e não só dos procedimentos ou dos conceitos referentes aos meios necessários para alcançar estes fins. .
Para entender melhor o contexto da discussão sobre o pluralismo faz-se necessário analisar o percurso feito entre o primeiro livro, Uma teoria da justiça e o segundo livro, Liberalismo político. Como dissemos anteriormente, a passagem entre uma obra e outra é caracterizada pela mudança de postura ética para uma postura predominantemente política.
No primeiro livro, a dimensão ética’ se define nas condições de escolha dos dois princípios de justiça, e a dimensão política se refere à escolha das instituições conforme aos respectivos princípios. Esta última se realiza com a saída dos indivíduos da posição originária, com a eliminação do véu de ignorância e com o empenho para a construção de formas institucionais que sejam em conformidade aos dois princípios de justiça. a procedimento consiste em aplicar tais princípios às instituições sociais, políticas e econômicas em maneira similar àquela adotada pelas democracias constitucionais. Neste processo, podem ser identifica das três fases consecutivas: a fase constituinte, que estabelece um status estável comum de igual cidadania e realiza a justiça política; a fase legislativa, que define as políticas sociais e econômicas, em condição de igualdade de oportunidade e de liberdade, dando a prioridade aos mesmos avantajados; e a fase aplicativa, sob a responsabilidade de juízes e administradores que adequam as normas aos casos particulares, o que implica o respeito da parte dos cidadãos.
O objetivo principal de Uma teoria da justiça é aquele de conciliar justiça e liberdade, e assim responder aos problemas considerados fundamentais nas sociedades liberais e democráticas modernas. O autor parte da idéia de que “a sociedade é uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que, nas suas relações recíprocas, reconhecem como vinculadas certas normas de comportamento e que, para a maior parte, agem de acordo com isto” (Rawls, 1983: 22). Neste sentido, a sociedade é um sistema de cooperação que tem como objetivo avantajar aqueles que dela participam. Todavia, esta sociedade é também marcada por conflitos de interesse. Daí se deduz a necessidade da existência de princípios de justiça que possam regular a distribuição da riqueza, causa principal do conflito de interesses. Por isto, “uma sociedade é bem ordenada quando não somente é voltada a promover o bem-estar dos próprios membros, mas é também regulada em modo efetivo por uma sociedade em que 1) cada um aceita e sabe que outros aceitam os mesmos princípios de justiça e 2) as instituições fundamentais da sociedade satisfazem geralmente, e em modo genericamente reconhecido, estes princípios” (Rawls, 1983: 22). Porém, segundo Rawls, as sociedades existentes são raramente bem ordenadas, especialmente porque não existe um consenso sobre o que é justo ou injusto.
Convém então perguntarmo-nos que coisa é justo ou injusto para Rawls. A tal pergunta ele responde que o justo e o injusto não correspondem a situações de igualdade ou desigualdade, porque estes são “fatos naturais”; as desvantagens econômicas, sociais, culturais são manifestações da distribuição natural e por isto não são justos nem injustos em si. A injustiça ou justiça se encontra no modo em que as instituições sociais tratam estes fatos. As sociedades aristocráticas ou de castas, por exemplo, são injustas porque as suas instituições reforçam o ordenamento injusto, mas como o ordenamento social não é imutável, os homens podem condividir princípios eqüos que se traduzam em benefício comum.
Tais reflexões nos induzem a pensar que a teoria de Rawls não é de forma alguma teleológica. Com efeito, ele elabora um modelo de sociedade que pretende resolver os problemas da injustiça nas sociedades modernas e o define “justiça como equidade”. Em tal perspectiva a “sociedade é interpretada como uma empresa cooperativa para a vantagem recíproca. A estrutura fundamental é um sistema público de regras que definem um esquema de atividades que induz os homens a agir juntos de modo tal que possam produzir a maior quantidade de benefícios e que assegura a cada um certas pretensões reconhecidas como uma quota de produtos” (Rawls, 1983: 99).
Partindo destas concepções e coerentemente com sua visão liberal, ele admite a existência dos desavantajados como uma coisa inerente à organização social, onde o papel da justiça consiste em “reparar” estas desigualdades, no sentido de aumentar os benefícios a favor dos menos avantajados, para reduzir a diferença entre os membros da sociedade.
Para alcançar este objetivo, Rawls se serve do princípio de separação e daquele de diferença. Estes princípios são complementares e interdependentes. a primeiro se refere às condições necessárias para que se estabeleça a igualdade de tratamento e de oportunidade para todas as pessoas, o que significa prestar maior atenção àqueles que são menos dotados ou em posição social menos favorável. Isto corresponde a investir nos desavantajados, porque as desvantagens são imerecidas. Materialmente isto é possível, por exemplo, se investe na educação dos menos inteligentes ao invés de naquela dos mais dotados. Já que as desvantagens são imerecidas, a separação constitui uma obrigação moral da sociedade. Neste ponto, Rawls se refere à idéia democrática da Revolução francesa: liberdade, igualdade, e fraternidade. Ele afirma que esta última foi subvalorizada pelas sociedades democráticas e que só um sistema de cooperação e de reciprocidade pode assegurar o bem-estar de cada um.
O princípio da diferença “requer que as maiores expectativas dos mais avantajados contribuam com as perspectivas daqueles que o são menos” (Rawls, 1983: 93). Aqui se trata, portanto, de colocar em ato os princípios da justiça distributiva, no que se refere à distribuição da riqueza nas relações entre o todo e as partes, mas Rawls se limita a especificar o dever do Estado em modo muito restrito, como garantia da ordem pública, a segurança ou providências eficazes para a saúde e a incolumidade pública, promovendo o interesse comum. Em síntese, compete às instituições assegurar a todos, em modo igual, as condições necessárias para realizar os próprios objetivos. O seu ponto de vista é de que existe uma igual cidadania, de modo a agregar as expectativas de quem está pior e através das estruturas fundamentais da sociedade regular a distribuição dos benefícios da cooperação social.
As modificações apresentadas no segundo livro reafirmam a idéia de uma concepção política da justiça em termos de democracia constitucional, mas aprofundam os princípios que podem justificar politicamente tal postura. Em primeiro lugar, ele reafirma a autonomia desta concepção em relação a qualquer doutrina compreensiva, já que esta assegura a adesão das diferentes doutrinas. Isto significa a reafirmação da neutralidade do Estado, na medida em que este não adere a uma doutrina compreensiva particular, mas adota como modelo uma concepção de justiça formulada em base a conteúdos da cultura política comum e por isto capaz de ser aceita por todos os cidadãos.
A natureza política do segundo livro é definida já no início, quando Rawls apresenta as motivações básicas da sua reflexão, partindo do pressuposto da ausência de um consenso sobre estruturas políticas nas sociedades democráticas: “A história do pensamento democrático dos últimos dois séculos mostra claramente que não existe, hoje, um acordo sobre o modo como se deveriam organizar as instituições de base de uma democracia constitucional, se quer que satisfaçam equos termos de cooperação entre os cidadãos considerados livres e iguais” (Rawls, 1993: 24).
Por isto – continua Rawls – “o liberalismo político está à busca de uma concepção política da justiça que possa conquistar, em uma sociedade de que é regra, o consenso por intersecção de doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis” (Rawls, 1993: 28). Neste sentido, a concepção política da justiça se apresenta como teoria autônoma, o que significa, para uma parte constitutiva essencial que se adapta a várias doutrinas compreensivas razoáveis, as quais têm uma existência duradoura na sociedade por essa regulada, e encontra nestas uma base de sustentação; e isto significa que pode ser apresentada sem dizer ou saber ou hipotetizar a quais destas doutrinas pertença, ou em qual encontre uma base de sustentação” (Rawls, 1993: 30).
Com isto permanece clara a tese do Estado neutro, porque não adere a uma particular concepção de justiça e porque não interfere nas concepções particulares do bem de cada cidadão, já que estes são livres de manifestá-las nas suas relações privadas. A justiça, portanto, não é virtude dos indivíduos isolados, mas objeto de aplicação de domínio público, isto é do Estado, o que confirma uma concepção de justiça essencialmente política. Deste ponto de vista, o conceito de política se opõe expressamente àquele da tradição filosófica clássica, que pressupõe a participação do cidadão livre e constitui a atividade por excelência na vida da cidade. Em Rawls, a participação se reduz à escolha dos princípios de justiça e, à obediência das regras extraídas destes princípios. Tal participação pode ser considerada ainda mais reduzida, se admitimos que a escolha tem as características de uma ficção, no sentido de que os sujeitos entram em acordo sobre regras de justiça, cujos princípios estão já previamente estabelecidos. Como afirma o próprio Rawls sobre a determinação dos princípios de justiça; estes funcionam como imperativos categóricos, no sentido kantiano, porque orientam o agir e são independentes dos objetivos particulares de cada um.
Os requisitos para uma concepção política da justiça consistem essencialmente no fato de que o objeto da justiça como equidade é a estrutura básica da sociedade, entendida como “o complexo das principais instituições políticas que combinam em um sistema unificado de cooperação social que sé estende de uma geração à outra” (Rawls, 1993:29). Estas estruturas básicas são responsáveis pela determinação das oportunidades de vida dos indivíduos na medida em que regulam a distribuição dos bens sociais primários, tais como a liberdade, as oportunidades, a renda e a riqueza. O papel dos cidadãos é aquele de respeitar as regras acordadas e de avaliar a validade e suficiência da concepção publicamente aceita: “Esta concepção fornecerá um ponto de vista publicamente reconhecido pelo qual todos os cidadãos poderão examinar, um de frente ao outro, se as suas instituições políticas e sociais são justas, o que Ihes colocará em grau de fazê-Io invocando aquelas que entre elas são publicamente reconhecidas como razões válidas e suficientes que esta mesma concepção tenha identificado” (Rawls, 1993: 29).
- 4. Dificuldades ético-políticas da “Teoria da Justiça como Equidade”
No seu conjunto, a proposta moral e política de Rawls constitui uma resposta à problemática por ele considerada fundamental nas sociedades democráticas, isto é, a ausência de um consenso sobre o modo em que se deveriam organizar as instituições de base de uma democracia constitucional de forma justa e equa.
Esta postura não leva em consideração a experiência histórica do Estado social enquanto tentativa das respectivas sociedades ao realizar em modelo consensual de conciliação entre liberdade e justiça. Com efeito, nas suas obras, Rawls quase nunca se refere nem ao Estado social, nem ao socialismo enquanto tal e por isto se pode dizer que as suas propostas se referem estritamente a um modelo de sociedade liberal. Esta recusa em considerar o Estado social e o socialismo, ao nosso entender, indica a negação destes modelos de Estado como proposta ideal da organização social: não se trata apenas de uma recusa do ponto de vista histórico, isto é, da análise da experiência concreta do Estado social e do socialismo real, em função de uma postura abstrata e idealista, mas revela uma escolha política que se apresenta como alternativa ao modelo de Estado social.
Antes de tudo, podemos dizer que a própria lógica do neocontratualismo, enquanto postura teórico-filósofica, é aquela de propor um novo acordo social, um novo contrato, em base à constatação de que a forma de organização social precedente é insuficiente e indesejável. No caso específico da teoria rawlsiana, o modelo precedente é aquele do Estado social, mas ele não se coloca o objetivo de reformá-Io ou de reprojetá-lo. Com efeito, tomando como base os princípios da justiça, da democracia e também, marginalmente, da solidariedade, o autor poderia evidenciar que estes são os princípios já idealizados pelo Estado social. Ao invés disto, ele opta por uma consideração abstrata e a – histórica, como se o debate sobre estas temáticas encontrasse eco somente ao nível das teorias políticas. Mas torna presente as dificuldades do pluralismo e aquelas de encontrar um consenso sobre as doutrinas compreensivas e, assim mesmo, se põe como objeto de suas considerações o ponto central do debate atual, caracterizado pela relação entre ética e política, não o contextualiza no âmbito do Estado social.
Todavia, não se pode negar que sua reflexão teórica não discuta as problemáticas centrais do Estado social, isto é, a justiça e a democracia. O problema que emerge então é a natureza desta reflexão que, antes de tudo, parece ser centrada na necessidade de reformulação dos procedimentos necessários a uma sociedade constitucionalmente democrática, ou mesmo em uma postura ética procedimental na qual a relação com a política vem colocada de maneira formal e não substancial.
Tomando as devidas distâncias de um referimento histórico realístico por quanto se refere aos princípios do Estado social, o mesmo se verifica por quanto se refere ao conteúdo do consenso, isto é, o modo como se deveriam organizar as instituições de base da sociedade democrática. É evidente a ausência de referimento às organizações sociais, econômicas e políticas que colocam em ato os princípios básicos do Estado social através das estruturas administrativas e as medidas de distribuição da renda ou de promoção da democracia.
Se tomamos em análise a postura rawlsiana sobre aquilo que consideramos os princípios básicos do Estado social veremos que, naquilo que se refere à visão de democracia – ponto central de sua reflexão – a chave das divergências se encontra exatamente na conceituação. A visão defendida por Rawls se distancia daquela idealizada pelo Estado social, entendida como valor que realiza os direitos civis, políticos e sociais e que constitui o eixo propriamente dito das relações sociais e das relações que se estabelecem entre cidadão e Estado. Enquanto valor, a democracia se apresenta como modo de vida que caracteriza a convivência social e não pode ser desvinculada do referimento aos fins, ao telos e ao ethos da comunidade. Por isto os princípios que a fundamentam não podem ser vistos apenas como pontos de referimentos formais, como faz Rawls, mas como conteúdo essencial do mundo vital. Rawls tem a pretensão de assegurar a conduta moral dos indivíduos, através da definição prévia de princípios, também estes morais, mas a dificuldade reside na não consideração dos fundamentos, dos valores que inspiram estes princípios, na exclusão do mundo vital e com isto na impossibilidade do homem-cidadão colocar-se como sujeito moral.
Não existem novidades na definição dos direitos civis e políticos que correspondem àqueles já estabelecidos nas sociedades liberal democráticas. Estes são entendidos em termos de igual cidadania e buscam assegurar a liberdade como valor prioritário. A liberdade é discutida no âmbito da controvérsia da liberdade positiva ou negativa, mas especialmente em relação às restrições legais e constitucionais. Para Rawls, a liberdade é “uma certa estrutura das instituições, um certo sistema de normas públicas que definem direitos e deveres [. ..] É constituída por três elementos: os agentes como seres livres, as restrições ou limitações de que são livres, e aquilo que são livres de fazer ou não fazer” ( Rawls, 1983: 176-177).
Esta é uma compreensão da liberdade como algo formal e não enquanto valor. O próprio Rawls estabelece a diferença quando afirma que “a liberdade e o valor da liberdade são distintos no seguinte modo: a liberdade é representada pelo sistema global das liberdades de igual cidadania, enquanto o valor da liberdade para as pessoas e os grupos é proporcional à sua capacidade de promover os próprios fins no interior da estrutura definida pelo sistema. A liberdade enquanto igual liberdade é a mesma para todos; […]. Mas o valor da liberdade não é o mesmo para todos. Alguns têm maior autoridade e riqueza e, portanto, maiores meios para alcançar seus objetivos” (Rawls, 1983: 178). Aqui se evidencia a tendência já assinalada na teoria rawlsiana de estabelecer uma dicotomia entre público e privado. A liberdade, enquanto valor, recai no âmbito do privado e é delimitada pelas possibilidades oferecidas pela liberdade definida em âmbito público.
Neste sentido, o valor da liberdade é intimamente vinculado à racional idade, à capacidade de desenvolver um plano de vida próprio, que incluem as concepções do bem, mas ao mesmo tempo essa é determinada pelas condições objetivas que permitem ou não a realização deste plano de vida, e aqui entram em jogo as regras de convivência, o princípio de diferença e os procedimentos estruturais concernentes à justiça social. Visto nestes termos, o valor da liberdade não fundamenta o direito à Iiberdade, assim como os valores do homem livre não fundamentam a legislação do homem cidadão. A dicotomia entre o público e privado se estende à condição do homem como indivíduo e como cidadão. Não existindo continuidade entre um e outro, não se pode esperar na realização de planos de vida, que pressupõem um homem como ser unitário.
Por isto, o conceito de liberdade rawlsiano não só não realiza a democracia, mas também não se aplica à solução dos problemas das sociedades liberal-democratas, porque não responde à necessidade de identidade que caracteriza as sociedades atuais; não cria nem mesmo instrumentos de participação que favoreçam a inserção do cidadão no âmbito da política em modo a transformar a política em uma atividade por excelência da vida social.
Além disto, a liberdade ao construir o ponto de partida da sociedade idealizada por Rawls, identificada na escolha dos princípios de justiça, apresenta dois problemas fundamentais. O primeiro se refere à condição de autonomia, expressa no “véu de ignorância” e requerida pela posição original, que coloca entre parênteses a condição de seres conscientemente dotados de vontade. O segundo problema diz respeito à base mesma dos princípios de justiça e aos sujeitos sociais que concorrem à sua definição. Segundo as propostas do consenso por intersecção, estes princípios emergem de uma síntese das teorias do pensamento político e sugerem a idéia de conter os pontos comuns de uma cultura política, também esta entendida como comum. Mas a quem se pode atribuir a tarefa da síntese? Parece que aqui se encontra o ponto fundamental de divergência entre Rawls e Habermas, no sentido de que este último propõe um consenso sob a base de um diálogo, no qual todos os participantes tenham igual direito à argumentação. Rawls, ao contrário, evidencia a importância das estruturas que possam assegurar os direitos de cidadania.
Por quanto se refere à justiça social, Rawls a considera em termos de “equidade” e fundamenta a sua reflexão baseando-se nos princípios de separação e de diferença, os quais orientam a determinação da divisão, das vantagens e subscrevem um acordo sobre a correta distribuição das quotas, isto é, dos benefícios e das perdas da cooperação social. Admitindo, porém que as desigualdades são fatos naturais e não merecidos, é tarefa da sociedade realizar a justiça social: “É a estas desigualdades, que provavelmente pertencem de modo inevitável à estrutura fundamental de toda sociedade, que devem ser, antes de tudo, aplicados os princípios da justiça social. Estes princípios regulam depois a escolha de uma constituição política e dos principais elementos do sistema econômico e social. A justiça de um esquema social depende essencialmente do modo em que são repartidos os direitos e deveres fundamentais, das oportunidades econômicas e das condições sociais nos vários setores da sociedade” (Rawls, 1983: 24).
Antes de tudo, a justiça vem considerada como “o primeiro requisito das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento” ( Rawls, 1983: 21), e o critério daquilo que é justo vem definido no tratamento das desigualdades. Estas considerações definem o caráter essencialmente procedimental do tipo de justiça de que fala Rawls. A postura adotada se distancia de uma interpretação das desigualdades como fenômeno social e histórico, enraizado na questão social, que é a tese central do Estado social. Assim, a justiça social não se põe como resposta aos problemas da questão social, e toda a sua teorização se distancia de qualquer referimento às determinações sócio-político-econômicas das desigualdades. O que importa para Rawls é a igual cidadania e por isto a discussão se concentra nas formas legislativas e constitucionais que garantem os direitos.
Quando fala de justiça como eqüidade, Rawls se refere exatamente a esta igual cidadania e por isto não se refere necessariamente à teoria aristotélica da justiça, segundo a qual eqüidade significa correção de leis não conformes à justiça: “A natureza mesma da Eqüidade é a retificação da lei onde esta se revela insuficiente pelo seu caráter universal” (Aristóteles, Ética a Nicomaco V, 14, 1137 b 26). Apesar disto, não se pode negar que, mesmo se não o admite, Rawls propõe uma justiça como eqüidade que, em última análise, é uma proposta de reparação, de correção das leis consideradas injustas, e por isto se aproxima à concepção aristotélica.
Em conformidade ao que acabamos de afirmar, podemos dizer que ele utiliza também os conceitos de justiça distributiva e de justiça comutativa e, por quanto se refere à justiça social, podemos dizer que utiliza um conceito frágil. Isto se explica pelo fato de que a sua teoria considera os objetos específicos da justiça distributiva, isto é a distribuição dos bens comuns e as condições em que esta se verifica, ou melhor, as relações entre o todo e as partes, e considera ainda as relações de ganho e perda entre os privados. Considera também que os bens comuns são fruto da colaboração social, mas não se preocupa com as relações entre as classes ou sujeitos coletivos, objeto da questão social, e nem mesmo coloca em discussão as causas estruturais que determinam as desigualdades, o que conduziria a uma revisão não apenas das estruturas legislativas, mas também das estruturas econômicas e da natureza das relações sociais.
Partindo deste raciocínio, se a existência dos mais avantajados e dos menos avantajados é um fato natural, não é necessário modificar as instituições de modo a promover a eliminação ou evitar as desigualdades; faz-se necessário reduzir estas últimas e favorecer a distribuição em base ao critério da reciprocidade, em conformidade à teoria econômica (teoria dos jogos), que estabelece a regra do maximin. Segundo esta regra “é preciso observar o sistema do ponto de vista do indivíduo representativo mais desavantajado”; com isto “as desigualdades são permitidas quando maximizam ou, ao menos, contribuem geralmente a melhorar, as expectativas de longo período do grupo menos afortunado da sociedade”. Em outras palavras, “a regra do maximin indica que se deve classificar as alternativas segundo o seu pior resultado possível: devemos adotar a alternativa cujo pior resultado é superior ao pior resultado das outras” (Rawls, 1983:136-138).
Esta regra pressupõe que a satisfação das maiores expectativas dos mais avantajados não resulta necessariamente na perda por parte dos menos avantajados, mas na medida em que o sistema é visto na sua globalidade “cada aumento deste tipo vai em vantagem destes últimos” já que “as maiores expectativas dos privilegiados cobrirão provavelmente os custos da formação profissional, e encorajarão melhores prestações, contribuindo deste modo para o bem-estar geral”( Rawls, 1983: 142).
Neste aspecto, Rawls não apresenta nada de novo em relação às medidas redistributivas adotadas pelo Estado social através da atuação da medida fiscal como elemento de socialização da riqueza, com a intervenção do Estado através das políticas sociais voltadas à realização do bem-estar coletivo.
Um outro aspecto a considerar é que ele exclui o Estado do papel de mediador nas relações entre os mais avantajados e os menos avantajados, visto que não vê uma ligação causal entre ganho e perda na produção da riqueza social. Por isto, a intervenção do Estado é indireta, se dá na distribuição da renda final e não se ocupa de regular as relações que estabelecem ganho e perda, como as relações de trabalho. Com isto, Rawls limita a aplicação dos direitos sociais e a noção mesma de justiça social, que requer uma justa distribuição nas relações de trabalho, o que reformularia a condição mesma de “desavantajados”.
Neste sentido, podemos dizer também que ele se aproxima à lógica utilitarista (tão combatida por ele) pela maximização do bem-estar, quando justifica a distribuição em base a um cálculo generalizável e não em base a critérios qualitativos, como aquele dos direitos sociais e da dignidade da pessoa humana. Com efeito, esta proposição é apenas teórica e matematicamente favorável aos “desavantajados” porque permite a continuidade das relações que produzem as desvantagens e se apresenta como ilusão de privilegiá-los no ato da distribuição. Em última análise, a teoria da justiça como eqüidade se revela como insuficiente para realizar a justiça social e, em muitos aspectos, se apresenta ainda mais retrógrada em relação às propostas apresentadas a este respeito pelo Estado social.
No tocante ao valor da solidariedade, estamos de acordo com a interpretação dos comunitaristas, que consideram a hipoteca individualista da teoria rawlsiana fundamentada em concepção abstrata e a – histórica do sujeito humano. O argumento defendido pelos comunitaristas se refere às assim chamadas “circunstâncias de justiça” que, segundo eles “evidenciam o caráter contingente, frágil das relações sociais, expostas constantemente ao risco do conflito e da violência” e faz com que Rawls elabore “uma teoria defensiva, na qual a justiça entra em campo para opor-se à possível dissolução provocada pela explosão de contrastes” descuidando assim “aquelas condições (família, comunidade, grupos de várias naturezas) [, ..] nas quais as relações humanas são vivifica das pela solidariedade e pelo espírito de doação”( Da Re, 1998: 49).
As circunstâncias de justiça são definidas por Rawls como “as condições normais através das quais a cooperação dos homens é possível e necessária” (Rawls, 1983: 117). A cooperação social é vista, portanto, como a característica essencial da vida em sociedade, mas esta última é marcada também por uma contradição fundamental: a coexistência de identidade e conflitos de interesses. Se a identidade torna possível uma vida melhor para todos, o conflito de interesses, originado pela tomada de consciência da diferente repartição dos benefícios sociais, faz com que os homens prefiram sempre uma quota maior para si mesmos. As circunstâncias de justiça são exatamente as condições objetivas (especialmente a escassez moderada de recursos) e subjetivas (o recíproco desinteresse pela ocupação dos outros) que exigem a aplicação da justiça para tornar possível a cooperação social. Em outras palavras, “as circunstâncias de justiça se dão no caso em que pessoas reciprocamente desinteressadas apresentam pretensões conflitantes sobre a divisão dos benefícios sociais, em condições de escassez moderada. Se estas circunstâncias não existissem, faltariam as condições para a virtude da justiça, exatamente como, em ausência de ameaças e danos à integridade de uma pessoa, não existiria’ nenhuma ocasião para a coragem física” (Rawls, 1983: 119). Além disto, continua Rawls, “a justiça é, portanto, a virtude de práticas sociais nas quais existem interesses em conflito, ou nas quais as pessoas se sentem autorizadas a impor os próprios direitos sobre os outros. Se fosse possível uma comunidade de santos que condividem um ideal comum, esta seria isenta de discussões sobre a justiça” (Rawls, 1983: 120).
Isto não significa necessariamente que o homem seja egoísta, mas um ser orientado por um plano de vida próprio que o conduz a objetivos diversos uns dos outros. Estes planos de vida estão fundamentados em concepções de bem, também estas diversas, que refletem a multiplicidade de crenças religiosas e filosóficas, e de doutrinas políticas e sociais existentes. Admitindo que tais concepções do bem não são levadas em consideração na posição original, a teoria da justiça como eqüidade convida o homem ao individualismo na medida em que cada um deve imaginar a si mesmo em qualquer posição social se encontre. Ninguém é convidado a pensar nos outros, mas a prever as situações ideais para a própria condição na sociedade futura. Neste sentido, não entra em jogo virtude da solidariedade, mas se trata essencialmente de reforçar a existência de condições que favoreçam os planos individuais de cada um. Os procedimentos que constituirão as regras de justiça e de reciprocidade são igualmente vazias de conteúdo de solidariedade, porque não se preocupam em desenvolver relações solidárias, mas apenas relações formais de cooperação social.
Isto não significa que, sob este aspecto, a leitura de sociedade conflitante feita por Rawls não seja realista. O que queremos evidenciar é que o ponto de vista moral requer que o homem seja virtuoso, isto é, que atue segundo princípios não por imposições ou adequação, mas por convicção e decisão pessoal. O modelo de sociedade rawlsiano, ao invés, estimula uma convivência formal, na qual ao indivíduo não vem requerido um comportamento solidário no confronto dos outros. Em outros termos, Rawls elabora uma teoria da justiça partindo de aspectos negativos existentes na convivência social (como o desinteresse pelas ocupações dos outros) e não se preocupa em identificar as dimensões positivas (inerentes às concepções de bem), que poderiam ressaltar as disposições morais particulares em estrita conexão com a idéia pública expressa em uma sociedade solidária e justa.
Em última análise, podemos afirmar com Alasdair MacIntyre que não existe muita diferença entre as teorias de Rawls e aquelas de Robert Nozick, já que “aquilo que aproxima ambas as teorias é de um lado o desconhecimento da justiça como virtude pública indispensável para dar consistência e identidade à estrutura da comunidade política, e por outro lado, uma compreensão redutiva do viver social, toda concentrada na exasperação da fragmentação e da anomia social” (Da Re A., 1998: 49-50).
Com efeito, mesmo reconhecendo que os critérios usados por Rawls e Nozick para definir a justiça são diversos, MacIntyre consegue individuar nos seus pensamentos, a ausência da idéia de mérito como fundamento da vida comunitária, o que deriva da sua concepção contratualista em que a inserção do indivíduo na sociedade se dá como ato voluntário baseado em interesses formulados anteriormente “seja para Nozick seja para Rawls uma sociedade é composta de indivíduos, cada um com os próprios interesses pessoais que, sucessivamente, devem se reunir e formular regras de vida comuns. […] Em ambas as interpretações os indivíduos são primários e a sociedade secundária, e a determinação dos interesses individuais é precedente e independente em relação à construção de qualquer vínculo moral ou social entre estes”. Mas, continua Maclntyre, “a idéia de mérito pode sobreviver somente no contexto de uma comunidade cujo vínculo primário é uma concepção condividida por todos do bem para o homem e do bem daquela comunidade, em que os indivíduos determinem os seus interesses primários em referimento a tais bens” (Maclntyre, 1988: 298).
A teoria da justiça como eqüidade não responde aos problemas emergentes no interior das estruturas solidaristas do Estado social; nem ao menos se apresenta como solução possível de ser proposta para resolver a dicotomia entre ética pública e ética privada, por quanto se refere às relações de solidariedade. Com efeito, as leis não têm o sentido aristotélico de promover condições para formar cidadãos mais justos e solidários, mas somente o objetivo de tornar a sociedade menos conflituosa para que a cooperação se realize em concomitância com a realização dos planos de vida individuais.
Segundo a interpretação de A. Da Re, em concordância com o pensamento dos comunitaristas, aquilo que parece a solução para Rawls, pode ser exatamente o ponto frágil da sua teoria, isto é, o não considerar a dimensão dos valores que dão fundamento e conteúdo sólido a qualquer proposta política. Nem deriva “uma subestimação do valor das redes das ligações familiares, comunitárias tradicionais, na qual se desenvolve a normalidade de vida do sujeito: para os comunitaristas o risco da dissolução, ou ao menos o risco da anomia, é presente exatamente nesta postura abstratamente universalista, fundamentada em uma interpretação puramente procedimental e formal da justiça. Uma comunidade política é tão mais- sólida quanto mais pode confiar em um conjunto de valores condivididos, de tradições, de cultura, nos quais os cidadãos se identificam” (Da Re A., 1998: 50-51).
Feitas estas considerações podemos afirmar que a postura rawlsiana se mostra insuficiente como resolução da crise das sociedades democráticas liberais, por causa do seu caráter deontológico que, ao privilegiar os procedimentos, se descuida dos fundamentos que podem inspirar uma sociedade emancipada e se apega a uma análise superficial que pode trazer modificações institucionais, mas não reformula, nem destrói as estruturas fundamentais da sociedade, nem realiza os valores básicos da solidariedade, justiça social e democracia. Em última instância, a sua proposta reafirma o modelo de sociedade liberal e não acrescenta modificações substanciais à noção de justiça, nem mesmo àquela de direito, defendendo a idéia de dicotomia entre ética pública e privada, distanciando-se assim de uma postura centrada no homem como sujeito moral, solidário e sujeito da história.
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Silvana Mara Morais Sentos[44]
Introdução
Hannah Arendt, filósofa e pensadora política, é identificada, comumente, com o pensamento neo-aristotélico, apesar de sempre ter procurado fugir de qualquer classificação no âmbito da teoria política. Preocupada com as questões de seu tempo, relembrou os ensinamentos da polis grega ao se interrogar pelo sentido da política na contemporaneidade. Ao formular tal questão, seu pensamento evidencia as marcas aristotélicas, afinal, assim como em Aristóteles, para Arendt, a política é a ciência arquitetônica da sociedade. Não temos, neste artigo, pretensão de desenvolver uma análise exaustiva sobre o pensamento de Hannah Arendt, mas tão somente sinalizar notas críticas 50bresua concepção de política, direcionando a argumentação para a seguinte Questão: ao admitir que a política, entendida enquanto ação cujo sentido é a liberdade, está na centralidade da vida’ social, fica cancelada, no seu pensamento, a possibilidade objetiva quanto à superação da ordem burguesa.
O pioneirismo de Aristóteles no entendimento da política
A liberdade para os antigos era um conceito essencialmente político, pois só na polis alguém poderia ser livre e a liberdade era a definição mesma da cidadania, quese realizava na esfera pública.
Há, portanto, um finalismo do Bem que unifica virtudes éticas e políticas, enquanto atualização de uma potencialidade da natureza humana, cuja razão comanda e orienta as paixões e as vontades.
A atividade política, enquanto experiência que se refletia na vida pessoal, convergia com o coletivo social da multiplicidade da polis, fazendo da política grega uma ética. Sendo éti:a, a atividade política tinha uma função pedagógica, de transformação dos homens em cidadãos: a paidéia. Por sua vez, a atividade do soberano, do chefe – a soberania – tornou-se atividade de uma função definida pelos cidadãos, os “políticos”.
Aristóteles foi o primeiro pensador a sistematizar uma obra sobre ética, intitulada – “Ética a Nicômaco” – na qual explicita os fundamentos de sua concepção ética. Neste percurso filosófico, para subsidiar as reflexões acerca da relação entre ética e política, elabora – “A Política” – na qual tece, dentre outras questões, a noção de polis e de cidadão.
Um aspecto fundante para o entendimento da dimensão ética no pensamento aristotélico é que esta se baseia em uma concepção de ciência prática. Em tal perspectiva, “o interesse teórico da ética não se elimina, pois do contrário ela não seria ciência, mas é relativizado em benefício de um interesse prático, no sentido não-instrumental, mas ético da palavra” (Oliveira, 1993: 59).
O interesse prático da ética aristotélica está presente na sua pesquisa, cujo objetivo era não só conhecer o mundo da polis (compreendida por ele como uma “pluralidade de cidadãos”), mas contribuir para possibilitar a ação política, dos cidadãos livres. Neste sentido, Aristóteles nas suas obras – “Ética a Nicômaco” – e – “A Política” – reafirma que o fim da ciência prática “não é o conhecimento, mas a ação” (Mustafá, 1999).
Para Mustafá (1999: O 1L “esta concepção de ética leva Aristóteles a enfrentar a questão da relação entre ética e política. De fato, se a ética se ocupa do agir humano e se coloca como problema fundamental à identificação de que coisa seja o bem para o homem, e se a política se interessa do homem enquanto ser capaz de agir, consciente e livremente, em vista de um fim, não é concebível tomar em consideração a ética isoladamente da política e vice-verse”.
A visão aristotélica sobre a relação entre ética e política é influenciada, no trajeto histórico, pela vida política na polis grega. A democracia ateniense, exemplo típico de democracia direta, embora restrita aos ditos “cidadãos livres” (o que excluía mulheres, escravos e crianças) propiciava um ambiente fecundo para a elaboração de uma concepção da relação entre ética e política caracterizada pela unidade.
É nesse contexto histórico que, Aristóteles elabora a sua noção de política. Para ele, as ações, as artes e as ciências têm um fim, A política é a
arte mais prestigiosa e que, mais verdadeiramente, se pode chamar a arte mestra ( … ) utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar (Aristóteles,1991,’ 9-10).
Aristóteles propõe que o bem supremo, que para ele é a felicidade, deva ser um fim almejado pela ciência política e que este fim tem que se dar, sobretudo, no âmbito do Estado – da polis – e não apenas da vida do indivíduo.
Na conformação da ordem política, Aristóteles (1998) define como objetivo do Estado criar as condições de possibilidade para uma vida feliz. Essa felicidade, no âmbito da comunidade estatal, seria garantida através da Constituição, pela qual, necessariamente, estaria relacionada à virtude do cidadão. Neste sentido, Aristóteles realiza uma pesquisa sobre várias constituições para descobrir qual a melhor para os cidadãos. Segundo Mustafá (1999: 03), “a consideração sobre o fim do Estado repõe a temática desenvolvida na ‘Ética a Nicômaco ‘ sobre a felicidade como fim da política e assegura a impossibilidade de romper a relação entre ética e política no seu pensamento”. Aristóteles, como vimos anteriormente, preocupava-se com – o fim – da ação humana, ou seja, a racionalidade do fim é o que caracteriza o seu pensamento. E nessa perspectiva, suas idéias orientam-se para a ética teleológica, ética da primeira pessoa, nos termos de Mustafá (1999), em detrimento da ética deontológica.
A concepção de filosofia prática de Aristotéles influenciou toda a tradição ocidental, sendo mediada pela escolástica, a qual foi moderna mente retomada por Hegel e, contemporaneamente, tem inspirado diferentes autores(as), a exemplo de Hannah Arendt.
A Política sob a análise contemporânea de Hannah Arendt
Para analisar a concepção de política em Hannah Arendt, vamos nos deter, de forma breve, nas considerações que ela faz em seu livro – A condição humana sobre a – vita activa – que congrega três atividades humanas fundamentais: o trabalho (labor), il obra ou fabricação e a ação.”
Segundo Arendt (1991:15), o trabalho (labor) “é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano”. Trata-se do empenho para satisfazer as necessidades humanas no campo da própria sobrevivência física não apenas do indivíduo, mas da vida da espécie. O resultado do trabalho é a produção de bens que não permanecem no mundo, não possuem durabilidade, posto que são destinados ao consumo imediato dos indivíduos, a exemplo da alimentação. Sendo uma atividade do espaço privado, o trabalho limitava-se às necessidades do processo biológico, não se constituindo espaço da liberdade, uma vez que os indivíduos aí estão no reino da necessidade. A condição humana do trabalho é garantir a própria reprodução da vida.
A obra refere-se à produção artificial de objetos que, diferentemente dos produtos do trabalho, adquirem permanência no mundo e não têm consumo imediato. Para a autora, a obra traduz a “atividade correspondente ao artificialismo da existência humana” (Arendt, 1991: 15), ou seja, é por esta atividade que o indivíduo produz um mundo artificial de coisas. A condição humana da obra é a sua capacidade de pertencer ao mundo.
A ação é, em Arendt (1991: 15), “a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria”. Na ação, os indivíduos se libertavam do reino da necessidade e exerciam, na polis – na esfera pública, a atividade verdadeiramente política. Liberado das necessidades, o homo agens é considerado como igual entre iguais, sendo o espaço da ação aquele que possibilita o encontro da comunidade de indivíduos
iguais, os quais se reúnem para a realização da liberdade, expressa na política. O instrumento característico da ação é a palavra, o discurso e não a força ou a violência’.
Ao deter-se na análise da – vita activa – Hannah Arendt explicita com veemência sua crítica à modernidade. Isso porque, conforme a autora, ao contrário da polis grega, a modernidade valorizou somente o trabalho e a obra, enquanto a ação foi esquecida. Demasiadamente voltado para a sobrevivência, o indivíduo moderno trabalha e produz, vivendo em condições pré-políticas ou sob uma concepção tirânica de política que se torna meio para o domínio e para a conquista do poder, assumindo na sua essência, um caráter meramente instrumental de enfrentamento entre dominantes e dominados.
A condição humana, afirma Arendt (1991:17), “compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem, Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência”. Nessa perspectiva, a ação é das três atividades mencionadas anteriormente, àquela que se encontra mais diretamente relacionada com a inteireza e intensidade da condição verdadeiramente humana, constituindo-se numa atividade política por excelência, que tem na pluralidade sua característica fundamental.
Cabe, então, interpelar: mas o que é política para Arendt7 A política baseia-se tanto na singularidade como na pluralidade. Na singularidade, emana o indivíduo enquanto ser único no mundo. No indivíduo, apresenta-se o novo, a natalidade, o inusitado, o viver como ser distinto entre iguais. A pluralidade revela a igualdade e a diferença presentes na convivência, no diálogo entre as pessoas, Podemos afirmar, segundo Arendt (1999:22), que “a política trata da convivência entre diferenças”. Nisto consiste a dignidade da política e o reconhecimento do espaço público como espaço de realização da liberdade.
No ensaio organizado por Ursula Ludz – O que é política?(1999) – que reúne fragmentos póstumos do pensamento arendtiano, Hannah Arendt adverte para o fato de que, ao falar de política, em nosso tempo, impõe-se o desafio de problematiza r os preconceitos que todos têm contra a política.
O problema, para a autora, é que vigora, nos tempos modernos, uma concepção de política circunscrita à relação entre dominantes e dominados, em detrimento da noção de política propriamente dita, aquela designada na ação. Sob a perspectiva de política predominante na modernidade, Arendt (1999:26) argumenta que conseguiríamos “em lugar da abolição da política, uma forma de dominação despótica ampliada ao extremo, na qual o abismo entre dominadores e dominados assumiria dimensões tão gigantescas que não seria mais possível nenhuma rebelião, muito menos alguma forma de controle dos dominadores pelos dominados.”
Outro preconceito igualmente difundido contra a política reside no reconhecimento da existência de uma política interior que seria traduzida por “uma teia feita de velharia de interesses mesquinhos e de ideologias mais mesquinhas ainda, ao passo que a política exterior oscila entre a propaganda vazia e a pura violência” (Arendt,1999: 27).
Hannah Arendt elabora, assim, uma crítica contundente ao nazismo e stalinismo, considerados, por ela, sistemas totalitários. Arendt mostra que no século XX, eles se constituíram a forma mais definida de desnaturação da política, uma vez que suprimiram, por completo, a liberdade humana. Para ela, na modernidade, as atrocidades cometidas em nome da política, notada mente na edição stalinista e no nazismo, se constituíram em heranças malditas que além de reduzir a política ao autoritarismo, desprezaram a liberdade e desestruturaram o espaço público.
Ao apresentar a catástrofe da modernidade que dissimula o verdadeiro sentido da política, submetendo os indivíduos a viverem sob as amarras da necessidade e no limite da sobrevivência, Arendt, assinala a perda da liberdade como sinal evidente de que o totalitarismo impede a presença atuante de homens e de mulheres na história.
Segundo Kurt Sontheimer (1999:09), no prefácio do livro – O que é política? –
apesar das experiências de calanidade que o homem moderno teve com’ o po itico, Arendt acredita ser evidente que o homem é dotado, de uma maneira altamente maravilhosa e misteriosa, do dom de fazer milagres, a saber: ele pode agir, tomar iniciativas, impor um novo começo” e, citando as palavras de Arendt, afirma, ainda, que “o milagre da liberdade está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo, já que através do nascimento veio ao mundo que existia antes dele e continuará existindo depois dele.
Na verdade, Arendt não embala suas idéias em nenhuma forma de pessimismo trágico. Ao contrário, adverte que “o ponto principal do preconceito corrente contra a política é a fuga à impotência, o desesperado desejo de ser livre na capacidade de agir” (Arendt,1999:28). Há, desse modo, uma crítica severa, realizada pela autora, quanto à pseudo-alternativa de fuga à vida privada, à adoção, no cotidiano, da irresponsabilidade com a vida social e da apatia política. Tais formas de condutas, tão correntes na contemporaneidade, representam, para Hannah Arendt, práticas nocivas à construção da verdadeira política.
Considerando as formas totalitárias de Estado e as conseqüências nefastas oriundas do exercício da política no século XX, Arendt (1999:38) interroga-se de forma radical: “tem a política algum sentido ainda?” A autora responde de modo enfático que o sentido da política é a liberdade.
A política não é necessária, em absoluto – seja no sentido de uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor, seja no sentido de uma instituição indispensável do convívio humano. Aliás, ela só começa – onde cessa o reino das necessidades materiais e da força física (. ..) Falando em termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conheceram e realizaram (Arendt, 1999:50).
Para a autora, apesar de não ser possível reeditar as formas de organização que deram, na antiguidade, sustentação para consolidar o que considera a verdadeira política, uma idéia permanece atual, trata-se do entendimento da liberdade enquanto um valor fundamental que atribui sentido à existência da política. Arendt (1999:34) vai mais além quando diz que “na crise do mundo moderno não é tanto o mundo, mas sim o próprio homem que saiu dos trilhos”.
Considerações Críticas
Sem a pretensão de esgotar a discussão, destacaremos três aspectos na concepção de política de Hannah Arendt que merecem considerações críticas.
O primeiro aspecto refere-se ao fato de que, para Arendt, a distinção entre trabalho e obra foi eliminada ou ignorada na modernidade. “Todo o seu esforço consiste em resgatar essa distinção (distinção que correspondia, na antiguidade, à distinção entre o trabalho não produtivo do escravo e a atividade produtiva do artesão) e em explicitar as implicações que decorrem de sua não distinção na modernidade” (Magalhães, 1985: 133).
Ao tematizar – a vita activa – Arendt põe em relevo que o indivíduo moderno está preso às leis da sobrevivência e critica a ênfase dada na modernidade, segundo ela, por autores como Locke, Smith e Marx que consagraram o trabalho como a mais relevante de todas as atividades humanas.
Para Arendt, há uma explícita contradição no pensamento de Marx que se expressa quando ele apreende o trabalho como uma necessidade eterna na vida dos indivíduos, ao tempo em que sinaliza a necessidade histórica de emancipar homens e mulheres do trabalho. O problema é que ao reduzir o trabalho à reprodução da vida biológica, Arendt, diferente de Marx, não considera que, na produção capitalista, a força de trabalho produz mercadoria e mais-valia. Segundo Magalhães (1985: 148), “no fundo é toda a concepção de Homem e do trabalho, em Marx, que ela recusa[45]“. Numa lógica de análise distinta de Arendt, consideramos que o trabalho não pode ser reduzido apenas à mera sobrevivência ou a sua forma alienada, expressão particular que o trabalho assume na sociabilidade capitalista, posto que o trabalho constitui, do ponto de vista ontológico, a protoforma do agir humano, o que não significa reduzir todos os atos humanos ao trabalho. Lessa (1996:24) refletindo sobre o pensamento lukacsiano, afirma que “a reprodução social comporta e, ao mesmo tempo, requer outros tipos de ação que não os especificamente de trabalho. Todavia, sem a categoria do trabalho, as inúmeras e variadas formas de atividade humano-social não poderiam sequer existir”.
Sob esse prisma, cabe-nos interrogar: de que forma o indivíduo social pode pensar sua existência sem o trabalho?
Quando Hannah Arendt afirma que a modernidade valorizou o trabalho e a obra em detrimento da ação, vale considerar que na Grécia antiga, os escravos e as mulheres, que não gozavam de cidadania, estavam destinados a garantir a sobrevivência, enquanto os cidadãos (homens livres) cuidavam do espaço público, da política propriamente dita. Como podemos observar, isto não significa, de modo algum, que os indivíduos, na antiguidade, tenham vivido sem o trabalho.
Temática tão corrente nos dias atuais, a crítica à centralidade do trabalho aparece sob diferentes enfoques: desaparição do trabalho; substituição da esfera do trabalho pela esfera comunicacional; perda da central idade da categoria trabalho etc. Além de lançar mão de estratégias como globalização, neoliberalismo, reestruturação produtiva, o capital propala o fim da sociedade do trabalho.
Ao contrário do que se multiplica aos quatro cantos do mundo, a nova face do capital necessita cada vez mais do trabalho, da classe trabalhadora, só que a considera como uma força produtiva ainda “mais complexa, multifuncional, que deve ser explorada de maneira mais intensa e sofisticada (…)” (Antunes, 1999a: 220).
Afinal, analogamente à história que Marx ilustra da melhor abelha contracenando com o pior arquiteto, as máquinas superdotadas, com alto índice de inteligência artificial, não podem prescindir do trabalho humano. Ou seja, a introdução cada vez mais intensa da tecnologia exige trabalhadores (as) cada vez mais qualificados (as), aptos (as) a lidar com as máquinas informatizadas. Consideramos que o trabalho, mesmo em face de tantas mudanças, assume, numa perspectiva ontológica, centralidade na vida de homens e mulheres. No entanto, o que se verifica, nos dias atuais, é a retomada de níveis explosivos de exploração do trabalho, de intensificação do tempo, dos ritmos e dos processos de trabalho. É preciso ter presente que esta nova gramática social excludente traz conseqüências danosas para o interior do mundo do trabalho, mas não cria condições para validar as teses sobre o fim do trabalho. Afinal, como diz Antunes, “o capital pode diminuir o trabalho vivo, mas não eliminá-lo. Pode intensificar sua utilização, pode precarizá-lo e mesmo desempregar parcelas imensas, mas não pode extingui-lo “(1999b: 26).
Na interpretação de Magalhães (1985: 137),
“não foi a distinção entre trabalho e obra que permitiu que o político fosse valorizado na antiguidade, e isso segundo a própria H. Arendt, mas sim a distinção entre o privado e o público, fica, assim difícil de compreender por que motivo essa não distinção (trabalho e obra) na época moderna é, para ela, a causa da perda do espaço público, espaço este que ela defende com tanta energia”.
O segundo aspecto problemático presente na concepção política arendtiana refere-se ao uso que a autora faz da noção de totalitarismo para explicar sua crítica aos desdobramentos da política no século XX.
O uso da noção de totalitarismo para negar e criticar as experiências do nazismo e do stalinismo efetiva-se mediante a lógica na qual contra o terror do Estado policial que ameaça o indivíduo e suprime sua liberdade, consagra-se o direito e a lei, fundamentados no Estado de direito.
De acordo com Chasin (1977: 122), nesta interpretação,
“o Estado liberal vem a ser o sistema onde predominam a lei, a razão e a liberdade, garantidas pela difusão do poder e pela estrutura pluripartidária. E o Estado totalitário o sistema onde prevalecem a violência extremada – o terror – e a dominação hipertrofiada pela concentração do poder e nutrida pelo monopólio do partido único. Um portanto, é o regime da liberdade, regido pela lei, pela razão; o outro, o da opressão comandada pela violência.”
Desse modo, na perspectiva de realizar uma crítica radical e, em nossa opinião, absolutamente necessária à violência e a toda ordem de desvalorização da vida humana, ocorrida durante os regimes nazista e stalinista, Arendt, na essência, acaba por efetivar uma contra posição entre totalitarismo e liberalismo. Nesse embate, o capitalismo se edifica como o fim da história, portanto racionalmente insuperável. Considerando que, na análise liberal, opera-se o ocultamento da desigualdade concreta frente à valorização extrema da legalidade, temos como conseqüência que o liberalismo não é entendido como expressão ria hegemonia burguesa, mas como expressão da igualdade de todos os indivíduos perante a lei.
O pensamento de Arendt apresenta-se refém do uso do conceito de totalitarismo. Ao utilizar esta noção na perspectiva de explicar e condenar as atrocidades cometidas por determinados estados, acaba por reduzir toda explicação ao emprego de universais abstratos que obscurecem a compreensão das particularidades dos fenômenos sociais. “Donde, em lugar de reproduzir conceitualmente o concreto, evidenciando em cada caso a particularidade decisiva, somos conduzidos, por aquela análise, a nos defrontar com a razão em geral, a liberdade em geral, o cidadão em geral, o estado em geral, a violência em geral etc” (Chasin, 1977: 125).
O terceiro aspecto que gostaríamos de mencionar está relacionado ao conceito em si de política defendido por Arendt.
O pensamento de Arendt ao desconectar a esfera da política da esfera da economia, redunda numa análise aparente quanto à explicação de porque os indivíduos não tomam as rédeas da história e superam as condições desumanas em que vivem. Sua concepção de política redunda na inviabilidade de alternativas para a construção de uma nova sociabilidade, à medida que não agrega, na sua análise, a racional idade das classes sociais e seus projetos.
Para Hannah Arendt, a dignidade da política, entendida na -ação- que se realiza mediante a vivência da liberdade e da pluralidade é o objetivo maior da humanidade. A política é, portanto, uma dimensão ineliminável da vida social, não se constituindo, pois, conforme Marx, enquanto uma dimensão própria da sociedade de classes.
Sobre isto é oportuno lembrar que Gramsci chamava atenção para o fato de que, embora a criação de um novo tipo ou nível de civilização se opere essencialmente sobre as forças econômicas, os fatos da superestrutura não devem ser abandonados a si mesmos, a seu desenvolvimento espontâneo. Neste sentido, define a política como a esfera do coletivo que reúne sentimentos, aspirações e leis próprias, sendo relativamente autônoma em relação à dimensão econômica e sofrendo, simultaneamente, influências desta. No seu pensamento, há uma determinação da economia em relação à política, sem apresentar, no entanto, imposições mecânicas de resultados, mas condicionando as alternativas que se colocam para a ação do sujeito.
Ao discutir a concepção de política defendida pela Filosofia da Práxis, Gramsci argumenta que “não é verdade que a filosofia da práxis ‘ destaque’ a estrutura das superestruturas; ao contrário, ela concebe o desenvolvimento das mesmas como intimamente relacionado e necessariamente inter-relativo e recíproco” (Gramsci,1999:369).
Trata-se de um fetiche qualquer tentativa, na sociedade capitalista, de desnudar os indivíduos de suas determinações estruturais. O fosso entre economia e política pode criar a ilusão da autonomia plena do político, mas logo é possível perceber que “a naturalização/deshistorização da vida social é essencial na construção da hegemonia burguesa. Reforça, por um lado o atual como o único possível da história e, por outro, nega a possibilidade e a capacidade de existência da racionalidade das outras classes” (Dias, 1996: 132).
Todas as reflexões, ainda que sérias e profundas, quando abstraídas das múltiplas determinações que conformam o ser social, tendem ora para o politicismo com ênfase no subjetivismo, ora para o economicismo, com ênfase na subtração da subjetividade, na despersonalização dos indivíduos enquanto pertencentes a uma determinada classe social. Desse modo, o politicismo e o economicismo acabam por não potencializar iniciativas de formação e ação de sujeitos críticos, capazes de identificar, nomea e se opor às atrocidades tais como a fome, a miséria, o desemprego e a desigualdade social que, naturalizadas, conformam a vida cotidiana da maioria subalternizada, sob o advento da sociabilidade do capital.
Na verdade, Arendt propõe uma concepção positiva de política e, neste sentido, a ação entendida enquanto a atividade verdadeiramente política, destina-se ao aperfeiçoamento do Estado de direito, do espaço público e da liberdade.
No pensamento de Arendt, a política está aprisionada numa trama idealista que obscurece as relações classistas e interdita as possibilidades de compreensão da essência da sociedade capitalista e seu sistema de exploração e opressão, não havendo, desse modo, no seu pensamento, alternativas à ordem do capital.
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A ética e o trabalho cotidiano do assistente social
Aione Maria da Costa Souza[46]
No contexto atual, onde o capital globalizado aprofunda as desigualdades sociais, torna-se cada vez mais necessário construir formas concretas de efetivação de valores éticos que, como fundamentos da vida humana precisam ser constantemente construídos, reconstruídos e reafirmados.
Esse é um processo que se faz na busca cotidiana de luta pela liberdade, pelo acesso à vida, ao trabalho, à dignidade, à participação, à justiça, à democracia, aos direitos humanos, dentre outros.
Neste sentido, é preciso pensar a ética a partir das questões complexas e desafiantes que se apresentam hoje no nosso cotidiano, particularmente para os assistentes sociais que atuam diretamente com os reflexos da questão social, convivendo’ diretamente com situações aviltantes, que pela sua constância e freqüência correm o risco de serem banalizadas, sendo necessário um certo cuidado para evitar a naturalização das questões cotidianas.
É importante compreender essas situações, reconhecendo-as como demandas à profissão, tendo clareza do papel profissional, e assim saber conduzi-Ias de forma ética e estratégica. OU seja, enfrentar a situação concreta com competência, responsabilidade, interpretando – a, qualificando e redirecionando-a, fundamentando-se nos princípios ético-políticos do projeto profissional.
Neste texto tentaremos transmitir essa compreensão. Assim, inicialmente apresentamos a discussão acerca da ética como componente fundamental no processo de sociabilidade humana, referendando uma concepção de ética que está presente nas discussões atuais da profissão, em seguida apontamos alguns caminhos que consideramos importantes para a efetivação do projeto ético-político profissional.
- 1. Ética: componente fundamental da sociabilidade humana
Os homens e as mulheres fazem a história, que é na realidade, a manifestação de suas vidas em sociedade, das suas relações e do desenvolvimento humano e social. A constituição histórica da humanidade é um trajeto permeado por situações que muitas vezes dificultam ou mesmo impedem que a construção dessas relações e dessa história, seja tal como é definido ou planejado.
Heller (1985: ai), baseando-se nas teses da imanência e da objetividade em Marx, concorda com a afirmação de que desejamos determinados fins, mas existem circunstâncias que produzem resultados diferentes. Ou seja, existem “relações e situações humanas que são mediatizadas por coisas” e que formam um complexo de várias posições teleológicas, onde a circunstância torna-se uma resultante objetiva.
Assim a autora afirma que “causalidade e finalidade”, em Marx, são fatos ontológicos e sociais que se relacionam. No entanto, isso é logicamente correto quando se refere a história da sociedade, pois na natureza, a causalidade existe sem a teleologia.
Causalidade e finalidade, portanto, são em Marx fatos ontológicos-sociais que necessariamente se relacionam. A tese de sua necessária inter-relação, decerto, só é verdadeira para a sociedade, pois na natureza existe uma causalidade sem nenhuma teleologia. Disso decorre que também o par conceitual aparência-essência expressa uma realidade ontológico social. O conceito de essência não tem sentido sem a finalidade, pois não há essencialidade – nem, consequentemente, aparência – a não ser do ponto de vista de uma colocação determinada de fins. (idem: 02)
Na opinião da autora, a essência humana é a realização, gradual e contínua, das suas possibilidades ontológicas. Portanto, considera que o valor é uma categoria que possui uma objetividade social, visto que é expressão das relações sociais.
Neste sentido, Heller (idem:05) define valor como “tudo aquilo que explica o ser” e fundamenta essa afirmação na concepção marxiana, de onde extrai como componentes da essência humana: o trabalho, a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade.
Esses cinco componentes são fundamentais para o desenvolvimento da sociedade e da constituição do próprio processo histórico. Neste sentido, relacionamos a nossa compreensão, acerca de cada um deles.
1. O trabalho é um dos elementos fundamentais na constituição das relações entre os homens, como também na concretização de diversas necessidades humanas e sociais. É por meio do trabalho que se dá o processo de constituição das relações sociais.
2. A sociabilidade tem como mediação primordial o trabalho. É por esta mediação que se reconhece a capacidade humana e a constituição dos sujeitos sociais. É, por este mesmo percurso, que se estabelecem os valores como: o exercício da liberdade, a manifestação de vontades e pensamentos, a constituição e a defesa dos direitos humanos e sociais, entre outros.
É no processo de sociabilidade que as pessoas se reconhecem como sujeitos de realização do trabalho, de construção de sua identidade, da necessidade de convivência, de comunicação, de participação política, sujeitos de construção desse mundo e de sua história.
Assim, se estabelecem as relações políticas, econômicas, sociais, que se manifestam no cotidiano a partir das relações de trabalho, familiares, de amizade, de afinidade, amorosas, de inserção em partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais, dentre outros.
O processo de sociabilidade humana, portanto, se manifesta na criação dos espaços de organização coletiva, que se expressam a partir do desenvolvimento das relações econômicas, políticas, sociais e culturais, onde a ética surge como um componente fundamental.
3. A universalidade não pode ser entendida como um ideal, distante, a ser alcançado, mas como parte do exercício de conquista real do processo de emancipação.
4. A consciência como ato de reconhecimento de si mesmo enquanto ser singular, mas nunca como forma de negação do outro, da coletividade. Mas entendida, principalmente como responsabilidade no processo decisório.
5. A liberdade, como fundamento da própria existência, como possibilidade de concretização do processo de decisão, de querer, de poder optar e escolher caminhos que realmente sejam possíveis para todos.
É na construção da própria história, pelo processo de mediação e de intervenção na realidade social, que se recriam as relações e valores éticos, ao mesmo tempo, em que também são criadas e recriadas as necessidades sociais.
A ética é responsável pela compreensão da sociabilidade a partir do processo de investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento e decisões humanas, o que conduz a uma reflexão sobre a essência dos valores da sociedade.
Como coloca Heller (1985: 01), “a história é a substância da sociedade” onde a sua essência está na vida cotidiana, âmbito em que o Ser se faz presente em sua particularidade e em sua genericidade. Por isso “a vida cotidiana é a vida do homem inteiro”. É no interior da vida cotidiana que surgem os valores, entre os quais os valores morais.
Compreendendo a moral como uma relação que está no interior das atividades humanas, Heller (idem: 06) coloca que tal relação é a conexão da particularidade com a universalidade genericamente humana e, neste sentido, a moral é:
O sistema das exigências e costumes que permitem ao homem converter mais ou menos intensamente em necessidade interior – em necessidade moral – a elevação acima das necessidades imediatas (necessidades de sua particularidade individual), (…) ‘de modo que a particularidade se identifique com as exigências, aspirações e ações sociais que existem para além dás causalidades da própria pessoa, elevando-se até a essa altura.
Desta forma, a elevação acima da particularidade é um ato consciente do ser humano. E, de acordo com Heller, as necessidades tornam-se conscientes, inicialmente, no indivíduo particular, mas o genérico também está contido nesse indivíduo, mesmo dentro de motivos e necessidades particulares. Portanto, é através da integração, da formação coletiva que o indivíduo toma consciência de sua condição de ser genérico, pois como tal é produto das relações sociais. (1985:20)
A moral é, então, uma relação entre um comportamento particular e uma decisão particular de um lado e as exigências genérico-sociais de outro.
Na interpretação de Barroco (1996: 74): “A compreensão dos fundamentos ético-morais da vida social supõe o entendimento da relação entre os níveis de existência do ser social: universal, particular e singular.” E, mesmo o indivíduo sendo singular e genérico, não é apenas por sua singularidade que se coloca como representante do gênero humano, pois a dimensão da vida social que é orientada predominantemente pela singularidade na vida cotidiana, se expressa na autoconservação.
No entanto, a autora acrescenta que é neste espaço que “o indivíduo se socializa e aprende a responder as necessidades práticas imediatas, assimila hábitos, costumes e normas de comportamento”. Incorporando tais mediações, vincula-se à sociedade ‘reproduzindo a dimensão humano-genérica.
A moral é parte fundamental da vida cotidiana, pois a reprodução das normas depende do espontaneísmo e da repetição para se tornarem hábitos que respondem às necessidades de integração social; a legitimação das prescrições morais implica numa aceitação subjetiva, pois se não forem intimamente valorizadas não se reproduzem diante de situações cotidianas – onde a necessidade de escolha entre uma ou mais alternativas se faz presente. A partir do momento em que os indivíduos incorporam determinados papéis c comportamentos, reproduzem-nos espontaneamente, donde a tendência da vida cotidiana: as escolhas nem sempre significam exercício da liberdade. (Barroco, 1996: 80)
De acordo com Silva, a afirmação de Marx de que é “o ser social que determina a consciência” expressa que aquilo que penetra a consciência humana é, na realidade, reflexo das relações sociais que esses homens estabelecem entre si. Portanto, a autora acrescenta que,
(…) não se trata da consciência pura dos filósofos idealistas, mas de uma consciência adquirida através das necessidades materiais, do intercâmbio com os outros homens e com as coisas situadas fora dele mesmo. É portanto a consciência da natureza e da necessidade e estabelecer relações entre os indivíduos, da qual nasce e se desenvolve a linguagem. Essa consciência ultrapassa o instinto e é o início da vida social, distinguindo a espécie humana das outras espécies animais. (Silva, 1992: 21)
Deste modo, o que se evidencia é a concreticidade humana a partir de sua atividade criadora, ou seja, o trabalho, que no processo de produção e reprodução determina as relações sociais humanas.
De acordo com essa autora, a análise de Marx parte do homem em uma sociedade específica, no caso a sociedade capitalista, onde existe a divisão em classes, cujos interesses são antagônicos.
Assim, a moral é apreendida de forma diversa, pois os interesses são diferenciados e as construções éticas dos sujeitos repercutem na sua condição de classe.
Os valores morais se incluem, então, como elementos que se relacionam com esses componentes essenciais, da particularidade com a universalidade de forma a explicar esses aspectos.
Sendo a moral uma relação entre atividades humanas, sua objetividade se estabelece em cada dimensão da organização social: econômica, política, social, cultural, etc. Considera-se, então, que a fundamentação dos valores está nas relações entre os homens e que estas se situam tanto na organização familiar, como no trabalho, ou nos espaços onde se realizam a educação, a cultura, o lazer e outros espaços de realização da sociabilidade.
Neste processo, surgem várias formas de organização e mecanismos de ordenamento da vida em sociedade, onde é criado o Estado, a Religião, o Direito, a Política, a Ética, entre outros.
Neste sentido, os valores e fundamentos éticos são construídos histórica e socialmente pelos homens através de suas ações na sociedade. São atitudes humanas, conscientes, criativas e teleológicas.
É nessa construção social que se ampliam as alternativas e possibilidades de escolha, onde o indivíduo social é sujeito de sua própria ação. Os valores, as normas e os meios para a transformação da realidade, são construções desse homem social, que quando idealiza suas ações através de uma práxis consciente, tende a buscar efetivá-Ias. Concordamos neste sentido, com a afirmação de Netto (1999:93):
A ação humana, seja individual, seja coletiva, tendo em sua base necessidades e interesses, implica sempre um projeto, que é, em poucas palavras, uma antecipação ideal da finalidade que se quer alcançar, com a invocação dos valores que a legitimam e a escolha dos meios para atingi-la.
Sendo as concepções éticas determinadas historicamente, a partir das relações sociais que os homens estabelecem em cada época, a forma de concepção dos valores, também, se realiza a partir de fatos predominantes em determinado período e realidade social. No entanto, o eixo central de construção dos valores, que são as relações humanas e sociais, é conservado. Do mesmo modo, permanecem os desejos e projetos de busca por uma sociedade diferente, configurada pela emancipação.
Com as transformações sociais e a complexificação das sociedades, o processo de desumanização em face do avanço tecnológico e do aprofundamento das desigualdades sociais, resultantes do desenvolvimento capitalista, as questões éticas tornam-se uma necessidade cada vez mais presente.
As concepções éticas atuais têm se evidenciado pela exigência de tomada de posição, em face de acontecimentos cada vez mais desumanizadores, bem como, pela necessidade da concretização plena dos direitos civis, políticos e sociais e ampliação da democracia.
A referência à necessidade de concretização da cidadania remete a um fato de grande repercussão para o surgimento da sociedade moderna, ou seja, a falência do feudalismo e a ascensão da burguesia, cujo vetor de movimentação assentava as bases na luta pelos ideais burgueses da liberdade e da igualdade.
A discussão acerca da cidadania ocupa um espaço importante, quando a compreensão da posse subjetiva da liberdade do ser humano é exaltada e revelada na Declaração dos Direitos Humanos, onde se estabelece que todos os homens nascem livres e iguais. Esses são alguns dos passos na direção de uma sociedade democrática e humanizada, pela qual se luta até hoje.
A idéia de liberdade que foi estabelecida no direito formal da sociedade burguesa e do Estado liberal, não adquire o sentido de liberdade universal e real, pela existência da prática da desigualdade e confronto de interesses de classes divergentes.
A liberdade humana é um princípio ético fundamental que não pode ser compreendido apenas em seu sentido abstrato. A base de sua concretização está na superação dos limites naturais, humanos e sociais, o que representa, antes de tudo, autoconsciência do indivíduo enquanto ser singular e genérico, para poder se constituir em sujeito da história.
Para Barroco, a liberdade é uma capacidade ontológico-social e uma ação prática de negação dos impedimentos e entraves à sua realização. Esses entraves estão relacionados às necessidades humanas e às possibilidades de sua satisfação.
Liberdade e universalidade se referem à totalidade e à diversidade de capacidades e necessidades: o ser social é mais livre e mais universal na medida em que tem condições concretas de objetivar suas potencialidades de forma multilateral e de criar novas alternativas. (1996:56)
No seu sentido político, a liberdade se refere às capacidades e possibilidades de escolha dos indivíduos em face das opções que se apresentam na realidade social. A liberdade é o fundamento de todos os valores, e o homem faz parte de um universo, onde as possibilidades de escolhas podem se tornar cada vez mais amplas.
A importância dos valores está na condução da realização dessas possibilidades humanas. Neste sentido, os problemas éticos implicam uma tomada de posição, diante das situações que se apresentam na realidade social. São posicionamentos que envolvem, consequentemente, a capacidade de optar mediante situações complexas.
Sendo a essência humana a “realização gradual e contínua das possibilidades imanentes à humanidade”, o valor é tudo aquilo que contribui com esse processo de crescimento do gênero humano.
Neste sentido, Barroco (1996:77) define ética, moral e política como meios propiciadores da elevação do indivíduo à dimensão humano genérica:
A ética – enquanto reflexão filosófica dirigida ao humano-genérico -, a moral – enquanto ação prática voltada a objetivação dos valores humano-genéricos – e a política – enquanto práxis de superação dos impedimentos objetivos à realização das forças essenciais do ser social – se inserem dentre as atividades propiciadoras da elevação ao humano genérico, na possibilidade de instauração da particularidade, ou seja, da mediação entre o particular e o humano genérico que corresponde à individualidade.
A moral faz parte das necessidades práticas do cotidiano da vida social, que contribui para o estabelecimento do ethos[47] e sua representação como identidade cultural de uma sociedade, ou fração da sociedade: sendo marcada pela contraditoriedade entre interesses econômicos, políticos, culturais e necessidades sociais.
A ética é constituída na práxis humana concreta e relaciona-se a cada momento histórico de desenvolvimento das condições socioeconômicas e culturais da sociedade. A sua discussão situa-se nesse contexto político de decisão e de possibilidade de escolha. As normas e os valores, criados pelo homem, adquirem objetividade a partir dessa tomada de posição, porém, situados em uma sociedade de classes, são movidos por necessidades e interesses contraditórios.
Concordamos com a afirmação de Barroco de que a contraditoriedade entre interesses e necessidades dificulta, de certa forma, a concretização de uma concepção de bem que represente os interesses coletivos, pois adquirem significados diferentes nas diversas classes, visto que são direcionados por interesses divergentes.
As determinações que incidem sobre a eleição de determinados valores morais só podem ser entendidos na totalidade social. Isto é, levando em conta a complexa rede de mediações existentes na interação recíproca entre as necessidades e interesses econômico-políticos e culturais e as possibilidades de escolha e determinação dos indivíduos sociais. São os homens que criam as normas e os valores, mas nas sociedades de classes, as relações sociais por eles estabelecidas são movidas por necessidades e interesses contraditórios, donde a impossibilidade de existirem valores absolutos ou uma concepção de bem que corresponda ao interesse e necessidade de todos. Por isso, a moral é também marcada por essa contraditoriedade; seus valores e princípios têm historicamente diferentes significados e atendem, indiretamente, a interesses ideológicos e políticos de classes e grupos sociais. (Barroco, 1999: 123)
Na sociedade de classes os valores estão permeados, portanto, por necessidades e interesses contraditórios, donde muitas vezes os interesses da coletividade são preteridos por interesses de indivíduos particulares.
A ausência de compreensão dessa realidade pode conduzir a um processo de alienação[48], onde a falta de clareza desta questão leva a uma descaracterização da ação pelo próprio indivíduo, que não se reconhece como sujeito de sua prática.
Por conseguinte, o entendimento da dimensão ético-política da ação dos sujeitos, está na compreensão das contradições da realidade social e da capacidade dos homens agirem de forma ativa e consciente, no processo de transformação dessa realidade e de construção da história.
Se o indivíduo alcança a consciência da universalidade, se reconhecendo como ser humano genérico, assume uma atitude de reconhecimento face às questões que se referem à coletividade, podendo, portanto, comprometer-se com projetos coletivos. Esse compromisso se concretiza pela tomada de posição, pela escolha em face de determinada situação social concreta. Essa tomada de posição, consciente, caracteriza a relação da ética com a política.
A adesão consciente à norma supõe a autonomia diante das escolhas morais; o sujeito ético é capaz de deliberar diante do possível historicamente, de forma responsável e livre. Mas a consciência, o conhecimento crítico não são suficientes para garantir a ampliação dessa autonomia; sua realização objetiva supõe a unidade entre a ética e a política, pois esta se faz no campo dos conflitos, da oposição entre projetos sociais, caracterizando-se, pois, pela organização coletiva na luta entre idéias e projetos que contém valores e uma direção ética. (Barroco: 1999: 127)
Por essa práxis social, os indivíduos se elevam à sua universalidade, mas sem perder sua singularidade. Mas, nesse processo enfrentam contradições que podem dificultar essa apreensão consciente da realidade social. Tais contradições tornam-se mais visíveis quando verificamos o conflito entre interesses particulares de indivíduos e interesses coletivos, da sociedade.
No entendimento de Barroco,
A atividade política supõe a projeção ideal do que se pretende transformar, em qual direção, com quais estratégias; por isso, implica em projetos vinculados a idéias e valores de uma classe, de um estrato social ou de um grupo. A ideologia, tomada enquanto uma forma de enfrentamento dos conflitos sociais, é parte da práxis política. (idem: 89)
Compreendemos então, que formas de apreensão do significado da ética podem estar vinculados a pontos de vista diferenciados: por um lado podem limitá-Ias à prática moral, individualizada, definida no cotidiano pela obediência à normas e deveres, desvinculada de sua relação com a política e do seu sentido genérico social. Noutro ponto de vista, a moral pode ser compreendida como uma relação social e a ética como uma ação e reflexão teórica. O ser social é entendido em sua totalidade, na compreensão da sua universalidade, como ser humano genérico.
É a partir dessas fundamentações teóricas e filosóficas, permeadas por pontos de vista diferenciados, que se constroem as concepções de ética das profissões, onde se definem princípios, normas, orientações gerais e específicas para a inserção de uma determinada profissão no contexto da prática social. Mas, como isso pode ser colocado, especificamente, no cotidiano de trabalho do assistente social?
- 2. A ética e o trabalho do assistente social
A ética é um aspecto fundamental na dimensão prática de qualquer profissão, pois pelo processo de reflexão ética é possível tanto a análise crítica da realidade social, como a influência na tomada de decisão política.
No caso do Serviço Social, a reflexão ética assume um conteúdo complexo pela própria especificidade de constituição das demandas[49] que se colocam aos profissionais em seu cotidiano de trabalho. Tais demandas se constituem em exigências concretas a necessidades sociais, muitas vezes imediatas, no interior de uma realidade adversa e contraditória.
Estas contradições e adversidades que fazem parte do cotidiano de trabalho do assistente social, e muitas vezes se tornam o próprio caminho de sua atuação profissional.[50]
Segundo Barroco (1999:132) “o conteúdo da ética profissional “é construído na práxis cotidiana, espaço de confrontos das situações de conflitos que demandam um posicionamento de valor.”
A dimensão da ética no espaço de realização da profissão vincula-se ao papel que a mesma desempenha na sociedade, em um período histórico determinado. Na realidade, as profissões incorporam os valores em vigor. Mas, também instituem os veículos de discussão e re-atualização desses valores e princípios éticos-morais.
A problematização dos valores que fundamentam as profissões são enunciados através dos seus códigos de ética, os quais tanto podem se referir a dimensão social na qual a profissão se insere, como aos aspectos específicos das relações estabelecidas por tal profissão no período e contexto social em que se realiza.
A reflexão ética institui as bases para afirmação do conhecimento e compromisso profissionais, estabelecendo meios para uma postura e consciência dos profissionais.
Barroco (1999: 129) afirma que a ética profissional é uma dimensão da profissão vinculada organicamente às dimensões teórica, técnica, política e prática. Neste sentido, a autora expõe três esferas constitutivas da ética profissional, as quais consideramos importante expor aqui, visto que nos concede uma compreensão melhor das particularidades dos elementos presentes na ética profissional.
• A Esfera Teórica constitui-se de orientações filosóficas e teórico-metodológicas que fundamentam as concepções éticas profissionais (valores, princípios, visão de homem e de sociedade)
• A Esfera Moral Prática que envolve: o comportamento prático individual dos profissionais em suas ações, orientadas pelas suas visões de mundo, juízos de valor, responsabilidades, compromisso social, e o conjunto das ações profissionais em seu processo de organização coletiva, direcionada teleologicamente para a realização de determinados projetos com seus valores e princípios éticos.
• A Esfera Normativa expressa no Código de Ética Profissional, uma exigência estatutária, que é referida a todas as profissões liberais. Constitui-se de um código moral, onde se orienta o comportamento individual dos profissionais e se define uma direção social, através de um projeto profissional. (Cf. Barroco: 1999: 129)
Nesta perspectiva, apontamos aqui para a necessidade de uma constante reflexão teórica, que deve ser realizada pelo assistente social no cotidiano de sua atuação. Tal reflexão envolve a compreensão dos princípios ético-políticos explícitos no código de ética, Tais princípios configuram as orientações de um projeto profissional, que se incorpora num processo de constituição da ética profissional, mas se caracteriza por uma perspectiva mais ampla, na medida em que aponta para um ideal maior que é o compromisso social, a defesa da democracia, da cidadania e da justiça social, indicando, claramente, um posicionamento político na medida em que aponta para um processo de construção de uma nova ordem societária.
Quando voltamos essa discussão para o cotidiano profissional do assistente social, uma questão que nos ocorre é a importância que a ética assume 00 espaço de concretização da ação profissional. Pois, existem caminhos, estratégias que, utilizadas pelo assistente social no cotidiano, consideramos que estão em conformidade com as orientações do projeto ético- político do Serviço Social.
Neste sentido, enfatiza-se aqui a importância da utilização sistemática do código de ética pelo assistente social, visto que, contribui para o direcionamento profissional; fruto dos posicionamentos ético-políticos construídos historicamente pela profissão e que precisam materializar-se nas ações cotidianas.
Mas, como isto pode ser realizado! Tentaremos apontar alguns caminhos que, na nossa concepção, podem contribuir com esse processo.
- 3. O projeto ético-político e o cotidiano de trabalho do assistente social
Procurar viabilizar o trabalho profissional orientado pelos princípios ético-políticos do projeto profissional é um desafio que se coloca para o assistente social em seu cotidiano, visto que, antes de tudo, deve-se reconhecer que as dificuldades presentes são resultantes de um projeto maior que é o da ordem capitalista. Então, o primeiro passo é reconhecer o projeto ético-político profissional, partindo da análise da realidade contemporânea e das contradições que se apresentam no contexto atual.
O segundo passo é torná-lo visível no cotidiano de trabalho, onde a defesa da universalidade, da liberdade, da democracia, da cidadania torne-se componente essencial da atuação profissional. A perspectiva deve ser de buscar garantir ações articuladas às necessidades concretas da população.
Outra questão é não se amoldar ao mero fazer cotidiano, às práticas rotineiras, repetitivas e imediatas, o que não significa negá-las. Pois é preciso saber conduzir essas ações, mas dentro de um projeto, que leve em consideração as reais necessidades da população e as possibilidades conjunturais. Para isto, o profissional precisa ter uma postura investigativa que lhe permita identificar os problemas, classificar as prioridades, visualizar os caminhos possíveis, estabelecer as alianças e conduzir o processo interventivo.
A consciência ética do profissional se faz na análise e enfrentamento dos conflitos cotidianos, na sua crítica, na compreensão das contradições que se apresentam e em proposição de estratégias.
De acordo com Iamamoto (1997:08), as possibilidades são dadas pela realidade, compete ao assistente social apropriar-se delas, transformando-as em projetos de trabalho, abrindo os horizontes para uma nova perspectiva frente às adversidades conjunturais.
Um quarto ponto que consideramos importante é a participação e envolvimento dos assistentes sociais em fóruns de discussão que envolvam os direitos humanos, políticos e sociais. Certamente isto influirá na sua atuação cotidiana, inclusive considerando-se que uma das atribuições do assistente social consiste em prestar as informações e esclarecimentos sobre direitos dos usuários e, para isso é preciso ter conhecimento, domínio teórico, político, efetivo sobre esses direitos.
O nosso entendimento é de que esse processo de participação e envolvimento dos assistentes sociais nos momentos onde se travam as discussões e movimentos, de constituição de direitos sociais, é fundamental para a compreensão da realidade e consequentemente para definição de suas proposições e estratégias de atuação.
Uma outra questão é ter clareza de que sendo o assistente social formado como um generalista, para trabalhar com as seqüelas da “questão social”[51], a inserção dos profissionais em áreas como: saúde, judiciário, educação, assistência social, ong’s, empresas, etc., requer um posterior aprofundamento, de acordo com a especificidade institucional em que se vai atuar.
Este aprofundamento deve ser constituído pela busca sistemática de fundamentação do objeto de intervenção através do conhecimento e leis, regulamentações, produções teóricas da área específica e do Serviço Social, como também pela troca de experiências no contato com profissionais na instituição, ou em outras instituições afins, em outras cidades, outros estados, num processo de socialização de conhecimentos, dúvidas e questionamentos.
Os conhecimentos adquiridos no próprio trabalho[52] contribuem para a compreensão da realidade institucional e das demandas colocadas à profissão, ao mesmo tempo possibilitam ao profissional realizar proposições. Então, ao se inserir em uma determinada área, o profissional deve procurar especializar-se e conhecer profundamente esse espaço de atuação, pois isto lhe dará as possibilidades e à competência para elaborar propostas de atuação efetivas.
Outra indicação que apontamos é a identificação e reconhecimento das demandas colocadas ao Serviço Social, que podem se referir a um conjunto de situações que envolvem as necessidades pessoais, familiares, dentre outras, que apesar de se apresentarem como questões individuais, se referem a necessidades coletivas, como por exemplo:
• a busca de serviços como: saúde, assistência social, etc.;
• a solução de situações que impedem ou se constituem obstáculos no acesso aos serviços;
• as dificuldades de informações sobre o funcionamento de determinado serviço, ou às condições e capacidade de atendimento que contribuem para a existência de uma demanda reprimida;
• a falta de conhecimentos sobre os direitos e as formas de exercê-lo.
Estas, dentre outras, são demandas que se apresentam para o Serviço Social e que o profissional precisa ter clareza e reconhecer a necessidade de transformá-Ias a partir de ações efetivas.
Para nós, a identificação e reconhecimento dessas situações como demandas, pelo assistente sociais faz parte do esforço pelo reconhecimento dos direitos e da preocupação com a sua discussão e efetivação; ou’ ainda a organização de ações que envolvam a melhoria das relações que se estabelecem dentro da instituição e desta com a população, passa pela necessidade de democratizar os espaços e efetivar ações de reconhecimento da cidadania e concretização dos direitos sociais.
Na realidade, a forma de problematização das demandas, ou seja, o processo de construção do objeto de’ intervenção é que vai refletir e prescindir de uma direção ético-política. O nosso entendimento.é de que o conjunto de ações voltadas para assegurar o acesso ao direito universal, com’ relação à realidade, às necessidades e à cultura dos usuários é que vincula as ações profissionais às orientações do projeto ético-político.
Se no conjunto dessas ações, as atividades profissionais são direcionadas no sentido de conformar ou adaptar a população à uma dada realidade de exclusão social, de fragmentação do acesso aos serviços, de aceitação da seletividade e da situação colocada, estas ações com certeza se distanciam das necessidades dos usuários e consequentemente das orientações do projeto ético-político.
Neste sentido, é fundamental a compreensão da realidade, para que se possa criar as possíveis estratégias de ultrapassagem dessas situações que foram expostas.
É um processo complexo, envolve uma série de questões e situações, que engloba desde o planejamento das ações, à socialização e execução das mesmas. É, neste sentido, que são viabilizadas as atividades dos assistentes sociais. Ou seja, o processo de articulação e execução do trabalho depende do posicionamento profissional em face das necessidades coletivas.
Quando convoca reuniões, cria formas alternativas de trabalho, que envolva a participação da população, expõe objetivos na execução dos trabalhos e envolve as equipes na instituição, ou mesmo quando se realiza atividades educativas, verifica-se no planejamento e na execução de políticas, a necessidade de articulação do trabalho coletivo, e de propostas, cuja iniciativa do Serviço Social seja de articular, socializar, envolver setores na realização de ações que respondam às demandas.
Com certeza tais atividades estão permeadas por inúmeras dificuldades, mas este fato não pode servir de empecilho para a concretização do trabalho, ao contrário, é preciso contorná-las e qualificá-las, em função das necessidades e interesses da população.
E uma última questão que considero importante salientar é sobre o processo de organização coletiva da categoria, que realmente precisa de um fortalecimento, isso envolve o compromisso do assistente social consigo mesmo, com a profissão e com a sociedade. Esta é uma questão que merece ser discutida e aprofundada no âmbito da categoria profissional, que encontra-se, ao nosso ver, bastante desarticulada.
- 4. Conclusão:
As indicações aqui apresentadas não devem ser vistas como uma tentativa de construir um modelo de atuação profissional, é preciso cuidado para não incorrer neste erro, pois lidamos com questões da realidade, que pela sua dinâmica não comporta aplicação de modelos ou fórmulas mágicas. A nossa intenção é mostrar que existem possibilidades que devem ser apropriadas.
Concordamos com Iamamoto (1998:99) quando afirma que a dimensão política presente no exercício profissional abre as possibilidades de neutralizar a alienação do trabalho para o sujeito que a realiza.
Para isso é importante que o assistente social esteja inserido em todos os espaços coletivos, participando de conselhos de conferências, de debates de repercussão social.
É preciso compreender as orientações presentes no Código de Ética do Serviço Social, reconhecendo o projeto profissional, e isso se faz resgatando a historicidade da profissão e sua inserção no contexto das contradições da sociedade capitalista. Compreendendo que, como projeto coletivo aponta para as possibilidades de alcance dos ideais de uma coletividade, que só pode adquirir consistência na análise da realidade e na ação. É no movimento do espaço cotidiano que o profissional deve explorar, as reais possibilidades, reconhecendo os limites de seu trabalho, fazendo uso, consciente, dos meios e estratégias para a concretização do que é planejado.
Enfim, podemos reafirmar após todas essas considerações, que a ética é fundamento de todo o processo da sociabilidade. E hoje, constitui uma das questões urgentes e necessárias em face da desigualdade, da crescente desumanização e miséria social, tornando-se cada vez mais categórico, no processo de construção de uma nova organização social e política, onde a vida seja reconhecida como direito radical, e as manifestações que buscam afirmar os direitos humanos e a justiça como práticas cotidianas sejam respeitadas.
O nosso entendimento é de que no cotidiano profissional, deve ser criado o espaço ético-político, que propicie a consolidação do projeto profissional, e isso requer um esforço conjunto dos assistentes sociais, isso implica em uma organização maior da categoria profissional.
É preciso compreender o que representa, hoje, o projeto ético-político do Serviço Social, e isso se faz analisando a sociedade atual e rediscutindo-o, repensando inclusive novas orientações para a profissão.
BIBLIOGRAFIA
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A centralidade ético-política do Serviço
Social: reflexões a partir da
problemática da violência de gênero
Miriam de Oliveira Inácio[53]
Qual o lugar que o componente ético-político vem ocupando nas reflexões sobre o exercício profissional do Serviço Social na atualidade? É pertinente falar de uma centralidade ético-política no exercício profissional? Como ela se expressa e quais suas contribuições para o desvelamento da prática profissional numa realidade social mais ampla?[54]
Hoje, nos parece que tais reflexões se tornam cruciais.Quando já há aproximadamente dez anos após a aprovação do código de ética (1993) e a legitimação, pela categoria organizada, de um projeto ético-político voltado para a plena emancipação humana, ainda nos deparamos com uma enorme distância entre as orientações propostas pelo projeto ético-político profissional e a prática cotidiana do (a) Assistente Social nos seus campos de trabalho.
O que está na pauta do debate atual é a própria viabilidade do atuai projeto profissional, pois se de um lado nos deparamos com o desconhecimento de parcelas significativas da categoria sobre o projeto profissional e o próprio código, de outro identificamos uma compreensão errônea de alguns que consideram tal projeto de cunho reformista ou até mesmo utópico.
E o por quê dessas reflexões a partir da problemática da violência de gênero? Em função de o Serviço Social desenvolver uma atuação nesta área que possui um caráter eminentemente educativo junto à família, que requer a utilização de valores éticos, podemos afirmar que esta centralidade ético-política torna-se mais evidente.
Neste artigo, iremos analisar a dimensão ético-política e sua centralidade no exercício profissional a partir do cenário institucional de atenção à violência de gênero nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM’s).
Para isso, sentimos a necessidade de recuperar, ainda que brevemente, o estágio atual do debate ético no Serviço Social e o papel da ética profissional enquanto reflexão crítico-filosófica sobre as respostas profissionais diante dos desafios e contradições da realidade social. Abordaremos, também, algumas particularidades do trabalho de atenção à violência de gênero nas DEAM’s, destacando as respostas profissionais do Serviço Social às demandas sócio-educativas aí expressas, ou seja, caracterizando seu ethos profissional.
Compreendemos que em qualquer espaço de atuação profissional, ainda que o sujeito não tenha a consciência moral[55] de que trabalha com elementos valorativos, sabemos da existência de “crenças silenciosas” que movem e dirigem as ações, no cotidiano profissional, para uma determinada perspectiva, que estará sempre associada a um projeto de sociedade, com suas implicações ético-políticas.
Partilhamos da perspectiva que considera a ética[56] enquanto espaço de reflexão crítico-filosófica sobre os valores morais e a conduta humana. Se fundamentada numa perspectiva crítica, pode realizar a crítica radical aos valores dominantes na sociedade, desmistificar o significado sócio-político desses valores e o seu papel na reprodução de determinadas relações sociais.
Para que exista qualquer ação ética é necessário que o indivíduo tenha liberdade de escolha. Portanto, a liberdade é condição fundamental da existência ética, uma vez que sem a possibilidade de escolha e autonomia, o indivíduo não pode ser responsabilizado pela sua conduta moral.
A liberdade como capacidade humana, constitui-se valor central da ética. O homem, enquanto ser histórico-social, age eticamente porque é capaz de agir de modo consciente e livre, ao dispor de condições objetivas para criar alternativas e escolhas. (Barroco, 2000).
Recuperando o debate ético no Serviço Social, temos que desde o início dos anos 90 até o momento, ocorreu um redimensionamento na compreensão sobre o lugar da ética na profissão. Nesse período, foi possível afirmar que o debate sobre a ética não se restringiu à ética profissional, e que esta não ficou reduzida à sua dimensão normativa, ou seja, ao código de ética. Ficou em evidência a discussão sobre os conflitos entre valores profissionais e pessoais e a necessidade da internalização de valores conciliados ao projeto ético-político profissional objetivado no código de ética. (Paiva et. alli, 1998).
Chegou-se a conclusão que se torna fundamental uma maior publicização desse projeto ético-político, buscando mais possibilidades de viabilização daqueles valores inscritos no projeto profissional[57], considerando evidentemente as particularidades do exercício profissional e os limites impostos pela ordem burguesa (Brites e Barroco, 2000; Iamamoto, 1998).
Foi possível, também, elucidar as várias dimensões da ética profissional, que estão intimamente articuladas: a filosófica, formada pelas bases teórico e ético-filosóficas responsáveis pela concepção de ética e pela reflexão sobre os valores; o ethos profissional, referido à moralidade profissional (a consciência moral dos sujeitos profissionais) e as conseqüências ético-políticas das ações individuais e profissionais (a partir dos posicionamentos ético-políticos dos (as) profissionais, indicando um dever ser implícito no projeto profissional); e a normativa, expressa no código de ética profissional, estabelecendo normas, deveres, direitos e proibições (Barroco, 1~99, 2001; Paiva et. alli, 1998).
Quando falamos da dimensão ético-política de uma profissão como o Serviço Social, estamos nos referindo aos valores e princípios norteadores da profissão, articulados a uma direção social voltada para a defesa de determinado projeto de profissão, em sua articulação com determinado projeto societário.[58]
Nesse sentido, ao pensarmos nessa dimensão ético-política do exercício profissional, vemos que a ética realiza uma mediação entre o saber e a práxis política, por meio da interiorização de valores e princípios profissionais que suscitam novas posturas, ou da construção pessoal e profissional. Daí a intrínseca relação entre ética e política (Paiva e Sales, 1996:203).
No interior do debate sobre a ética profissional no Serviço Social, as discussões que culminaram com a aprovação do atual código compreendem a ética a partir da ontologia do ser social.
Esta concepção já contém, em si mesma, uma projeção de sociedade – aquela em que se propicie aos trabalhadores um pleno desenvolvimento para a invenção e vivência de novos valores, o que, evidentemente, supõe a erradicação de todos os processos de exploração, opressão e alienação (Código de Ética Profissional do Assistente Social, 1993).
Apesar do marxismo não ter elaborado uma ética, ou seja, não podemos afirmar que o marxismo represente uma corrente ético-filosófica, no sentido de elaborar e fundamentar critérios do que venha a ser o ético, a teoria social de Marx faz uma crítica à moral burguesa e nos permite desmistificar o real significado dos valores: suas contradições e seu caráter de classe ou grupo social.
(…) Uma ética fundada em Marx tem um caráter revolucionário. Em termos de reflexão ética exige a crítica radical e a perspectiva de totalidade; em termos de valores se apóia na liberdade e na emancipação humana. Praticamente, supõe um projeto societário de supressão da alienação, da exploração, das formas reificadas de viver moralmente (Barroco, 2001: 198).
De acordo com Barroco (2000), o significado da ética na ontologia social de Marx parte da idéia fundamental de que é o homem, com suas capacidades e potencialidades, que possibilita a ação ética (criação de valor, escolha consciente e objetivação das escolhas). O homem está constantemente se autoconstruindo, por meio do trabalho, respondendo as suas necessidades materiais e espirituais, por meio de mediações (consciência, conhecimento, linguagem, cooperação, valoração de objetos, ações e costumes).
Assim, a ética como reflexão filosófica, possibilita ao homem adquirir uma consciência como ser humano-genérico (Barroco, 1999: 126).
Também o debate sobre a ética profissional nos marcos da teoria marxista vai resgatar as conexões entre as demandas sociais postas à profissão e suas possibilidades de resposta frente aos projetos societários divergentes na sociedade.
Nesse sentido, compreende-se que o ethos profissional é construído na relação entre as necessidades sócio-econômicas e ídeo-culturais e as possibilidades de escolhas ético-morais dos sujeitos profissionais (Barroco, 2001:68).
Então, as discussões sobre a ética profissional estão articuladas a uma compreensão da ética enquanto reflexão crítica, filosófica, radical e de totalidade. Nesse sentido,
A ética volta-se para a apreensão dos fundamentos sócio-históricos da moral, donde a compreensão de que o ethos pertence ao domínio da práxis e da liberdade – e que moral e ética são produtos históricos e respostas a necessidades, de acordo com o que é possível em cada momento histórico (Barroco, 1996:94).
Conforme Iamamoto (1998), é importante, também, explicitar a dimensão teleológica do trabalho[59], considerando o sujeito da atividade laborativa e seu nível de consciência ético-política, que com seus “ethos” (costumes, valores, virtudes, vícios e projetos) e autonomia criam as finalidades para sua atuação, uma vez que “esse ato de acionar consciente, que é o trabalho, é uma atividade que tem uma necessária dimensão ética, como atividade direcionada a fins, que tem a ver com valores, com dever ser, envolvendo uma dimensão de conhecimento e ético-moral”. (Iamamoto, 1998: 61),
Se analisarmos a problemática da violência contra a mulher, o recurso ao componente ético-político nos parece indispensável, uma vez que a intervenção de diferentes setores profissionais sobre tal problemática envolve a relação entre as dimensões público e privado, visto que.a violência ocorre majoritariamente no espaço familiar.
Nas ações dos (as) diversos profissionais existe a possibilidade da adoção de valores – ainda que de forma inconsciente – construídos sobre um ethos societário dominante e legitimador do machismo e do preconceito dispensado às mulheres, podendo traduzir-se em práticas de naturalização da violência contra a mulher; e conseqüentemente de violação dos seus direitos humanos.
Portanto, torna-se relevante destacar a influência do ethos[60] individual/ profissional na direção do trabalho, tendo em vista que o cenário institucional de violência contra a mulher parece ser um terreno propício para a reprodução de valores construídos sobre um ethos dominante marcado pela hierarquia de gênero.
Desde a criação das primeiras Delegacias da Mulher, o Serviço Social tem sua inserção voltada para um atendimento social e moral, cuja finalidade é desenvolver uma política de prevenção criminal, orientar a mulher sobre seus direitos e valorizar sua auto-estima para romper com a impotência diante da violência.[61]
A ação do Serviço Social exige uma intrínseca relação entre Gênero e Ética, tendo como eixo a defesa dos Direitos Humanos. Isso porque os (as) profissionais trabalham com elementos valorativos – remetendo para o campo da ética – que podem vir a reforçar ou a desconstruir o padrão dominante de relações de gênero presente na sociedade.
As DEAM’s atendem majoritariamente a casos de violência conjugal, donde praticamente todos (as) os (as) profissionais que aí trabalham realizam uma atividade de aconselhamento junto a vítimas e agressores, uma vez que tanto homens como mulheres procuram esta instituição em busca de orientação sobre seus direitos sociais e humanos.
Os (as) profissionais atuam junto à família, emitem opiniões e juízos de valor sobre a problemática da violência contra a mulher, extrapolando as atividades meramente policiais, em função do tipo de crime, por se tratar de uma violência que ocorre na família: a violência conjugal.
Conforme Silva (2002), as ações das DEAM’s podem ser divididas em atribuições/obrigações e práticas extrapoliciais não regulamentadas. Com base nos dados da “Pesquisa Nacional sobre as condições de funcionamento das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres[62], essa autora destaca que em termos de suas atribuições oficiais, 92,13% das delegacias dizem realizar atendimento às mulheres vítimas de violência, registrando, apurando e investigando queixas; 42,79% afirmam praticar conciliação e mediação entre as partes conflitantes; 37,83% fazem atividades de prevenção à violência contra a mulher e 29, 69% afirmam realizar atendimento psicológico e social às mulheres.
E considerando as práticas não regulamentadas oficialmente, vistas como extrapoliciais, os (as) profissionais entrevistados (as) afirmam realizar práticas educativas, além das suas atribuições normalizadas, como aconselhamento (93,63%) e palestras sobre gênero e violência nas escolas (55,43%).
A autora chama a atenção para a responsabilidade dos agentes envolvidos nessas tarefas de natureza educativa na democratização das relações de gênero, pois se é atribuição precípua das DEAM’s a criminalização, tais práticas devem ocorrer à luz de valores éticos do respeito aos direitos humanos e da integridade moral e física das mulheres (2002:11).
Conforme Brandão (1998), em estudo realizado sobre o atendimento policial em uma Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro, ocorre entre os (as) profissionais uma naturalização da violência conjugal e, por conseguinte, uma banalização da intervenção sobre a mesma, em que a investigação do fato cede lugar à discussão sobre a conduta moral da “vítima” e do “acusado”.
A prática do Serviço Social não está imune a este contraditório cotidiano institucional. Se o (a) profissional está inserido num contexto social em que predomina a banalização da violência de gênero, baseado na idéia de que em briga de marido e mulher não se mete a colher, por ser esta modalidade de violência uma questão da vida privada que não merece intervenção pública, várias inquietações devem permear a intervenção do (a) Assistente Social nesse campo.
Por exemplo, como os (as) Assistentes Sociais se posicionam diante da questão da ambigüidade feminina? Essa ambigüidade se expressa em algumas posturas da mulher; como por exemplo, quando ela denuncia e, ao mesmo tempo, não deseja punir legalmente o companheiro agressor; ou quando, ela demonstra insatisfação com o agressor e, por outro lado, valoriza suas qualidades de “bom pai” e chefe da casa.
As próprias expectativas das mulheres em relação à Delegacia já contêm, em si, uma ambigüidade, pois “ao reivindicarem determinadas medidas ‘corretivas’ contra os parceiros, as mulheres não buscam uma punição específica para aquele delito denunciado, mas a restauração de toda uma ordem que confere sentido não só àquela relação, mas à sua existência social” (Brandão, 1998:63).
Conforme Brandão (1998), o recurso feminino à polícia torna-se um meio de reforçar a lógica de gênero na perspectiva do restabelecimento do regime ideal (tradicional) de relação entre os sexos, mas sem a violência, haja vista a visão da polícia como “ordem masculina”.
A questão da violência contra a mulher precisa ser analisada a partir de uma compreensão de gênero[63], fundamental para se entender a questão da ambigüidade feminina: a maioria das mulheres não quer punir o agressor, mas estabelecer novas relações, fundamentalmente sem violência.
Numa Delegacia da Mulher, a intervenção do Serviço Social se diferencia da prática eminentemente policial, visto que as demandas postas à profissão referem-se a ações sócio-assistenciais (esclarecimento e encaminhamentos relativos a questões de pensão alimentícia, separação judicial, partilha de bens, etc.) e ético-educativas (negociação de conflitos familiares e conjugais), devido a dimensão educativa da profissão[64].
A dimensão educativa do trabalho do (a) Assistente Social interfere no modo de pensar e viver dos usuários: “essa prática se delineia a partir das mediações entre o universo simbólico dos usuários e o paradigma teórico-metodológico adotado pela profissional, que, por sua vez, se sustenta em uma determinada visão de mundo, organizadora de seu universo simbólico” (Silva, 1992)[65].
Em relação às perspectivas ético-políticas do trabalho profissional do Serviço Social, identificamos a possibilidade de uma heterogeneidade quanto à direção social do trabalho, em que se mesclam práticas balizadas tanto no ideário conservador quanto no feminista.
Em primeiro lugar, devemos considerar que a expectativa da maioria das mulheres que procuram a DEAM é a “harmonia” familiar e não a sua dissolução.
A família nuclear burguesa é o modelo hegemônico na nossa sociedade e a tendência predominante é o reforço desse modelo de família “( … ) seguidora das tradições, composta de mãe, pai e filhos, coexistindo por laços de aliança e consangüinidade, vivendo numa casa harmoniosa e destinada a ser feliz para toda a vida” (José Filho, 2001:79).
O ideário conservador traduz-se na defesa da família nuclear, em que os determinantes da violência contra a mulher estão associados a problemas de “desestruturação familiar”.[66]
De Maistre Bonald, filósofo francês representante do pensamento conservador, afirmou que “a autoridade – e daí a liberdade ou autonomia – da família é sacrossanta; nem o Estado nem a Igreja têm o direito de transgredir as prerrogativas ligadas ao parentesco” (Nisbet, 1987:70 Apud Barroco, 1996:141).
Na história do Serviço Social, vamos encontrar a origem do ethos profissional na ideologia conservadora e na moral positivista, fundamentados na defesa da família tradicional e da moralidade “feminina” que aprisiona o papel da mulher às suas características naturais (Barroco, 1996:225).
Trata-se de uma perspectiva ética conservadora que restringe a mulher ao espaço da vida doméstica, em que seu trabalho configura-se útil à acumulação do capital tanto do ponto de vista do processo reprodutivo, como da educação moral que lhe é atribuída para garantir a harmonia na sociedade. Nesse sentido,
o homem deve sustentar a mulher, a fim de que ela possa preencher convenientemente seu santo destino social. (…) sob a santa reação da revolução feminina, a revolução proletária purificar-se-á espontaneamente das disposições subversivas que até aqui a têm neutralizado (Comte, 1977: 115 Apud Barroco, 1996: 115).
Tal tendência faz parte do modelo predominante existente na sociedade contemporânea, pois segundo Barroco (1996:81), “os comportamentos orientam-se por valores, compondo um conjunto de papéis sociais vinculados ao ethos socialmente legitimado”.
As práticas precisam, portanto, ser analisadas dentro de um contexto mais amplo de uma sociedade estruturada sobre múltiplos processos de opressão de classe, gênero e raça. E a instituição e os (as) profissionais que nela trabalham tendem a reproduzir preconceitos e moralismos, atitudes dominantes na sociedade.
Uma outra direção possível é aquela baseada no ideário feminista, ou seja, voltada primordialmente à defesa da igualdade de direitos entre os gêneros, compreendendo que a violência contra mulher é uma questão histórico-cultural, fazendo parte das relações de gênero dominantes na sociedade.
As propostas do movimento feminista são vistas como potencializadoras de conflitos e estímulos à dissolução da família (Rodrigues, 1998:257). Isto porque a defesa dos direitos humanos das mulheres se torna um valor moral superior a defesa da família quando ocorre a violência contra a mulher e esta decide dissolver uma relação conjugal marcada pelo machismo, valor dominante na sociedade.
Nos anos 80, o feminismo[67] foi marcado pelas lutas contra a violência de gênero, afirmando que ‘o privado é também político’, questionando os valores morais da família, colocando na agenda de discussão as questões do corpo, da sexualidade, da liberdade e do amor (Bandeira, 2000:31).
Portanto, foi no século XIX que se assistiu ao surgimento de um dos mais significativos movimentos sociais que se configurou plenamente na segunda metade do século XX, o Movimento Feminista. Após longos séculos de exclusão e de dominação, as mulheres conheceram a possibilidade histórica de pensarem a sua condição, não mais como um destino natural-biológico, conseqüente da condição imposta pelo direito universalizante do mais forte, ao contrária, como sujeitos de uma situação social nova (Varikas, 1989) (Bandeira, 2000: 16).
É necessário compreender, portanto, a caracterização do ethos profissional do Serviço Social na área da violência de gênero a partir das diversas necessidades sócio-culturais postas como demandas à profissão, como já abordamos: a expectativa das mulheres em restabelecer a relação conjugal, muitas vezes baseadas na continuidade da hierarquia de gênero, mas livre da violência; e das demandas postas pela instituição policial para realizar um trabalho educativo, portanto extrapolicial, para resolução dos conflitos familiares.
Compreendendo que o ethos profissional se refere à consciência moral dos sujeitos da atividade, e que esta se orienta por determinados valores e perspectivas, expressando o comportamento profissional, cabe ao (a) profissional pensar como aquelas perspectivas estão presentes na sua atividade, identificando as conseqüências ético-políticas de sua ação nesta área da violência contra a mulher. A profissão tem contribuído para a democratização das relações de gênero e garantia dos Direitos Humanos das mulheres? Por realizar uma atividade predominantemente extrapolicial, de cunho educativo, tem potencializado, também, os encaminhamentos necessários à punição do agressor?
Portanto, nos parece que a dimensão ético-política do Serviço Social adquire uma centralidade na atenção à problemática da violência de gênero, uma vez que requer uma reflexão crítica sobre os valores de gênero hegemônicos na sociedade, e que perpassam tanto o campo institucional, quanto às crenças dos indivíduos sociais.
É fundamental potencializar o debate que já se iniciou, acerca do papel da ética profissional enquanto reflexão crítico-filosófica sobre as respostas profissionais diante dos desafios e contradições da realidade social, destacando a relação entre projeto profissional e projeto societário.
Na área da violência contra a mulher o que está em jogo é a Defesa intransigente dos direitos humanos das mulheres; a opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero; e o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças, princípios defendidos pelo código atual (CFESS, Código de Ética Profissional do Assistente Social, 1993).
Esses princípios se constituem em orientações fundamentais para o exercício, em que a sua incorporação tem suscitado novos posicionamentos profissionais capazes de interferir na vida cotidiana das mulheres atendidas pelo Serviço Social.
Contudo, aqueles valores adquirem um caráter abstrato no capitalismo, que torna impossível a plena efetivação daqueles princípios. A dominação de gênero é aprofundada e consolidada no interior da sociedade capitalista, donde a discriminação dispensada à mulher serve ao sistema de dominação capitalista. Por exemplo, foi com o aparecimento da propriedade privada que a Mulher ficou subordinada aos homens no seio da família. (Moraes, 2000).
Mas, considerando que os homens e as mulheres fazem a história sob determinadas condições, a trajetória histórica das lutas feministas nos tem demonstrado que existem possibilidades para a conquista de novos direitos.
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Ética em movimento: ‘ uma experiência de pesquisa na atuação ético-política do(a) Assistente Social
Cyntia Raquel V. Medeiros
Flávia Franca de Carvalho
Marina Guimarães Gondim
Nicoly Danielle Neves
Rauliana Karina Sales*
O conceito de ética no momento está passando por um processo de popularização, utilizado aleatoriamente no cotidiano do cidadão comum. Fala-se em ética em filas de banco, em bares, nas conversas informais entre amigos e em outros espaços de convivência social. No entanto, são nos espaços de atuação dos profissionais que a ética ocupa um locus original, mesmo quando esta não é falada e nem discutida, pressupõe-se que os profissionais, principalmente os de nível superior, encarem um comportamento ético, assumindo valores que coincidam ou se contraponham às normas institucionais, à sua categoria profissional e à moral social vigente, que é determinada e construída historicamente.
Nos dias de hoje, podemos exemplificar estes valores culturais no âmbito profissional, como um simples cumprimento de horários, respeito ao trabalho do outro, postura honesta diante das requisições institucionais, atendimento qualificado aos seus usuários, clientes, pacientes e etc.
A escolha deste tipo de procedimento não é apenas casual, mas cultural, pois, a ideologia hegemônica da classe burguesa determina os valores morais para a sociedade. Estes valores embasam um posicionamento político, que pode ser limitado à ação profissional, não atingindo diretamente as causas dos problemas sociais.
Segundo Chauí, “Não se pode pensar na ação ética sem pensá-la como uma ação política. Por que na medida em que a ação do sujeito entra em contradição ou’ em conflito com a moralidade universal e abstrata da sua sociedade, a ação que ele realiza ou é de conformismo ou de contraposição a isto (…)” (2000: 51).
E dentro desta perspectiva que se coloca o “Projeto Ética em Movimento”, desenvolvido pelo CFESS em articulação com os CRESS. Seu maior objetivo é desfazer a noção de restrição do debate ético ao Código de Ética Profissional. Uma oportunidade de “desengavetar” nossos princípios ético-políticos, dando-lhes vida tanto no campo profissional como no social. Constitui-se, entre outros, um dos eixos principais do projeto dar visibilidade social à ética profissional, ou seja, analisar posicionamentos ético-políticos à luz dos princípios do Código de ética profissional, estabelecendo uma relação com a ética e com a política. Conforme CFESS (1999) são eixos do projeto:
• Formação de Agentes Multiplicadores;
• Viabilizar política e juridicamente denúncias éticas;
• Publicizar posicionamentos ético-políticos públicos sobre ações de governo, acontecimentos relacionados à ética na sociedade, em nível regional e nacional;
• Fortalecer a interlocação com organismos internacionais e nacionais na defesa dos Direitos Humanos e Sociais;
• Sugerir um espaço fixo na Revista Inscrita para posicionamentos e denúncias éticas;
• Realizar uma pesquisa articulada com a ABEPSS e a ENESSO;
• Aprofundar o entendimento nacional no que diz respeito ao trabalho voluntário;
• Aprofundar o debate ético através da participação em encontros e publicações.
“Ética em movimento” é o mais recente projeto em que o GEPE – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética – está envolvido, à medida que aquele tem a perspectiva de fertilizar ao máximo as potencialidades do Código de Ética, enquanto um documento estratégico, que possibilita explicitar as várias dimensões do projeto ético-político profissional, ao assumir o compromisso com valores e princípios como liberdade, democracia, justiça social e equidade. É assinalado um campo de possibilidades, que extrapola deveres e direitos neles inscritos, portanto, suscita atitudes político-profissionais firmes, que denunciem criticamente os mecanismos de individualismo, particularismo, corrupção e desigualdades intensificados nesses tempos de neoliberalismo.
A intenção desse projeto é reoxigenar o debate, aprofundando princípios ético-políticos, fazendo-os sair do espaço restrito dos arquivos, pastas e gavetas. Na verdade, trata-se de imprimir visibilidade profissional e social, dar vida, ou seja, movimento à categoria ofertando-lhe a possibilidade de materializar uma concepção de ética mais ampla que sua expressão legal. É, portanto, um projeto que visa resignificar/traduzir o movimento da ética na realidade, abordando-o como uma mediação social viva e dinâmica, tornando-a visível para a categoria e para a sociedade.
A implementação do projeto “Ética em Movimento” na Cidade do Recife – PE suscitou a necessidade de realização de uma pesquisa articulando CFESS/CRESS/UFPE/UNICAP, através da disciplina Ética Profissional. Esta pesquisa tem como objetivo subsidiar a intervenção profissional, dando visibilidade ao processo de aprofundamento, articulação e principalmente efetivação dos fundamentos filosóficos da Ética à sua operacionalidade, no âmbito do exercício profissional. Tal pesquisa contou com a participação de alunos da disciplina de Ética Profissional da UNICAP e alunos da mesma disciplina do sétimo período de Serviço Social da UFPE[68] e constituiu-se de várias etapas, dentre elas a definição das áreas de atuação profissional; visita ao CRESS para identificar o universo institucional do campo de atuação, e de assistentes sociais (identificamos 127 instituições totalizando 964 assistentes sociais); elaboração de questionários com perguntas abertas e fechadas; divisão das instituições entre as equipes (foram utilizadas para amostragem 50% + 1 do total de instituições)
Na UFPE, a metodologia utilizada foi a divisão da sala em subgrupos cujos coordenadores são membros do GEPE; e que têm como atribuições participar efetivamente de todas as fases do presente projeto e, principalmente, orientar os subgrupos, que foram divididos em áreas de interesses dos alunos: Saúde, Assistência e Previdência, Empresa e Diversos (ONG’s, Consultarias, e Entidades Governamentais).
Como recursos de pesquisa, foram utilizadas análise documental[69] e em seguida a elaboração de um Roteiro de Entrevista com as Assistentes Sociais. A implementação da pesquisa foi precedida de um pré-teste do respectivo roteiro, que subsidiou a realização da pesquisa de campo, a partir de visitas às instituições selecionadas.
- 1. A Ética no Cotidiano do (a) Assistente Social
O cenário dos anos 90 no Brasil é caracterizado pela vigência do neoliberalismo: o “ajuste neoliberal” é posto como estratégia de saída da crise do Estado e do capitalismo no país, após o que se convencionou chamar de “década perdida”, ou seja, os anos 80. O “ajuste neoliberal” é caracterizado, principalmente por uma economia centrada na abertura comercial e pelo impulso no processo de privatização, desregulamentação e flexibilização das relações trabalhistas, contenção de gastos públicos, entre outros.
Através das transformações advindas com o projeto político da globalização e com a política neoliberal, em especial a contenção de gastos públicos, percebe-se a falsa imagem de “garantir benefícios” para a população. Ao contrário do que se anuncia, há um descomprometimento do Estado com as políticas sociais, sendo esses fatores entendidos como agudizadores das desigualdades sociais.
Diante dessa contextualização, o Serviço Social enquanto profissão mediadora entre o fogo cruzado de interesses tensionados pela luta de classes entre a burguesia e a classe trabalhadora, busca posicionar-se nu ma postura de confronto ao projeto societário hoje hegemônico, na defesa de uma nova ordem sem dominação e exploração das classes, gênero e etnia, na superação do autoritarismo e do preconceito através da defesa dos direitos humanos e do pluralismo.
A prática profissional do Assistente Social pode, numa articulação com um projeto societário mais amplo, ser um elemento de criação de condições para viabilização da participação social, com intuito de garantir a efetivação dos direitos sociais conquistados. Dentro de uma perspectiva contraditória, observa-se que ao mesmo tempo em que a população se defronta com o individualismo, a corrupção, a hipocrisia, o dito “jeitinho brasileiro”, a conjuntura abre espaço para a discussão de tendências éticas, de valores que norteiem o profissional para um enfrentamento consciente das manifestações da questão social.
Faz-se necessário elucidar que o fio condutor da transformação social deve estar respaldado por princípios éticos, e que esta reflexão ética pode e deve envolver todos os setores da sociedade e não se constituir apenas como iniciativa dos profissionais de Serviço Social. Atualmente, essa reflexão, ainda embrionária, gira em torno de eixos como a crise social e a do sistema do trabalho. Vale ressaltar que o debate ético proposto, ao contrário do que preconiza a ideologia neoliberal, não se pauta em interesses pessoais, mas na busca de uma sociedade emancipada. Logo, a ética torna-se um instrumento de resistência da realidade posta, na medida em que permite uma “revisão radical da vida humana, pessoal e coletiva” (Oliveira, 1993: 29), uma vez que ela tem a ver com as atitudes assumidas pelos homens diante da realidade.
É no contexto dessa problemática, exposta anteriormente, que realizamos a pesquisa do projeto “Ética em Movimento” e é também sobre ela que pautamos a análise dos dados coletados. Num primeiro momento, interrogamos os (as) Assistentes Sociais sobre a sua compreensão sobre a conjuntura e suas determinações no tocante à dimensão ética. A maior parte desses profissionais analisou a conjuntura atual como um período anti-ético. Acreditam, no entanto, que existem fatos marcantes que demonstram que setores da sociedade procuram se conscientizar dos problemas que enfrentamos. Tal constatação pode ser observada no depoimento da Assistente Social conforme explicita o trecho que segue:
“(…) a situação está tão grave e fora de controle que algumas parcelas da sociedade já começam a levantar a bandeira de um agir ético, defendendo uma sociedade mais justa e com respeito aos direitos individuais e coletivos”.
A ordem econômica L1ueimpera no Brasil gera distâncias sociais cada vez mais brutais e o Assistente Social encontra dificuldades para fazer valer os direitos sociais e políticas sociais. É partindo desse pressuposto que identificamos durante a pesquisa, relatos de algumas profissionais afirmando categoricamente: “a realidade influencia cada vez mais uma postura anti-ética dos profissionais”.
O projeto societário hegemônico diverge completamente do projeto ético-político profissional. Apesar de todos esses fatos, há um dado marcante: foi muito reduzido o número de Assistentes Sociais que identificou a ética como um mecanismo de mudança. Há ainda relatos que apontam para uma “banalização” da ética no cotidiano profissional e social:
“(…) pelo que temos visto e sabido, a ética não é hoje uma palavra que faz parte do vocabulário no seu verdadeiro sentido. Vejo ser muito usada com certa banalidade para encobrir erros e justificar a falta de atitude diante dos fatos”.
A partir da compreensão acerca da ética no exercício das profissões, de acordo com as considerações feitas sobre a conjuntura atual, a maior parte das entrevistadas indicou que a ética se constitui como um paradigma e é também imprescindível para o exercício profissional:
“A ética é fundamental no exercício profissional, pois ela dá uma orientação, uma regulamentação à profissão (…)” (Assistente social da área de Empresas)
Quando Reis coloca que “o projeto ético-político profissional (…) tem uma determinada direção social que envolve valores, compromissos sociais e princípios que estão em permanente discussão exatamente porque é participante do movimento vivo e contraditório das classes na sociedade (…)” (2001: 393), vemos que, como bem nos situa um depoimento de um profissional da área de Organizações Não-Governamentais:
“A questão da ética no exercício da profissão não pode ser vista como projeto individual, mas um projeto societário, levando em consideração o nosso código que é voltado para a sociedade”.
Todo profissional tem seu Código de Ética com princípios, valores e normas que norteiam a prática profissional. Na pesquisa do “Ética em Movimento”, um dos depoimentos da área de Saúde destaca:
“(…) é através dela (ética) que o profissional norteia suas ações e relações com os usuários, com os colegas de profissão, com as instituições em que trabalha (…)”.
Além dos princípios e normas profissionais, também os valores pessoais de cada indivíduo contribuem para o exercício das profissões; pois cada pessoa tem seus próprios valores morais; tem seus valores éticos. É o que nos ressalta um depoimento feito por um(a) profissional da área de Assistência e Previdência Social:
“A questão da ética no exercício profissional está diretamente ligada com formas de refletir e agir dos indivíduos”.
A ética está presente nas relações sociais de uma maneira geral, isso é colocado numa entrevista da área de Saúde, na qual o (a) profissional diz que é preciso conhecer a ética “na organização da vida em sociedade, nas relações sociais, nos indivíduos consigo mesmos e nas relações entre si”.
Identificou-se, também, que na realidade social existe uma postura anti-ética devido às condições de trabalho dos profissionais. É o que nos lembra um (a) assistente social da área de Organizações Não-Governamentais que afirma: “todas as profissões estão vulneráveis a essa crise de valores. Se o poder, a competição, o ‘levar vantagem’ estão permeando muitas condutas, as pessoas podem deixar em segundo plano os valores norteadores, quando estes oferecem obstáculos a seus interesses. (…)”, ou ainda um (a) Assistente Social da área de Assistência e Previdência Social, que afirma: “nem sempre a ética é respeitada no exercício das profissões. Na conjuntura atual, algumas estratégias de ação são conflituosas, principalmente em instituições. Por vezes, a burocracia atrapalha os serviços, a política social é limitada restringindo o público (…)”.
Como sabemos, a profissão está inserida na divisão social do trabalho, em que nós, Assistentes Sociais, somos solicitados (as) a buscar formas de enfrentamento da questão social dentro do atual sistema em que vivemos.
Frente à atual conjuntura, o Serviço Social tem que assumir uma postura crítica da realidade, incorporando uma dimensão ético-política que se efetive em sua prática profissional; visto que o (a) profissional tem valores e princípios éticos que norteiam sua prática e sua condição enquanto indivíduo.
Os objetivos propostos pela maioria das instituições se encontram mediados por uma política que tem como principal conseqüência/ resposta a não garantia da efetivação dos princípios do Código de Ética do Serviço Social. Tal fato se concretiza devido ao projeto societário vigente, que se traduz em uma ameaça aos princípios éticos como: Liberdade, Democracia, Cidadania, Direitos Humanos entre outros. Desta forma, os objetivos institucionais se encontram distantes de uma compatibilidade com os princípios do Código de Ética Profissional.
“(…) a prática na área hospitalar na visão institucional requer uma disciplina imposta aos usuários que muitas vezes fere direitos e liberdades individuais. Além disso, as autoridades, chefe da instituição, muitas vezes, têm valores incompatíveis com os princípios éticos do Serviço Social”(Assistente Social da área de Saúde).
Entretanto, mesmo diante desta realidade, existem profissionais do Serviço Social que acreditam nesta compatibilidade, sem fazer a devida leitura crítica das condições contraditórias e discriminatórias vivenciadas pelos usuários:
“A instituição (…) garante aos pacientes atendidos, através do SUS ou por convênios privados, um atendimento completo, sem distinção na qualidade do serviço” (Profissional da área de Saúde).
Torna-se difícil observar tal posicionamento, pois as instituições são inerentes ao sistema capitalista, cuja lógica é intrinsecamente anti-ética, e dita normas a serem seguidas que dificultam a realização de ações norteadas plenamente pela ética.
Sabemos que, historicamente, o Código de Ética, sofreu várias reformulações já que os princípios e valores que norteiam a profissão se modificam também historicamente. Dessa forma, a importância desse documento, é descrita no depoimento que se segue:
“É fundamental o Código de Ética porque o mesmo dá diretriz no meu fazer profissional, funcionando como um parâmetro e auxiliando-me no enfrentamento dos obstáculos com os quais me deparo nó cotidiano profissional” (Assistente Social de Empresa).
Neste contexto, podemos nos valer também da definição de Paiva que afirma: “O Código de Ética pode ser explicitado para além de um instrumento legitimo, como normas que garantem respaldo à prática profissional, ou seja, direitos, deveres, limites, mas também como um instrumento privilegiado que permite à profissão expressar sua identidade ético-política à sociedade”. (Paiva e Sales, 1997:173). Neste sentido, o Código não contém apenas medidas repressivas, mas, sobretudo, recursos inspiradores em condutas e valores como os de democracia, eqüidade, justiça, cidadania e liberdade entre outros, os quais, devem dar fundamentos para a prática cotidiana do profissional.
Diante do exposto, o desafio que se impõe ao Assistente Social é o da materialização dos princípios norteadores do seu Código no cotidiano profissional, seja nas Empresas, na área da Saúde, nas Entidades Governamentais e Não Governamentais ou em, qualquer âmbito da prática do Assistente Social. O Código de Ética não deve ser visto como algo abstrato, sem ligação com o processo social como demonstra o depoimento que segue:
“É possível se implementar, efetivar o código de Ética profissional, na medida em que os profissionais estejam atentos a seus preceitos e se esforcem para concretizá-Ios. Não apenas o engavetem, mas façam uso dele”. (Assistente Social de uma Organização não governamental).
Assim, a ética, que permeia o cotidiano profissional do assistente social, deve estar integrada ao produto final de sua prática. Desse modo, cabe ao profissional reconstruir as mediações, e buscar, com base no projeto ético-político profissional, desenvolver iniciativas que aproximem sua prática das necessidades reais dos usuários e fazer concretizar, dentro de sua atuação, os princípios norteadores de seu Código.
No que se refere à possibilidade de implementar os princípios no exercício profissional, detectamos com os dados de nossa pesquisa, uma diversidade de posicionamento entre os profissionais. No entanto, predominaram aspectos positivos relacionados a isto, como expressa a citação a seguir:
“É uma questão de escolha: conduta pautada por conveniências pessoais ou convicção? (Assistente Social de uma ONG de Recife).
A indagação desta profissional, que contribuiu com a nossa pesquisa, é bastante provocativa, impulsionando todos nós a uma ação reflexiva sobre a postura ética do (a) Assistente Social no campo de trabalho, seja em ONG’ s, instituições públicas ou privadas.
A grande maioria das entrevistadas, responderam que há possibilidades de implementar os princípios do Código de Ética da profissão em suas práticas cotidianas no trabalho, a partir do momento que assumem um compromisso com diversos segmentos da classe subalterna, contribuindo para ampliar sua cidadania através dos serviços prestados com qualidade.
Esta postura ética do (a) profissional não pode ser isolada. Ela depende de vários fatores que contribuem para sua efetivação, como a flexibilização dos posicionamentos institucionais; condições de trabalho favoráveis para o desenvolvimento de sua função; interdisciplinaridade; recursos suficientes para responder às demandas vigentes e a sua própria construção moral e ética de vida, firmadas em convicções ideológicas e de valores que possam pronunciar uma iniciativa de ruptura com a burocratização das atividades.
Segundo relato de uma Assistente Social da área de saúde pública:
“trabalhamos em uma equipe multidisciplinar, garantindo ao usuário o direito ao tratamento médico, visando à saúde a todos que procuram o serviço com diagnóstico. Inclusive, oferecendo todo o serviço social aos familiares, visando garantir o tratamento sem interrupções”.
A ética no dia-a-dia do Assistente Social, apesar de ser pontual, pode suscitar novas possibilidades para os usuários terem acesso aos serviços no espaço institucional, criando uma relação dinâmica interativa entre o profissional, os diversos setores da instituição e o próprio usuário. Este tipo de prática sugere que os princípios estejam nas “entrelinhas” da ação técnica e operativa do profissional; tendo como teleologia a apropriação e implementação dos direitos sociais por parte dos usuários dos serviços, como mediação para uma sociedade livre e emancipada.
Esta visão da postura ética delimitada ao âmbito institucional nos leva a fazer alguns questionamentos. O que implica ser ético? Basta apenas adotar convicções baseadas em valores e ideologias materializadas em uma determinada ação? E, quando as condições materiais objetivas das instituições não proporcionam recursos suficientes para atender suas demandas sociais, esta realidade pode influenciar na atitude e posicionamento éticos do (a) profissional?
Se considerarmos a política social e econômica da nossa sociedade que corta recursos para investimentos na área social, podemos perceber uma delimitação concreta dos direitos constitucionais, como também, a falência e sucateamento e privatização das instituições públicas; a terceirização que precariza os serviços e desqualifica os trabalhadores; o aumento da miséria e a seletividade dos “mais pobres” para terem acesso às políticas sociais imediatistas, focalizadas e compensatórias, destituindo o usuário de sua condição humana cidadã para um estereótipo de “necessitado ou miserável”. A universalidade dos direitos que estão na lei cede lugar a uma realidade excludente e seletiva.
“No nível de uma universalidade ética abstrata, pressupõe-se a existência de um sujeito racional, consciente, livre e responsável que é capaz de se auto-determinar para a ação. Só que isso é abstrato, porque esse sujeito é social e histórico e, portanto, ele vive em condições materiais determinadas. E ele vive em uma sociedade de classes e que propõe, sob a forma de uma moral universal, evidentemente uma ideologia de classes como se fosse uma universalidade ética. Isto significa, portanto, que o simples fato de nós determinarmos as condições pelas quais nós podemos falar numa ação ética, não significa que a realização dessas condições é imediata. Pelo contrário (…) esse obstáculo à ação ética é justamente a ideologia moral estabelecida pela própria sociedade”. (Chauí: 2000, 51)
A prática cotidiana do (a) Assistente Social pode ter uma direção fundamentada nos princípios éticos, mas esta ação está limitada pela realidade que apresenta uma ideologia hegemônica.
1.2. Principais questionamentos do “Ética em Movimento”
No decorrer da análise dos dados da pesquisa do “Ética em Movimento” defrontamo-nos com situações que perpassam o dia-a-dia do (a) assistente social demandando uma atenção especial, tais como: perda da auto-estima e desmotivação profissional; dificuldade do profissional em definir seu papel na sociedade e na instituição onde trabalha; desinformação sobre o Código de Ética Profissional; refuncionalização; perda de espaços profissionais historicamente garantidos.
Diante disto, percebemos a necessidade de não só divulgar os instrumentos legais da profissão, mas também trazer à tona o grau de compreensão e utilização destes instrumentos, no que se refere à articulação dos princípios do Código de Ética ao seu cotidiano profissional.
Na apreensão sobre o código e seus princípios, este é visto, na maioria das vezes, como um instrumento formal e normativo do exercício pro1fissional, como regulador dos direitos e deveres profissionais, dissociado, portanto, da ética vista como algo abrangente, mais ligada às grandes questões nacionais. Percebe-se um distanciamento entre os princípios e valores profissionais e as demandas sociais; por vezes separa-se os princípios da profissão e sua postura enquanto cidadão.
Alguns vinculam o projeto profissional somente ao Código de Ética, limitando-se em apenas apresentar uma postura moral e ética que coincidam com as normas da sua instituição de trabalho, ressaltando que muitas dessas’ normas estão adequadas ao sistema vigente, trazendo conseqüências tanto para os usuários dos serviços no que diz respeito à não conquista de seus direitos ou à apreensão destes de forma parcial, como para o Assistente Social, que direciona sua práxis fundamentada no conservadorismo e muitas vezes sem “consciência” desta prática, vivendo uma postura “ética” ilusória que não está aliada às classes subalternas. Como afirma Netto, “os elementos éticos de um projeto profissional não se limitam a normatizações morais e/ou prescrições de direitos e deveres, mas envolvem ainda as escolhas teóricas, ideológicas e políticas das categorias e dos profissionais” (2000: 99).
Pressupõe-se que esta questão abarca a necessidade de sobrevivência do próprio profissional que está inserido na divisão social e técnica do trabalho e pela precariedade e insuficiência do mercado de trabalho que não absorve a demanda de profissionais existentes.
A historicidade de um projeto de ruptura da categoria a partir do movimento de Reconceituação entra em conflito com o neoconservadorismo, que propõe destituir o sujeito de sua luta, resistência e militância para um simples “emprego” e que este lhe seja um meio de sobrevivência. Há riscos em tencionar o sistema capitalista e um deles é o desemprego.
Além disso, as exigências impostas para formar o perfil do (a) Assistente Social nos dias de hoje, como a polivalência em funções, especializações, conhecimento de língua estrangeira, dentre outros não estão ao alcance de muitos destes profissionais que não têm recursos para ‘vislumbrar este espaço de conhecimento e se qualificarem para responder satisfatoriamente as suas requisições, formando assim uma “elite” intelectual à parte que tem acesso a estes bens e conhecimentos. “Os projetos profissionais também são estruturas dinâmicas, respondendo as alterações no sistema de necessidades sociais sobre o qual a profissão opera, às transformações econômicas, históricas e culturais ao desenvolvimento teórico e prático da própria profissão (. ..) Os projetos profissionais se renovam, se modificam ( Netto:2000, 95).
No que se refere à relação do (a) assistente social com os usuários, destacam-se o compromisso e o respeito pelos interesses destes; democratização das informações; “neutralidade profissional”, relação de confiança, de transparência, a necessidade de atualização profissional; a luta e defesa pela garantia dos direitos sociais.
Houve uma ênfase na necessidade de incentivar à participação e à capacitação dos profissionais, bem como a valorização destes nas entidades representativas de sua categoria. É nesse sentido, que surgem novas demandas como desafios para as entidades representativas da profissão, em particular o CRESS, como: atualização das informações do banco de dados; maior articulação do CRESS com os profissionais da área, e com os alunos da academia acerca dos eventos, cursos, informações.
Tendo em vista a compreensão de que o projeto ético-político profissional é uma construção histórica e, como tal, necessita de esforços no sentido de sua consolidação profissional e social no âmbito da luta pela hegemonia, uma das inquietações da nossa categoria profissional é como podemos vincular um projeto ético-político de uma profissão a um novo projeto societário que possibilite a emancipação humana, se há disparidade entre a realidade sócio político, cultural e econômica na nossa sociedade classista?
Ainda não existem respostas precisas para este questionamento, mas já há um processo de construção de idéias que respalda a importância do projeto ético-político profissional como instrumento de questionamento à lógica do capital.
A pesquisa sobre o “Ética em Movimento” realizada em Recife como já vimos, proporcionou o levantamento de alguns dados referentes à ação profissional do Assistente Social em diversos setores institucionais, possibilitando uma reflexão sobre o trabalho cotidiano destes profissionais e seu discurso sobre o Projeto ético-político da categoria.
Para a contestação de um projeto societário hegemônico é necessário que existam categorias profissionais voltadas para a defesa dos interesses das classes subalternas. Apesar da realidade determinar o exercício das profissões, estas não devem se conformar, mas se organizarem enquanto categorias. “A sociedade não é uma entidade de natureza teleológica, isto é, não têm objetivos e finalidades; ela tem apenas, uma existência em si, puramente factual (…)Mas, as ações humanas agem teleologicamente e sempre são orientadas para objetivos, metas e fins” (Netto: 2000, 93)
O projeto profissional, que é heterogêneo, apresenta no âmbito da categoria, projetos individuais e coletivos, que podem ser conservadores ou de ruptura com a ordem, sendo este último fundamentado na democracia e na perspectiva da universalização de direitos. Isto possibilita, aos profissionais, criarem alternativas para contribuir para a construção de uma nova ordem social, através da investigação da realidade e da proposição de caminhos que ultrapassem os serviços institucionais para uma resposta que possua significados mais humanos aos usuários, despertando-os para a realidade.
Sendo assim, vislumbramos a ética como mediação presente na intencionalidade profissional e no produto final da ação, o que supõe uma compreensão profunda acerca do significado dos valores éticos da sociedade e da profissão, de suas contradições e dinâmica própria, de sua relação com a política e com a teoria social, de sua inserção no projeto político profissional e nos projetos societários, de sua relação com a qualidade dos serviços prestados e com a direção social do trabalho profissional.
Como o projeto ético-político do Serviço Social é posicionado contra o projeto neoliberal, existem obstáculos na implementação desse projeto profissional e “é evidente que a manutenção e o aprofundamento desse projeto, em condições que parecem tão adversas, depende da vontade majoritária da categoria profissional, mas não só dela: depende também do revigoramento do movimento democrático e popular” (Netto: 1999,107).
No entanto, apesar dos obstáculos, os (as) Assistentes Sociais, principalmente, não devem desistir da luta a favor de uma sociedade emancipada, mas sim dar continuidade à luta anti-capitalista, direcionando-a ao “( … ) combate (ético, teórico, político e prático-social ao neoliberalismo” (Netto: 1999, 107), objetivando a preservação e a concretização dos valores e princípios contidos no projeto ético-político da profissão.
1.3 Bibliografia
ABATH, Edistia Maria. Articulação entre fundamentos filosóficos e códigos de ética profissional em Serviço Social. In: MUSTAFÁ, Alexandra Monteiro (org.). Presença Ética. Recife, PE: UNIPRESS Gráfica e Editora do NE Ltda, 2001 p.17-32.
BARROCO, M. L. S, Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos, São Paulo: Cortez, 200l.
CFESS. Relatório do XXVIII Encontro Nacional CFESS/CRESS, 1999.
CHAUÍ, Marilena. Uma Filosofia da Liberdade. In: CULT- Revista Brasileira de Literatura – Ano III/Junho 2002, pg. 51 a 53.
MUSTAFÁ, Alexandra. Possíveis interpretações dos princípios éticos do Serviço Social a partir da análise das tendências éticas contemporâneas. In Presença Ética. Recife: UNIPRESS, 2001.
NETTO, José Paulo. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e Política. Brasília: UNB, Centro de Educação aberta continuada à distância, 2000.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Os desafios éticos e políticos da sociedade brasileira. In: Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1998, ano XIX, nº 56 p.23-33.
_________. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993 (Coleção Filosofia, 28).
_________. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. (Coleção Filosofia, 28).
PAIVA, B.A. e SALES, M.A. “A nova ética profissional: práxis e princípios”. In: BONETII, D.A. et aI. (orgs.). Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis, 4a edição. São Paulo: Cortez, 1997.
REIS, Marcelo Braz Moraes dos. Notas sobre o projeto Ético- Político do Serviço Social. In: Coletânea de Leis e Resoluções. Assistente Social: Ética e direitos. CRESS -7ª Região RJ – Rio de Janeiro Outubro/2001.
[1] Professora adjunta da USS/UFRJ e Doutora em Ciências Sociais
[2] Ricardo Antunes, Adeus ao Trabalho? Ensaios sobre metamorfoses e a entralidade do mundo trabalho. São Paulo: Cortez, 1955, p. 124.
[3] Slavoj Zizek. “Como Marx inventou o sintoma” in O Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p., 309.
[4] Idem, p. 310
[5] David Harvey, A Condição pós-moderna, São Paulo: Loyola, 1993, p. 140.
[6] Antunes, Idem, p,134
[7] James Petras, Armadilha Neoliberal, São Paulo: Editora Xamã, 1999, p,14.
[8] Antonio Gramsci. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
[9] Emílio Gennari. Senso Comum e Bom Senso. São Paulo:Editora Vergueiro, 1995,p.05.
[10] Maria AparecidaCassab. Jovens Pobres e o Futuro: a construção da Subjetividade na instabilidade e incerteza. Rio de Janeiro: lntertexto, 2001, p. 33.
[11] Karl Marx. O Capital: crítica da Economia política. São Paulo:Editora Abril, 1985,
p.148.
[12] Léon Rozitchner. Freud e o problema do Poder. São Paulo: Editora Escuta, 1989, p. 65.
[13] Lucien Sève. Marxrxisme et Théorie de la Personalité. Paris: Editions Sociales, 1974, p. 65.
[14] Joel Birman. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1999: Psicanálise Ciência e Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994; Subjetividade, contemporaneidade e educação in Cultura, linguagem e subjetividade no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP& A, 2000.
[15] Jurandir Freire Costa. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1984. fr
[16] Eric Hobsbawn. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo in Novos Estudos Cebrap, São Paulo: n.43, novembro 1995, p. 22.
[17] Marilena Chauí. Subjetividades Contemporâneas: Comentários. São Paulo: Instituto
Sedes Sapientiae, ano 1, 1997, p.20.
[18] Antonio Gramsci. Os Intelectuais e a organização da Cultura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1982.
[19] Vera Telles. “Pobreza e Cidadania: duas categorias antinômicas” in Mínimos de Cidadania. São Paulo: Programa de Estudos de Pós Graduação de Serviço Social n. 4, PUC, 1993.
[20] Antonio Gramsci. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1981, p. 23-24.
[21] Idem, p. 6.
[22] Prof. De filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/ Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Doutoranda no Programa de ética, política e políticas públicas na University of Essex/ Inglaterra.
[23] Nietzsche, Friedrich – Genealogia da Moral – Ed. Brasiliense p. 14
[24] Ibid p. 131
[25] Bobbio, Norberto – o Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo – p.96
[26] Ayn Rend – La Virtud Dei Egoismo – Plastygraf – P.38
[27] Ibid p. 111
[28] Assistente Social, mestranda em Serviço Social do Programa de pós-graduação/UFPE; membro do GEPE-UFPE.
[29] Os EUA representam 29% das emissões mundiais de carbono, o que significa um aumento de 18% entre os anos de 1990 a 2000. As emissões per capita dos Estados Unidos são as mais altas do mundo, cerca de cinco toneladas por habitante. Representa o dobro do segundo emissor, que é a China, cujas emissões apesar do acelerado aumento de produção caíram em cerca de 20% entre 1995 até hoje.
[30] Rachei Carson (1907-1964) nasceu na Pensilvânia/EUA e estudou biologia rnarinha, trabalhou como editora para o Us fish and Wildlife Service. A publicação do livro “Silent Spring” levou uma indústria química a denunciá-la como alarmista – acusação que ela sempre negou (Cf: Burnie: 1999).
[31] Relatório encomendado pelo Clube de Roma. Fundado em 1968, o Clube agregava trinta especialistas de diversas áreas cujo objetivo era discutir o futuro da humanidade. Esta entidade foi criada e financiada por grandes incorporações como a Fiat, Wolkswagen, Ford, Olivetti.
[32] Transformismo: categoria Gramsciana que assinala a capacidade que tem as classes dominantes de se apropriarem das reivindicações, categorias e expressões identificadas historicamente com a classe trabalhadora, dando uma direção social conforme os interesses dominantes. No caso do Desenvolvimento Sustentável, embora não seja um conceito identificado com a classe trabalhadora, o discurso critico do ambientalismo que mostrava a contradição entre crescimento econômico e preservação ambiental fora substituído por um conceito de “ecologização do mercado”.
[33] Enquanto os representantes oficiais se reuniam no espaço principal da cúpula, “as ONG’s e os movimentos sociais cumpriam uma movimentada agenda nos estandes armados na praia do Flamengo, estabelecendo uma nova base de articulação mundial. Destas reuniões resultaram dezenas de declarações de compromisso e tratados entre as ONG’s e movimentos sociais de todo o mundo” (Cf: http://www.ongbrasil.org.br).
[34] Cf: Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: Relatório da Delegação Brasileira. Brasília, 1993.
[35] Acordo internacional para a redução dos gases que contribuem para o efeito estufa. Na Cúpula de Johanesburgo a China e a Rússia ratificaram o protocolo, o Canadá ficou só na promessa e os EUA permaneceram na sua empáfia.
[36] Informações no site: wwf.org. br
[37] Cf: http://globonews.globo .corn/componentes/articles
[38] Com o uso sistemático e predatório dos combustíveis fósseis o uso de energia renovável é imprescindível para a produção viável e sustentável de energia. Alguns especialistas afirmam que se existirem pesquisas e investimentos a participação do consumo destas energias aumentará em 20%, podendo, ainda reduzir as emissões de dióxido de carbono em mais de um bilhão de toneladas por ano (Burnie: 1999).
* Professora do Departamento de Serviço Social da UFPE. Doutora em Filosofia pela Universidade Salesiana de Roma. Coordenadora do Grupo d’e Estudos e Pesquisa sobre Ética (GEPE) – UFPE.
[39] “De acordo com John Locke, mediante o contrato social, os indivíduos saem do estado de natureza e ingressam no estado civil, ou político. Cria-se, assim, uma autoridade superior, para a proteção dos direitos naturais fundamentais dos indivíduos – direito à vida, à liberdade e à propriedade, não renunciados. Os participantes só renunciam o direito de fazer justiça por si mesmos.” (Nedel, 2000: 29).
[40] “De acordo com Jean-Jacques Rousseau, o contrato social é ato coletivo de renúncia dos direitos naturais e de sua transferência à comunidade ou ao corpo político, constituído por todos. Cada um renuncia seus direitos e os transfere a si mesmo na qualidade de membro do todo social. Em outras palavras, todos põem em comum sua pessoa e seus bens sob a direção da vontade geral. Troca-se a liberdade natural pela civil, e o ilimitado direito a tudo pela propriedade do que se possui, Gera-se, assim, um corpo moral coletivo, a cidade, a república ou o estado e se constitui o soberano”. (Nedel, 2000: 29-30).
[41] Em Kant o noumeno é o objeto inteligível contraposto ao objeto da sensibilidade, “O objeto da sensibilidade é o sensível; aquilo que não contém nada que não possa ser conhecido pela inteligência é inteligível. O primeiro pelas escolas dos antigos era chamado fenômeno, o segundo noumeno” (Critica da razão pura in Enciclopédia Garzanti di Filosofia, 1993).
[42] Assistente Social do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC, Mestre em Serviço Social – UFPE e membro do GEPE.
[43] Professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, doutoranda em Serviço Social– UFPE e membro do GEPE.
[44] Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, doutoranda em Serviço Social – UFPE e membro do GEPE.
[45] Para Arendt, trabalho é o que Adam Smith considerava como o trabalho improdutivo de um criado doméstico, “ou seja, um trabalho que não deixa atrás de si uma marca durável ou valor (… )” (Magalhães, 1985:148).
[46] Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN, Mestra em Serviço Social pela UFPE e membro do GEPE.
[47] Ethos: termo grego que significa: caráter, modo de ser, costumes, conduta de vida. (Cf.
Fortes, 1998: 26)
[48] A alienação é um conceito amplo, de um modo geral se refere a “não apropriação, por parte dos indivíduos, da riqueza material e espiritual produzida socialmente”. Neste sentido, “os indivíduos não reconhecem na realidade social, a sua ação, não se reconhecem como sujeitos históricos.” (Barroco, 1999: 128)
[49] “… demandas são requisições técnico-operativas que, através do mercado de trabalho, incorporam as exigências dos sujeitos demandantes, (…) elas comportam uma ‘teleologia’ dos requisitantes a respeito das modalidades de atendimento de suas necessidades…” (Mota, 1997:52)
[50] As reflexões aqui apresentadas são indicações do contexto de atuação profissional dos assistentes sociais em unidades de saúde, De onde parte é da nossa experiência de trabalho no Sistema Único de Saúde – SUS, e parte extraída de pesquisa realizada com assistentes sociais, no processo de construção da nossa dissertação de mestrado, na UFPE.
[51] A “questão social” é aqui compreendida dentro da definição colocada por Iamamoto (1997:13) como: “O conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade.
[52] Estamos reconhecendo que tais conhecimentos devem ser acrescidos aos já adquiridos na formação profissional.
[53] Assistente Social, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE, membro do GEPE (Grupo de estudos e pesquisa em Ética) e Conselheira do CRESS 14ª Região (RN).
[54] Com essas questões não pretendemos desconsiderar a dimensão teórico-metodológica e técnico operativa, uma vez que a competência profissional requer a qualificação em todas essas dimensões, mas tão somente realçar esse componente ético-político.
[55] A consciência moral é exercitada quando temos que decidir sobre algo, construindo argumentos éticos justificadores das nossas decisões, em que assumimos as conseqüências por nossas opções.
[56] A ética é o “estudo dos valores morais (as virtudes), da relação entre vontade e paixão, vontade e razão; finalidades e valores da ação moral; idéias de liberdade, responsabilidade, dever, obrigação, etc…” (Chauí, 1998:55).
[57] Nesse sentido, foi desenvolvido o “Projeto Ética em Movimento” pela gestão 1999/2002 do CFE55, em parceria com os CRE55, com o objetivo de não apenas divulgar o Código, mas explicitar as possibilidades desse documento estratégico, uma vez que o mesmo legitima valores, sendo “um campo de possibilidades que extrapolam os deveres e direitos legais nele assinalados”.Tal projeto compartilha da idéia que não de deve restringir os debates éticos ao código , visto que a ética estabelece uma relação fundamental entre ° projeto ético-político profissional e os projetos societários.
[58] “… os elementos éticos de um projeto profissional não se limitam a normatizações morais e/ou prescrições de direitos e deveres, mas envolvem ainda as escolhas teóricas, ideológicas e políticas das categorias e dos profissionais – por isto mesmo, a contemporânea designação dos projetos profissionais como projetos ético-políticos revela toda a sua razão de ser: uma indicação ética só adquire efetividade histórico-concreta quando se combina com uma direção político-profissional” (Netto, 1999: 98-99).
[59] Sendo o trabalho uma atividade do sujeito, ao realizar-se, aciona não só o acervo de conhecimentos, mas a herança social cultural acumulada, com suas marcas de classe, de gênero, etnia, assim como do processo de socialização vivido ao longo da história de vida, atualizando valores, preconceitos e sentimentos que aí foram sendo moldados (Iamamoto, 1998: 103-104).
[60] “A palavra ethos é definida por Chauí (1998:340) da seguinte forma: “em grego, existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal ‘e’: uma vogal breve, chamada ‘epsilon’, e uma vogal longa, chamada ‘eta’. Ethos, escrita com a vogal longa significa costume; porém escrita com a vogal breve, significa caráter, índole natural, temperamento, conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Neste segundo sentido, ethos se refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e vícios cada um é capaz de praticar. Referem-se, portanto, ao senso moral e à consciência ética individual”.
[61] Ver Relatório do I Encontro Nacional de Delegadas latadas em Delegacias de Defesa da Mulher. Brasília-DF: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1986.
[62] Pesquisa promovida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher-CNDM e Secretaria Nacional de Segurança Pública – SNSP.
[63] Segundo a clássica definição de Scott (1993: 16), “O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder. Além do que, ele é um meio complexo entre diversas formas de interação humana de decodificar o sentido e de compreender as relações”.
[64] Para Saffioti, a primeira escuta junto a vitima não deve ser realizada por policiais e na Delegacia da Mulher, mas por Assistentes Sociais e Psicólogos em local próximo à Delegacia para se dar o encaminhamento correto. É imprescindível também uma rede de serviços para apoiar a mulher. Ver Saffioti (1999)
[65] Trata-se de um estudo em nível de Mestrado sobre o discurso e a prática de profissionais (policiais e Assistentes Sociais) nas três Delegacias da Mulher do Rio de Janeiro, no período de 1988 a 1989.
[66] Baseada na perspectiva teórica funcionalista, a família desestruturada é aquela que não se enquadra dentro de um modelo considerado correto e equilibrado, ou seja, daquela família nuclear burguesa. (CALDERÓN & GUIMARÃES, 1994:25).
[67] “Estruturou-se a partir de uma ética assentada na crítica ao domínio patriarcal e em uma razão androcêntrica de humanidade, que deixou de fora metade desta – as mulheres – e que construiu um modelo de feminino fabricado pelo androcentrismo em nome da natureza e da razão” (Bandeira & Siqueira, 19S17 In: Bandeira, 2000:17).
* Alunas do 9° período do Curso de Serviço Social da UFPE e membros do GEPE
[68] Coordenadores gerais: Profª. Maria Alexandra Monteiro Mustafá e Profª. Edistia Maria Abath, e coordenadores de subgrupos em sala de aula: Cyntia Raquel, Marina Gondim, Nicoly Neves e Rauliana Sales.
[69] Na primeira fase da pesquisa documental foi realizada visita ao CRESS que teve o objetivo de levantar a alocação de todos os profissionais de Serviço Social por área de atuação cadastrados no CRESS.