Presença Ética-2002-ANO 2-VOL. 2.docx

APRESENTAÇÃO

Este é o segundo número da Revista “Presença Ética” que tem como tema: Ética, Política e Emancipação Humana. A intenção dos (as) autores (as) é suscitar o debate sobre a ética, enquanto dimensão da sociabilidade humana, ultrapassando a concepção conformista que permeia a discussão atual sobre “ética na política”. Os artigos buscam elucidar a premência de uma visão da subjetividade em sua inter-relação com a objetividade. Em síntese, trata-se de pensar que o indivíduo social é resultante das circunstâncias históricas, mas que essas mesmas circunstâncias são frutos da ação humana. Neste sentido, a política não pode ser vista apenas como expressão da relação de dominação de uma classe sobre outra, mas também como mediação para o processo de construção de uma sociedade emancipada.

Os artigos que compõem este número de “Presença Ética” buscam elucidar a importância da construção de valores novos, visto que o individualismo que está subjacente à lógica capitalista não pode dar sustentação a uma sociedade livre da dominação e da exploração. Dentro desta mesma ótica, busca-se estabelecer uma postura crítica diante do engodo das teorias éticas contemporâneas que, se por um lado anunciam, nos seus discursos, a perspectiva da justiça, da liberdade, por outro, contradizem-se quando insistem em defender as relações sociais que fundamentam o modo de produção capitalista.

Esperamos com isto influir no processo de emancipação humana pelo qual almejamos, considerando que todos somos sujeitos históricos e, portanto, responsáveis tanto pela crítica contundente, quando pela redefinição da história.

Agradecemos à coordenação da pós-graduação em Serviço Social da UFPE, em especial à Profª Ana Elizabete Mota, pelo incentivo a esta iniciativa que se materializou, também, pelo apoio financeiro. Agradecemos, também, aos (às) colaboradores (as); aos membros do Conselho Editorial e aos que contribuíram com seus artigos. Esperamos consolidar essas novas parcerias nas próximas edições.

Comissão Editorial

Ética e capitalismo

Ivo Tonet*

Introdução

Nunca, como hoje, se enfatizou tanto a importância dos direitos humanos, a necessidade do respeito à vida humana, de uma relação harmônica com a natureza, de uma ação política eticamente orientada, de uma recuperação dos verdadeiros valores. De outro lado, nunca foi tão disseminada a consciência de que há uma enorme confusão na área dos valores. Em todas as dimensões da vida social, valores que antes eram considerados sólidos e estáveis sofreram profundos abalos. Há uma sensação geral de desnorteamento e de insegurança. Parece que, de uma hora para outra, a sociedade se transformou num vale-tudo, onde não se tem mais certeza do que é bom ou mau, correto ou incorreto. E, sobretudo, parece que os valores que mais se impõe, são os de caráter, individualista, imediatista e utilitário, chegando, muitas vezes, ao cinismo mais aberto. Aspira-se a um mundo justo, solidário e humano, mas parece que estes valores se tornam cada vez mais distantes.

O objetivo desse texto não é o de refletir sobre o conjunto das questões implicadas no título acima. Pretendemos abordar apenas um aspecto. Trata-se da fratura, cada vez maior, que se está abrindo no mundo de hoje, entre a realidade objetiva e os valores éticos proclamados.

Que há uma dissociação entre dois momentos, na sociedade capitalista, é algo da natureza desta forma de sociabilidade. Que hoje, com as possibilidades que estão à disposição da humanidade para superá-la ela esteja se tornando cada vez maior, eis o que move a nossa reflexão.

 

 


* Prof. Do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas. Doutor em Educação pela UNESP – Marília.

  1. 1.    Um período de decadência

Para aqueles que admitem que as classes sociais são os sujeitos fundamentais (embora de modo nenhum únicos) da história, o ano de 1848 marca o início do período de decadência da sociabilidade burguesa. Isto porque foi neste ano que a burguesia derrotou um conjunto de tentativas feitas pela classe trabalhadora de vários países europeus, para eliminar, pela raiz, a exploração do homem pelo homem. Sem dúvida esta não foi uma vitória definitiva – mesmo porque isto é algo impossível – do capital sobre o trabalho. Contudo, esta vitória, de grande importância exatamente porque se deu sobre a classe trabalhadora dos países mais desenvolvidos, permitiu à burguesia consolidar plenamente o seu poder econômico e político. Viu, então, abertas diante de si as portas para um desenvolvimento extraordinário das forças produtivas e para a configuração de uma ordem social à sua imagem e semelhança. Contudo, isto também significou, como foi muito bem expresso pelo lema positivista “ordem e progresso”, que o desenvolvimento da humanidade, daí para adiante, se faria tendo por base a propriedade privada e, portanto, a continuidade da exploração do homem pelo homem.

Como conseqüência, aquele impulso progressista, que levava a burguesia, desde o seu nascimento, a demolir as barreiras que a ordem feudal colocava ao desenvolvimento da humanidade, agora se transformava em uma força conservadora.

Naquele primeiro momento, em sua luta contra a ordem feudal, a burguesia foi responsável pelo impulso conferido ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia; pela supressão dos privilégios feudais e, portanto, pela ênfase na igualdade de todos os indivíduos; pela valorização da razão e da atividade humanas; pela intensificação do caráter universal da humanidade e pela ampliação do processo de individuação.

Tudo isso, não obstante ter sido realizado a um custo altíssimo de violência e exploração, abriu caminho para a elevação de toda a humanidade a um novo patamar de existência. Neste sentido, vale a pena ressaltar o caráter decisivo que a revolução industrial (1760-1830), capitaneada pela burguesia, teve para o desenvolvimento da humanidade. Com a revolução industrial, a humanidade viu abrir-se, pela primeira vez na sua história, a possibilidade de produzir riqueza suficiente para satisfazer as necessidades de todos os homens. Contudo, foi exatamente o enorme desenvolvimento das forças produtivas, que se iniciou a partir dela, que tornou claro, desde então, que a desigualdade social, como todo o seu cortejo dos chamados “problemas sociais”, já não era uma questão de escassez de conhecimentos, de recursos, de tecnologia ou de bens, mas um problema de exclusiva e total responsabilidade das relações entre os próprios homens.

Este é exatamente o fundamento da decadência desta forma de sociabilidade. Uma ordem social que, tendo alcançado a possibilidade de criar riquezas capazes de satisfazer as necessidades de todos, vê-se impossibilitada de atender essa exigência. E que, para manter-se em funcionamento, precisa impedir, de maneira cada vez mais aberta e brutal, o acesso da maior humanidade toda no sentido de uma elevação, cada vez mais ampla e profunda, do seu padrão de ser (ontológica e não apenas material e empiricamente entendido), o que se vê é uma intensa e crescente degradação da vida humana.

  1. 2.    O que é decadência

Para evitar mal-entendidos, vale a pena clarificar um pouco esse conceito. Quando falamos em decadência não estamos afirmando que, de 1848 para cá, as coisas se tornaram piores em todos os aspectos. Tal afirmação não faria sentido, uma vez que ela é contraditada pelos próprios fatos.

Na esteira marxiano-lukacsiana, entendemos que a sociedade é um complexo de complexos. Vale dizer, uma totalidade (sempre em processo), articulada e formada por inúmeras partes. Embora matrizadas ontologicamente pelo trabalho, cada uma destas partes tem uma especificidade própria e uma autonomia relativa. Deste modo, a natureza delas e a função que exercem na reprodução do ser social são elementos importantes para o seu próprio desenvolvimento. Não há, pois, um evolver uniforme e homogêneo do conjunto do ser social. O mesmo vale para o processo que se dá no interior de cada uma das partes que o compõem. Poderá haver avanços em certos aspectos ao mesmo tempo que, em outros, poderá haver recuos.

Contudo, assim como o desenvolvimento da totalidade é o momento predominante em relação ao desenvolvimento de cada uma das partes, assim também podemos dizer que a direção – positiva ou negativa – que a totalidade toma é um dos critérios mais importantes para aferir o caráter de ascenso ou decadência de uma forma de sociabilidade. A questão, assim, é: considerado o patamar geral atingido pela humanidade, qual é a tendência geral em relação aos indivíduos singulares? A apropriação, ampla e profunda, do patrimônio acumulado; a possibilidade dos indivíduos, por meio dessa apropriação, realizarem largamente as suas potencialidades ou a exclusão e/ou o acesso limitado, estreito, unilateralizado e deformado? Uma vida cada vez mais digna e autenticamente humana ou uma vida sempre mais pobre e esvaziada de sentido?

Mas, há um outro critério, também da maior importância, para esse julgamento. Trata-se da resposta à pergunta: o que é que nos permite distinguir o que é positivo e o que é negativo no processo geral de tornar-se homem do homem? Evidentemente, esta resposta só pode ser dada na medida que definirmos quais são as linhas essenciais deste processo de tornar-se homem do homem.

Sem podermos nos alongar aqui a respeito dessa questão, e tomando como base o pensamento marxiano-lukacsiano, diremos, resumidamente, o que segue. Partindo do trabalho como momento fundante do ser social, podemos constatar que ser homem é (obviamente de modo sempre processual) ser criativo, social, consciente, livre e universal. De modo que o que permitir ao homem expandir, cada vez mais, as suas potencialidades, construir um mundo adequado a uma vida digna, criar bens que possam atender as suas necessidades, apropriar-se (cada indivíduo) do patrimônio – material e espiritual – comum ao gênero humano, participar, de modo cada vez mais consciente, do processo histórico, sendo seu sujeito efetivo, terá um caráter positivo. Tudo que se transformar em obstáculo a esse andamento, terá um caráter negativo.

Se articularmos esses dois critérios, poderemos com facilidade confirmar, sem cair numa homogeneização simplificadora, a decadência que marca a atual forma de sociabilidade.

Sem dúvida, não há como negar que, de 1848 para cá, houve um enorme desenvolvimento das forças produtivas. E que houve inúmeros avanços científicos e tecnológicos, que resultaram no melhoramento da vida de um número significativo de pessoas.

Vale ressaltar, contudo, já aqui, que não é por acaso que é no conhecimento e na transformação da natureza ou daqueles setores sociais que mais podem contribuir para a reprodução do capital que se fizeram sentir esses progressos. Exatamente porque aí se trata dos aspectos que mais contribuem para a produção de mercadorias, o que é uma exigência da própria dinâmica interna do capital.

Contudo, também não há como negar que, mesmo esse desenvolvimento científico e tecnológico não tem contribuído para melhorar a vida de toda a humanidade. Mas, não só não tem contribuído para melhorar como, sob certos aspectos, tem sido um fator de degradação profunda da vida humana. Basta lembrar dos avanços no campo da medicina. Sob o aspecto científico e tecnológico são enormes, enquanto sob o aspecto da socialização desses benefícios as coisas andam em sentido contrário.

O agravamento crescente dos problemas sociais de toda ordem está aí para confirmar que a dinâmica desta ordem social não vai no sentido de ampliar, mas diminuir – relativamente – o universo daqueles que têm acesso ao patrimônio da humanidade. Se houve, ao longo desses últimos cento e cinqüenta anos, ilhas e períodos de elevação do padrão de vida (sem levar em conta que mesmo esse conceito de padrão de vida é muito questionável), da maioria da população de alguns países (welfare state), também houve, do ponto de vista do conjunto espaço-temporal da humanidade, um crescente retrocesso.

Mas, não é apenas no âmbito da produção e do acesso à riqueza material que se verifica essa decadência. É na degradação do conjunto da vida humana, na crescente mercantilização de todos os aspectos da realidade social; na transformação das pessoas em meros objetos, e mais ainda, descartáveis; no individualismo exacerbado; no apequenamento da vida cotidiana, reduzida a uma luta inglória pela sobrevivência; no rebaixamento do horizonte da humanidade que leva a aceitar, com bovina resignação, a exploração do homem pelo homem sob a forma capitalista, como patamar mais elevado da realização humana.

Vale a pena relembrar, aqui, o que dissemos acerca da importância da revolução industrial para a história da humanidade. Ela significou a possibilidade de a humanidade produzir riquezas suficientes para atender as necessidades de toda a humanidade. Se, apesar disso, se verifica uma tendência geral no sentido da degradação da vida humana, então pode-se dizer que estamos vivendo um momento de decadência e não de progresso.

Sabemos que a exploração do homem pelo homem é da natureza do capitalismo. E que, portanto, a desumanização da vida humana está sempre presente, independente de qual seja o momento histórico. O que distingue, porém, o primeiro (primórdios até 1848) do segundo período do mundo moderno é que no primeiro a burguesia representava, ainda que apenas de modo limitado, os interesses de toda a humanidade. Ao contrário, no segundo seus interesses de classe particular colocam-se inteiramente em primeiro plano. Obviamente, em detrimento do restante da humanidade. Esse predomínio dos interesses dessa classe particular é o responsável maior pela crescente decadência – em todos os setores – dessa forma de sociabilidade.

Em resumo, esta forma de sociabilidade já não tem mais como abrir novos horizontes para a totalidade da humanidade. A concentração brutal da riqueza em pouquíssimas mãos e o cinismo dos que a detêm são apenas os aspectos mais visíveis desse fato.

Contudo, de algumas décadas para cá, este segundo momento (de 1848 a nossos dias), o da decadência, ganhou contornos muito particulares. Com a eclosão da crise, não há mais conjuntural, mas agora estrutural, do capital, aquilo que era um processo mais ou menos lento de decadência se tornou uma perspectiva de catástrofe iminente. Não no sentido da implosão imediata do sistema, mas no sentido de que os caminhos pelos quais a lógica do capital está conduzindo a humanidade colocam claramente em perigo a própria sobrevivência desta. A devastação da natureza e a violência, sob todas as formas, cuja matriz é a absurda concentração da riqueza em poucas mãos, levarão, fatalmente, a humanidade pelo caminho da sua destruição. Não é preciso citar os inúmeros estudos que comprovam essa afirmação.

Ora, é verdade que nenhuma forma de vida assiste passivamente a sua morte. Não enquanto puder lutar contra ela. Também é verdade que sua defesa face ao perigo implicará na ativação de todos os meios de que possa dispor. É exatamente o que acontece com a forma de vida burguesa. Sentido-se ameaçada, lança mão de todos os meios para defender a sua existência. Mesmo que isso signifique a barbarização mais brutal de toda a humanidade. Nesse sentido, o exemplo mais estarrecedor não é tanto o fato do atual presidente dos Estados Unidos invocar, descaradamente, a lei da força nas relações internacionais, mas o fato de seu cinismo ser largamente aceito sem grandes resistências.

  1. 3.    A fratura entre os valores e a realidade objetiva    

Diante desse quadro assustador, o que se passa no terreno dos valores? Mesmo entre a maioria daqueles que se pretendem comprometidos com a construção de uma ordem social justa? Uma dissociação cada vez maior entre o discurso e a realidade objetiva. Enquanto esta última vai no sentido acima apontado, de um aprofundamento na degradação da vida humana, o primeiro vai para o lado oposto: ou do apelo moralizante (solidariedade, ajuda, preocupação com o bem comum, etc.) ou das tentativas de fundar uma ética capaz de fazer frente a essa avalanche devastadora. Não é outro o sentido das tentativas em curso, tanto no sentido de exigir um comportamento ético no campo da política, quanto no sentido de buscar novos fundamentos para a justiça social ou, então, de alcançar um impossível desenvolvimento sustentável, que tenha entre seus pilares o objetivo de uma vida realmente digna para todos.

A conseqüência disto é uma fratura cada vez mais ampla entre os valores éticos proclamados e a lógica da realidade objetiva. Concretamente: uma é a lógica do ser, outra a lógica do dever-ser. A um ser que vai no sentido de tratar tudo, inclusive os indivíduos, como coisas, opõe-se o dever de tratar os indivíduos como fim. A um ser que se move no sentido cada vez mais individualista, opõe-se o dever de ser solidário. A uma realidade objetiva que está nucleada, cada vez mais, pelo interesse privado, se opõe o dever de preocupar-se com o interesse público, com o bem comum. A uma lógica que, por exigência da reprodução do capital, caminha sempre mais no sentido da devastação e da degradação da natureza, opõe-se o dever de ter maior respeito pela natureza. E assim por diante. Estamos diante de uma clara visão idealista da problemática dos valores. O que leva a pensar, por exemplo, que se nos conscientizarmos de que temos de ser solidários, justos e pacíficos, o mundo se tornará ipso facto solidário, justo e pacífico.

No entanto, por incrível que pareça, essa relação não harmônica entre ser e dever-ser é perfeitamente coerente mais ainda, é a única maneira de articular esses dois momentos numa forma de sociabilidade que, por sua própria natureza, impossibilita uma articulação harmônica.

Consideremos: qual é o valor supremo que rege esta forma de sociabilidade? Parece-nos que não há dúvida de que é a produção de mercadorias e, portanto, a reprodução do próprio capital. Qual é o valor supremo proclamado pela ética dominante? A vida humana, na sua forma mais digna possível. É evidente que entre esses dois valores há uma incompatibilidade radical. A produção de mercadorias implica, necessariamente, a transformação do próprio homem em mercadoria e, portanto, a manutenção da exploração do homem pelo homem. A conseqüência disto é a completa destituição do sentido mais genuíno da vida humana.

Ora, admitido esse pressuposto, a única possibilidade de fundar uma ética é a dissociação entre o reino da realidade objetiva e o reino dos valores. Estes, transcendentalmente fundados, teriam por missão orientar a transformação da realidade.

Foi este o grande feito de Kant e é por isso que ele é, ao nosso ver, o autor que deu a contribuição mais genial, no terreno da ética, mas não só, para a sustentação dessa ordem social. E não é por outro motivo que todos os pensadores pós-Kant, que não questionam radicalmente o capital, têm retornado a esse mesmo autor como fonte inspiradora. É o caso de H. Arendt, de Rawls, de Habermas e outros. O que Kant fez foi elaborar uma ética fundada transcendentalmente e não de modo objetivo e imanente. Com isso, ele apenas realizou, de modo intelectual, aquilo que é uma exigência do processo social regido pelo capital. Com efeito, a matriz ontológica do processo social é inteiramente regida pelo princípio do interesse particular. Coisa, aliás, reconhecida pelo próprio Kant quando diz que o homem tem uma natureza “socialmente insociável”. Ao contrário, o universo dos valores pretende-se voltado para o interesse universal. Salta aos olhos a radical inconciliabilidade desses dois universos. Como, ao nosso ver, o primeiro é o fundamento do ser social na sua totalidade e, portanto, também do universo dos valores éticos, então o segundo só pode comparecer sob a forma de uma dimensão abstrata. Vale dizer, o universo dos valores éticos só pode aparecer como um discurso vazio, que jamais pode ser efetivado praticamente. Trata-se, então, de um discurso vazio, mas socialmente necessário. Como argumento adicional, este discurso vazio se apresenta com um caráter de “princípio regulador”, ou seja, como algo necessário, mas configurado como um horizonte que jamais pode ser alcançado.

  1. 4.    O alargamento da fratura

Já vimos como é da natureza da sociabilidade capitalista a existência de uma fratura insuperável entre a lógica da realidade objetiva e o universo dos valores. E que essa fratura existiu e existe mesmo nos espaços e nos momentos menos brutais do capitalismo. Porém hoje a crise estrutural do capital confere a esse fato um caráter novo. Ou seja, essa dissociação não só existe, como tende a se tornar cada vez maior e a assumir um caráter sempre mais perverso. Como falar em respeito à vida, em tratar as pessoas como fins e não como meios, em preocupação com a natureza e o bem-comum, em desenvolvimento integral do homem quando a realidade objetiva se encaminha a passos largos em rumos totalmente opostos?

Argumenta-se, muitas vezes, que nunca, como hoje, houve tanta preocupação com os direitos humanos, com as questões ecológicas, com a problemática ligada à qualidade de vida e ao espaço público. Isso é verdade. Contudo, em vez de tomar isso como sintoma de decadência, considera-se como uma demonstração de positividade. Ao contrário, ao nosso ver, a ênfase em todos esses aspectos é uma clara demonstração de decadência dessa forma de sociabilidade. Ela constitui a expressão de que quanto mais a realidade objetiva evolui no sentido da desumanização, mais o universo dos valores ganha um estridente caráter de discurso vazio e até de moralismo barato. Ou seja, quanto menos se vai no sentido de mudar a realidade objetiva, tanto mais se acentua o discurso sobre a necessidade de mudar a realidade. Como esse discurso não aponta em direção às causas mais profundas – a própria existência do capital -, mas apenas em direção aos efeitos – o neoliberalismo -, ele se perde no vazio. Se forem necessários exemplos, veja-se a reunião realizada recentemente na África do Sul, denominada Rio+10, sobre questões ambientais. A constatação, quase unânime, foi de que não só não houve avanços significativos, como houve, de modo geral, um retrocesso muito claro. Ditado por quem? Pela lógica de reprodução do capital.

Talvez um dos aspectos mais trágicos dessa decadência seja o fato de que a oposição a essa ordem social, que impossibilita uma vida efetivamente digna, se expresse, no universo dos valores, sob uma forma que, não obstante a intenção em contrário, é aquela que interessa à reprodução dessa própria ordem social. Vale a pena acentuar: essa ética abstrata, não só não se opõe à desumanização da vida, como é um elemento funcional a ela. Isso pode parecer absurdo. Como, então, a ênfase naqueles valores universais acima mencionados pode contribuir para a desumanização da vida humana? É fácil demonstrar isso. A lógica do capital, tomada na sua pura dimensão econômica, é tão perversa que, em pouco tempo, levaria à destruição do próprio capital. Como se sabe, o “desejo” mais profundo do capital, o seu “sonho dourado” seria destruir aquele que o produz, mas é necessariamente seu antagonista, o próprio trabalhador. Além das lutas dos que se opõem ao capital, são as outras dimensões sociais, entre as quais a ética, abstratamente posta, que impedem que essa lógica se realize de modo direto e brutal. Constituem elas uma espécie de freio, que, como no caso de veículo, não impede que este se mova, mas lhe impõem um certo ritmo. Contudo, à diferença dos freios do veículo, que podem alterar radicalmente o seu movimento e a sua direção, esses freios, por terem naquela lógica e o seu fundamento, não podem impedir nem mudar integralmente esse movimento desumanizador. Quando muito, contribuem para amenizar, e mesmo assim de forma bastante tópica e epidérmica, os aspectos mais gravosos e perversos. Ora, é exatamente nisso que reside a sua funcionalidade para a reprodução da ordem do capital. Permitir que ela funcione sem perder a sua natureza essencial, mas também sem deixar que as suas contradições internas emerjam com toda a sua força.

  1. 5.      É sanável a fratura?

Milhões de pessoas de todos os quadrantes e de todos os níveis intelectuais, acham que é possível realizar o impossível, mas não o possível. Desejando, no entanto, que esse último se torne realidade. Eis um dos aspectos mais trágicos desse momento de decadência. O que é possível? Construir uma autêntica comunidade humana, um mundo onde os valores universais tenham realidade objetiva sem questionar a lógica do capital. Portanto, humanizar o capital. Ora, sob esta lógica nem mesmo um mundo “mais justo, mais livre e mais igualitário” é possível, dada a dinâmica intrínseca do próprio capital. O que é possível? Erradicar o capital e então construir uma autêntica comunidade humana, na qual os indivíduos possam transformar em prática cotidianaos valores universais, encontrando nisso a realização de uma vida verdadeiramente digna e cheia de sentido.

Como se pode ver, a distinção que fizemos, aqui, foi entre possível e impossível e não entre fácil e difícil ou entre mediato e imediato. O que não pode ser realizado tem a aparência de factível, ao passo que o que não pode ser realizado (embora seja apenas uma possibilidade), aparece como não efetivável. Parece mais fácil realizar o que é impossível e mais difícil realizar o que é possível. Como se explica isso? Em primeiro lugar, porque há uma inversão de sentido entre o primeiro e o segundo. O que é intrinsecamente impossível – a humanização do capital – é visto, dado o desconhecimento de sua lógica mais profunda e o peso esmagador de sua realidade imediata, como realizável, ainda que de modo lento e gradual. O que é possível – a erradicação do capital – é tido, dado o desconhecimento da lógica mais profunda e imanente do processo histórico e a enorme dificuldade de visualizar as mediações necessárias, – como de fato irrealizável. Em segundo lugar, por que no primeiro caso, a ação imediata e tópica pode mostrar um sucesso visível. Como, porém, a conexão dessa ação com o objetivo maior pode ser apenas suposta, mas não demonstrada porque, de fato, não existe, sua possibilidade passa, imperceptível e sorrateiramente, para o âmbito da fé e não da racionalidade. Non intelligo, sed credo (não entendo, mas acredito). Ou seja, não posso demonstrar a relação que existe entre o que estou fazendo e a humanização do capital, mas mesmo assim acredito!

No segundo caso, uma ação imediata e tópica, que pretenda estar voltada para a alteração radical da atual ordem social, não apresenta, nesse momento histórico, nenhum sucesso visível. E sabe-se como é importante sentir que se está realizando algo de positivo. A conexão pode existir, mas é praticamente impossível de ser percebida. Só um conhecimento profundo da realidade social, orientado por uma perspectiva teórica revolucionária, que permita apreender o seu movimento integral e não paenas superficial ou parcial, pode, de algum modo, possibilitar a captura dessa conexão. E mesmo assim, sem nenhuma garantia sólida, até por que se trata de uma questão eminentemente prática, ou seja, que diz respeito ao movimento da realidade social como totalidade. Daí porque, aqui, a questão se coloca assim: non intelligo et non credo (não entendo e não acredito). Vale dizer, não compreendo que se possa fundamentar a possibilidade de erradicação do capital e por isso não creio nisso.

Baseados numa compreensão ontológica do ser social e numa análise da sociedade capitalista, cremos que é possível afirmar, com tranqüilidade, que a dissociação entre a realidade objetiva e o mundo dos valores é superável. Mas, somente na medida em que houver uma radical  transformação da atual ordem social. Ou seja, na medida em que, eliminado o capital, com todas as suas decorrências, for instaurada uma outra forma de sociabilidade fundada no trabalho livre. Somente a superação da propriedade privada e a instauração de uma forma de sociabilidade cujo fundamento seja o trabalho associado possibilitará ao discurso ético deixar de ser apenas um discurso abstrato para se tornar vida real.

Considerando, pois, a impossibilidade de um mundo verdadeiramente humano sob a regência do capital e a possibilidade desse mundo para além dele, toda discussão sobre valores éticos tem que, necessáriamente, ter como ponto de partida o questionamento radical do capital, da propriedade privada. Toda lógica do capital é o fundamento ontológico dessa forma de sociabilidade, é uma discussão estéril, falseadora e fadada ao fracasso. É compreensível que os gregos, medievais e modernos pré-1848 buscassem como viver justamente numa sociedade injusta (isto é, numa sociedade fundada sobre a propriedade privada). Isto por que eles não tinham como compreender a matriz que se constituía no fundamento da cidade injusta e muito menos a conexão ontológica entre essa matriz (o trabalho sob a forma de propriedade privada) e o universo dos valores éticos. Mas, depois que Marx desvendou estas questões não há mais como deixar de tomá-las como ponto de partida. Qualquer exemplo mostra isso com meridiana clareza. Basta um: como discutir acerca do respeito à vida humana, acerca de uma vida realmente digna e cheia de sentidos em por em questão o ato fundante dessa sociedade, responsável final por tornar esse respeito e essa vida impossíveis?

De modo que antes de qualquer discussão ética é preciso responder a pergunta: é possível e, portanto, constitui-se num valor decisivo para a humanidade, a superação da sociabilidade regida pelo capital? Se a resposta for negativa, então não haverá como superar a fratura entre o mundo da realidade objetiva e o mundo dos valores. Deste modo, a ética jamais poderá deixar de ser abstrata, no sentido de dissociada da vida real. Se, como pensamos, a resposta for afirmativa, então estará aberto o caminho para pensar uma ética que possa vir a tornar-se concreta.

O mais interessante, e isto convém salientar, é que nos dois casos a ética é, hoje, necessariamente abstrata. Ou seja, não pode se tornar vida cotidiana real. Mas, há uma enorme diferença entre a abstração da ética pensada no interior da sociabilidade do capital e daquela pensada em direção a uma futura sociabilidade do trabalho. No primeiro caso, a abstração é o outro lado da moeda da concretude da matriz do capital. Situa-se, portanto, no interior da ordem do capital. Por isso, jamais poderá deixar de ser uma ética alienada e alienante.

No segundo caso, tendo (a reflexão ética) por base o processo torna-se homem do homem e compreendendo os obstáculos postos pelo capital à autêntica realização humana e as possibilidades apontadas pelo trabalho, a abstração é apenas um momento que aponta para além de si mesma, ou seja, para uma forma de sociabilidade onde ela possa se tornar concreta. Por isso mesmo, um caráter revolucionário. Por que, ao fundar os valores na objetividade do processo histórico-social e ao evidenciar a impossibilidade de realizar esses valores universais no interior da ordem social do capital, ela se inscreve no movimento de luta pela superação dessa mesma ordem.

A guisa de conclusão

Em resumo, podemos dizer que ética e capitalismo se excluem radicalmente. Se por ética entendemos aqueles valores que elevam o indivíduo a superar a esfera da particularidade para conectar-se com a universalidade do gênero humano, e se a sociabilidade regida pelo capital está fundada no interesse particular, então não há como conciliar estas duas dimensões. Se isto é verdade, duas constatações se impõem. Primeira: toda tentativa de fundar uma ética no interior desta forma de sociabilidade só pode resultar numa ética abstrata e contribui, não obstante intenção em contrário, para a reprodução dessa ordem social essencialmente injusta. Mais ainda: a ênfase dada, hoje, à questão dos valores, sem um questionamento radical da matriz fundante desta ordem social, não tem nada de positivo. Pelo contrário, é a expressão do extravio e da impotência de uma consciência que, ignorando a dinâmica da realidade objetiva, pretende ditar normas do alto de um pedestal transcendental. Segunda: a fundamentação de qualquer ética autêntica tem de ser precedida, necessariamente, pela demonstração da possibilidade e da necessidade – ontológicas – da superação da exploração do homem pelo homem. Somente assim o discurso ético deixará de ter apenas uma coerência lógica para ter uma coerência ontológica, vale dizer, terá a possibilidade (ainda que só a possibilidade) de se transformar, em outra ordem social, em prática cotidiana.

Referências Bibliográficas

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HABERMAS, J. La teoria de la acción comunicativa.  Madrid: Taurus, 1987.

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RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

 

Produção de sujeitos, apassivização de campos coletivos e constituição de horizontes emancipatórios

Maria Lídia Souza da Silveira[1]

“Se corre El peligro de que los árboles impidam ver El bosque, perseguindo la quimera de realizar El socialismo com la ayuda de lãs armas melladas que nos legada El capitalismo (la mercancia como célula econômica, la rentabilidad, El interes material individual como palanca, etc.), se puede llegar a um callejón sin salida. Entretanto, la base econômica adaptada há hecho su trabajo de zapa sobre El desarollo de la consciência. Para construir El comunismo, simultaneamente com la base material, hay que hacer El hombre nuevo”.

(Ernesto Che Guevara)

 

            Uma indagação inicial se impõe. Tem sentido ainda se refletir sobre o homem novo, formas distintas de subjetividade, novo projeto societário, fundados numa real emancipação dos sujeitos humanos, quando a sociabilidade reinante afirma a indispensabilidade do conformismo, as vantagens da indiferença perante as perdas e dores humanas, a diluição das diferenciações de classe e, portanto, da consequente superação do sentido de um outro ordenamento social?

No intuito de iniciar uma reflexão em torno destas questões, entendo que um primeiro cenário precisa ser explicitado. Trata-se de considerar, na concretude da formação social brasileira, o que tem sido evidenciado nas últimas décadas: uma intensa crise econômica – corolário natural no âmbito dos processos de acumulação predatória presentes na atualidade do movimento do capital – , concomitantemente a permanência de processos refinados de dominação e uma profunda crise de fragmentação social.

Este quadro vai explicar na cotidianidade da vida das classes trabalhadoras, em recessão, acesso restrito aos serviços de saúde, educação, assistência, desemprego, aumento dos que vivem abaixo da linha da pobreza, além do brutal crescimento da violência; no universo dos que trabalham vai se ampliando – e de certa forma sendo naturalizada – a desregulamentação do trabalho e a contínua perda de direitos, produto de lutas sociais travadas. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da resistência e ofensividade destas classes, constata-se visível retração, o que significa dizer que componentes estratégicos, constituintes de um outro ordenamento social, tendem a se refazer.

Nessa direção é inegável e cada vez maior a perda do sentido de compartilhamento, a ausência de gestos de solidariedade e de campos coletivos, com potencialidade de conformação de sentidos para os experimentos das diferenciadas expropriações continuamente vividas.

O que se está a verificar é a manutenção e estreitamento por parte do Estado brasileiro, da relação de associação e subordinação à ordem internacional, em nítido adensamento e conformação à lógica capitalista, cujo esteio essencial se mantém: o da acumulação privada. Concomitantemente a estes procedimentos, os setores dominantes elaboram uma barragem ideológica de tal monta, que mais que incidir na conformação do consenso, funciona, sobretudo, como elemento de brutal apassivização, ao por a circular na tessitura das relações sociais, para além de valores de competitividade, consumo, individualismo, indiferença, auto-culpabilização e conformismo, entre outros, a crença, internalizada, da inexistência de outras alternativas possíveis ao capitalismo.

Por outro lado não há como negar a evidência de uma ampla exclusão social, ocasionando a imensos contingentes populacionais, extrema miséria com padrões ínfimos de existência material, lhes reservando a quase que impossibilidade de desenvolvimento de suas habilidades, inteligência, sensibilidade, enfim, de sua humanidade.

A dominação político-econômica em andamento se reveste de domínio racial, cultural, sexual, entre outros, operando num infinito universo ideológico, no interior do qual é essencial forjar uma rede sutil e competente que incorpore a todos, na qualidade de iguais, direcionada a legitimar as formas de dominação em curso.

Nesse contexto de movimentação do capital, para além de suas determinações na ordem da materialidade, precisa ser perscrutada a sua capacidade de potencializar um singular ideário, deslocando contradições, estruturando valores, demarcando territórios de pensamento, interiorizando culpas, ampliando a sua racionalidade já em curso; movimento esse simultaneamente tensionado, ainda que de forma extremamente frágil, pela presença operativa do trabalho.

Ponto de partida real do processo de humanização do ser social, o trabalho, na sua objetivação no interior da sociedade capitalista, precisa ser degradado e transmutado em mero meio de subsistência e fonte de acumulação. Assim, conforme assinala Ricardo Antunes[2],

“A força de trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria, cuja finalidade vem a ser a produção de mercadorias. O que deveria ser a forma humana de realização do indivíduo reduz-se à mera possibilidade de subsistência do despossuído. Esta é a radical constatação de Marx: a precariedade e perversidade do trabalho na sociedade capitalista.”

Nesse percurso, a teoria do valor mercantil recupera esse conjunto de fazeres e significações das quais os sujeitos produtores – imersos em relações concretas de produção e circulação – encontram-se apartados. Uma das constatações feitas é a de que no processo de troca de mercadorias vai se verificar um duplo movimento de abstração; durante o ato de troca, a abstração do caráter concreto e particular da mercadoria, reduzida que é à entidade abstrata, na medida em que seu “valor de uso” passa a ter o mesmo valor da outra mercadoria pela qual foi trocada.

Dessa forma, os sujeitos transacionam essas mercadorias “como se” estas estivessem autonomizadas nesta relação, o que não implica que na consciência dos sujeitos elas sejam efetivamente autônomas. Até porque é corrente no próprio senso comum, o fato de que as mercadorias não se reproduzam sem o trabalho.

O caráter abstrato presente no ato da troca, de forma alguma pode ser transferido mecanicamente à consciência de seus agentes. Esse desconhecimento que efetivamente faz com que os agentes envolvidos desconsiderem as distintas dimensões presentes em seu ato, o reduz, de uma certa forma, “num encontro casual de indivíduos atomizados no mercado” (Zizek)[3], a produzir, por assim dizer, uma dimensão social “recalcada” presente no seu ato, e que vai emergir, na qualidade de seu contrário, como razão que universaliza esses gestos. Assim, o paradoxo dessa relação entre a efetividade social da troca da mercadoria e a “consciência” dela, reside no fato de que o desconhecimento da realidade, em verdade é seu componente constitutivo. Em outras palavras, o fetiche é parte da própria mercadoria e não seu atributo.

Este fetichismo existente precisa ser compreendido e denominado corretamente. Evocando ainda Marx, Zizek vai ressaltar que sob o capitalismo, as formas intersubjetivas de dominação e servidão se disfarçam “sob a forma de relações sociais entre coisas, entre os produtos do trabalho [4], deslocando dessa maneira, das relações entre os homens para a do fetichismo entre as coisas.

Portanto, com a sociedade burguesa, as relações que a conformam de servidão e dominação, ainda que existentes, são recalcadas. A aparência é a de que presentes nas relações sociais estão sujeitos livres. E o sintoma que vai emergir desse conjunto de relações existentes, subvertendo essa aparência construída de liberdade e igualdade, consiste exatamente nas ‘relações sociais entre coisas’.

Tal desequilíbrio presente no ordenamento capitalista, ao invés de ser revelador da realização incompleta destes princípios e, portanto, o marco de uma insuficiência a ser aperfeiçoada com o tempo, vai de fato existir na qualidade de seu componente constitutivo.

Fundamental se faz situar nesse movimento do capital, certas medidas essenciais à manutenção de todas estas relações, voltadas mais diretamente para o mundo do trabalho, centradas na conformação de um novo padrão de acumulação, e que terá repercussões, seja na ordem da materialidade, da subjetividade dos sujeitos, ou ainda no processo de organização e luta dos trabalhadores.

Assim, o que vai prevalecer é a reversão de suas conquistas fruto de lutas sociais travadas, fazendo eclodir o desemprego, a desregulamentação e terceirização do trabalho, a implementação de novas formas de gerenciamento e controle sobre a produção. O esforço capitalista, voltado para a obtenção de maior lucratividade, vai implicar na assunção de novos padrões de concorrência assentados no avanço tecnológico e na premissa da “qualidade” e “produtividade”, procedimentos voltados à menor utilização do trabalho vivo.

O que está em andamento nada mais é, portanto, que o próprio itinerário do capital na sua necessidade de gestar um novo padrão de acumulação. A acumulação flexível, segundo David Harvey[5], é marcada

“por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional.”

Ao se introduzir a “flexibilização” na organização do trabalho, busca-se criar a aparência de que não há mais divisão entre concepção e execução no processo produtivo, face à nova figura do trabalhador polivalente. Graças a polivalência – ao contrário da especialização típica do fordismo-, o trabalhador passa não só a operar várias máquinas, mas participa, igualmente, de grupos de trabalho, com capacidade de opinar sobre a produção dos processos e rotinas.[6]

Esta moderna gestão coletiva supõe competição de grupos entre si visando maior produtividade, a partir de metas previamente definidas pela empresa, O trabalhador não só se integra ao processo de trabalho, mas, principalmente, se sente responsável pelo alcance dos objetivos da empresa.

Do ponto de vista mais diretamente ligado aos trabalhadores, estas alterações no mundo do trabalho, e em especial, a flexibilização, veiculam num certo sentido a idéia de que as classes trabalhadoras estão mortas como força ativa da história, Tende a ser construído um apartamento da memória social de suas lutas e conquistas da sua recente história coletiva.

James Petras[7] realiza estudo inquietante, no qual analisa nesse processo em curso, a contínua transitoriedade da experiência do trabalho por parte dos trabalhadores. Ressalta as relações no seu interior constituídas, marcadas pelo sentido de provisoriedade, para o qual não vale a pena investir em profundidade, seja através de laços com os companheiros, patrões, ou ainda para as demais esferas de convivência.

Assim, diz o autor, “a transitoriedade se torna um estilo de vida, no qual não há comprometimentos profundos e onde existe pouca base para a solidariedade social. O resultado é o declínio dos sistemas de apoio social, a atomização e um crescente sentimento de vulnerabilidade individual.”

Esta subordinação à lógica mercantil que vai sendo conformada, esta direção intelectual e moral constituída, embasada na economia, na política e num determinado campo cultural e ideológico, vai afetar as formas de sociabilidade existentes, produzindo marcas profundas nos sujeitos individuais e coletivos.

Esferas de produção de subjetividade e emancipação

 

Penso ser da maior importância inscrever a reflexão em torno da educação e formação das classes subalternas, ao se considerar as possibilidades de emancipação humana.

Nessa perspectiva não se pode prescindir de uma referência, ainda que breve, às formas através das quais se conhece – compreendendo e interpretando – a realidade. Assim como desconsiderar a presença da educação na sua variedade de sentidos e componentes agregadores, estabilizadores e transgressores, ou ainda, potencializadores de práticas individuais e sociais.

A concepção de conhecimento adotada supõe a idéia basilar de Antonio Gramsci[8] de que todos os homens são filósofos, e mesmos os mais simples, interpretam e elaboram a sua vida, tendo, portanto, para o presente algum princípio orientador de seu experimento cotidiano. Nesse processo, misturam de forma absolutamente desordenada, contraditória e acrítica, um conjunto variado de concepções de mundo.

Coexistem, portanto, nessas formas de conhecimento e reconhecimento de si mesmos e da vida, um caldo cultural conformado por determinantes de classe próprios, operando na qualidade de esteio para a organização das vidas dos sujeitos, a partir das transformações que vão se operando no campo da ciência, arte, filosofia, economia, política e nas relações em geral, alterando costumes e visões do mundo.

Nesse quadro, a apropriação destes elementos pelos indivíduos se coloca como contínua possibilidade, se refletindo não só na linguagem como igualmente na sua

personalidade e subjetividade, enfim, no conjunto das relações sociais. Esta apropriação individual e coletiva segundo Emílio Gennari [9] “é um dos fatores que a cada momento tende a consolidar, atualizar ou superar os limites dessa mesma ordem”.

A reflexão em torno da emancipação, na sua complexidade, não pode prescindir da consideração de conjunturas históricas no interior das quais o protagonismo humano vem sendo continuamente subsumido a uma “atualizada” lógica mercantil, acoplada à égide ao consumo e a uma dimensão de historicidade, cristalizada no plano da imediaticidade e de um tempo presente eternizado.

Trata-se, portanto, de pensar os processos subjetivos a partir dos registros de interioridade presentes em cada sujeito, tensionados e interpelados através das expressões concretas da sociabilidade hegemônica. Assim, a subjetividade não é imanente ao indivíduo, mas vai se constituir a partir do intercruzamento destas dimensões, não existindo, portanto, a separação entre o plano individual e o coletivo, entre os registros de indivíduo e sociedade.[10]

Nesse sentido, um pressuposto que se impõe diz respeito à consideração de que a subjetividade é socialmente produzida, operando numa formação social determinada, sob o crivo de um determinado tempo histórico e no âmbito de um campo cultural.

Marx vai organizar esta vinculação a partir da análise do homem inserido no processo produtivo, produzindo e produzindo-se:

“O trabalho não produz mercadorias, produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral”.[11]

Trata-se, portanto, de um processo que implica em sujeição real, desapropriação da própria condição de indivíduo perante um poder que, para além de tornar estranho o produto do trabalho, torna igualmente estranho o trabalho para o trabalhador, internalizando esta relação. Tal poder que se institui despoticamente, se evidencia não só objetivamente, mas também no campo simbólico, ao processar o desenvolvimento da forma mercadoria em fetiche.

Leon Rozitchner[12] efetiva uma síntese desses registros ao ressaltar que “a própria subjetividade vive também em um mundo de objetos cuja forma reproduz, de algum modo, a mesma estrutura do sujeito: a mercadoria também é um objeto cuja forma reproduz uma cisão fundamental em seu modo de aparecer: valor de uso, por um lado, valor de troca por outro”.

Há, portanto, uma determinação geral a partir da qual tanto os sujeitos quanto os objetos são produzidos: a forma mercantil.

O desafio de desvendamento desta questão aponta para a aparente contradição que se estabelece entre as condições subjetivas do homem trabalhador e as condições objetivas, dele apartadas, que o enfrentam na qualidade de capital. Assim, na relação mercantil, em particular através de seu valor de troca, transmuda-se a natureza da própria relação criada: de relação entre pessoas em relação encoberta por coisas. Ou ainda, como enfatiza Lucien Sève[13] “coisificação de pessoas e, ao mesmo

tempo, personificação das coisas “.

O acesso às formulações de Marx, permite a percepção de como a individualização do homem e sua personalidade se constituem na concretude da vida social, no interior de um determinado processo histórico que interpela e marca o sujeito. A sua análise vai desvendando como um objeto exterior, a mercadoria, atua como um sujeito mistificador que, ao encobrir o lugar real do sujeito produtor, encobre em verdade, o poder de sua atividade que permanece obliterada no próprio processo de sua objetivação.

Dessa forma expropria-se o trabalho coletivo – produto da força humana num movimento singular de cooperação – secundariza-se a experiência do trabalhador, ao mesmo tempo em que é forjado um outro tipo de perda: desenvolve-se um certo campo subjetivo imaginário que, usurpado objetivamente no seu ‘fazer individual’ e na ‘cooperação’, transfere ao capitalista o poder que lhe foi subtraído.

Marx vai revelando como através do processo de intercâmbio de mercadorias, vai sendo constituída uma relação que aparece entre objetos, sendo obliterado o pano de fundo da relação determinante – entre os próprios sujeitos -. Esta aparente desvinculação, essa ‘ignorância’ invisível socialmente, determinará produções subjetivas particulares nos homens que vivenciam este processo.

Este mecanismo é considerado por Rozitchner e pelos psicanalistas brasileiros Joel Birman [14]e Jurandir Freire Costa[15], ao enfatizarem esta condição trágica do sujeito no mundo via formas de subjetivação hoje produzidas, calcadas num enorme mal-estar que pode ser compreendido em várias frentes. Seja pelo retraimento do Estado, em relação aos agenciamentos assumidos, que, como destaca Birman (2000), atuavam na produção de formas de subjetivação e de gestão de laços sociais, através de instituições que operavam, não só como centro de ordenação social, mas também de disciplinamento; seja pela fragilização dos partidos na qualidade de ‘universais relativos’, que funcionavam como campos ideológicos e de força no âmbito das diferenciações de classe e nos antagonismos sociais; seja nos sindicatos e movimentos sociais que vêm perdendo tanto em ofensividade, como na qualidade de campos coletivos que referenciem os setores subalternizados na sociedade. Há, portanto, não só uma fragmentação social imensa, mas esta é acompanhada de fragilização de valores substantivos referenciais coletivos.

Estas ponderações auxiliam no reconhecimento de como a presença da globalização e do neoliberalismo conseguiram, através da recriação contínua de formas de acumulação de capital, de um lado, desconectar ainda mais os caminhos da economia dos registros do social, e de outro, subsumir os componentes de nosso psiquismo e subjetivação à ordem mercantil.

Entre outras dimensões, esta condição revelaria um conjunto de impossibilidades com as quais os sujeitos estão se defrontando, em especial a de identificar e realizar ações fundamentais, portadoras potenciais de alternativas de alteração significativas do curso de sua vidas.

Superá-las implicaria em multiplicidade de acessos, tanto na ordem da materialidade – o que significa introduzir as questões relativas aos componentes sócio-político-históricos -, quanto no sentido de percebê-los vinculados às dimensões do corpo e do afeto.

Esse apartamento das dimensões da vida encontra em Eric Hobsbawn[16] mais um elemento explicativo. Segundo o autor, a perspectiva histórica que vem informando majoritariamente as identificações dos sujeitos na atualidade do capital, na qualidade de uma forma de vivência que marca este século XX, é a de um presenteísmo constante.

Seu significado é o de “uma espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público” vivido numa determinada época. E do ponto de vista da cultura de um povo, esta intensificação significa a negação da memória e da história. Este’ presenteísmo’ nomeado pelo autor, ao recalcar o passado cristalizando a dimensão do tempo presente, no hoje, retira das possibilidades existentes no presente, os seus componentes transgressores, a sua dimensão de porvir.

Um elemento central na busca de sua compreensão se refere à contínua produção de desigualdades sociais no âmbito de nossa formação social, assentadas num ordenamento fundado no reinado mercantil. No seu interior, os códigos de convivência social permanecem enraizados na acumulação privada de riquezas, em hierarquias sociais produzidas em contextos de antagonismos II sociais, fundadas na exclusão da maioria dos indivíduos. Evidencia-se, igualmente, uma imensa apropriação ideológica das movimentações de resistência de segmentos que questionam a ordem – sendo transmudados estes gestos em banditismo -. Todas estas situações e relações vão interferir decisivamente nos processos de constituição dos sujeitos.

Estes códigos, por sua vez, fazem circular valores, formas de relação, bem como a presença de certos modelos identificatórios.

Nessa direção, Birman (1999) destaca nos processos de subjetivação em curso, as moldagens impregnadas pela cultura do narcisismo e pela sociedade do espetáculo, que vão enfatizar a exterioridade e o autocentramento.

Este referencial naturaliza a brutal desigualdade humana e, do ponto de vista da ordem vigente, contribui para o enrigecimento dos componentes de tensão presentes na sociedade, fortalecendo o congelamento da memória histórica e refreando a dimensão de porvir.

Esta racionalidade que preside as relações sociais através da reificação do presente, não só reforça a perspectiva de manutenção do ordenamento capitalista, como investe na destruição de vínculos que possam vir a ocasionar a humanização dos sujeitos. Ao fazê-lo, busca um tipo de formatação das subjetividades numa perspectiva de imediaticidade, na qual o efêmero e o fragmentário, a produção de curto prazo e a insensibilidade perante o outro são componentes fundantes.

Assim, o projeto societário hoje hegemônico – ainda que tenha como base essencial a acumulação privada – se reforça através de hierarquias, normas e legislações legitimadoras de uma igualdade anunciada, ainda que formal, para a qual se atribuem regulações e disciplinamentos democráticos que irão dar sustentabilidade legal à desigualdade instituída. E este projeto, o do capital, majoritariamente é aceito e, mais que isto, internalizado pelos sujeitos. Ao se reproduzir, assegura também a permanência do modo de produção capitalista, da sociedade capitalista.

A concepção de subjetividade com a qual o marxismo vai romper, e que está presente no âmbito da hegemonia burguesa, é a que supõe o indivíduo na qualidade de ente abstrato e idealizado, por conseguinte, exterior às suas efetivas relações sociais. Marilena Chauí[17] ressalta o fato de que esta visão de subjetividade plasmada no interior do capitalismo, se sustenta menos nas relações intersubjetivas e mais numa subjetividade conformada pela mass media e pela publicidade, apresentando uma incapacidade de simbolização, de transcender ao dado, de relacionar-se com o possível e, sobretudo, com a marca de uma certa infantilidade que se expressa perante a promessa de satisfações imediatas. Banaliza-se a competição e a violência, sucumbindo-se, assim, “à velocidade e fugacidade das imagens, sem passado e sem porvir”.

Antonio Gramsci[18] auxilia na junção de outros componentes de análise, ao destacar que uma nova civilização só teria condições de se afirmar, através da presença na história das classes apartadas continuamente do poder político e do efetivo desenvolvimento de suas condições “intelectuais e morais”, – as classes subalternas -, o que implicaria na possibilidade de constituição de uma outra forma de sociabilidade, com a marca da emancipação aludida por Marx.

Esta dimensão repõe com qualidade nova o lugar das classes trabalhadoras neste processo em termos de sua efetiva participação e, mais que isto, sinaliza para a importância do desenvolvimento de uma consciência histórica da realidade, com capacidade de fecundar as possíveis ações políticas. Tal concepção histórico-crítica impõe em sua singularização, a inclusão de um conjunto de componentes que possam favorecer a formação da personalidade dos trabalhadores. Esta vai supor, portanto, uma construção histórica dos processos subjetivos.

Esta relevância dos sujeitos históricos, explicitada por Gramsci, vai implicar na valoração da própria constituição desses sujeitos na qualidade de personalidade, vontade e processo organizativo, num movimento real de construção de um novo “bloco histórico”.

Em verdade, Gramsci retoma o potencial educativo do próprio marxismo. Salientará, portanto, não a autonomia ou prevalência dos campos de objetividade/subjetividade, mas o seu mútuo engendramento.

Há uma aproximação conceitual a ser feita e que consiste em vislumbrar neste sujeito fragmentado, imerso em situações particulares, crenças, símbolos, vontades dispersas – características do senso comum -, a presença, ainda que recalcada, de outros componentes valorativos, práticas, percepções e intuições, situações vivenciadas que podem ser decifradas e compreendidos – tornadas bom senso, nos termos gramscianos-. Há potencialidades que podem se espraiar a partir de um outro OUTRO: um campo coletivo, referência distinta ao entorno dominante, com capacidade de possibilitar a criação de laços de solidariedade e de partilha, substituindo o conformismo e a indiferença das subjetividades abstratas, descontextualizadas e fundadas no prisma do autocentramento dos indivíduos; campo que pode ‘produzir,’ também, uma subjetividade coletiva, contextual, a repor como dimensão possível da existência individual-social, a perspectiva de uma outra sociabilidade, na necessária afirmação da emancipação dos sujeitos humanos.

Pensando-se em termos de uma configuração destas situações sociais vivenciadas pelos sujeitos, Vera Telles[19] ressalta as significações que passam a ter nesse processo de subjetivação, as próprias lutas sociais travadas. Assim,

“a importância das lutas sociais, enquanto abertura de espaços públicos nos quais as experiências diversas podem ser tematizadas, problematizadas e, por essa via, desprivatizadas enquanto condição comum que interpela a sociedade na formulação e exigência de direitos. É nessa articulação entre o privado e o público que identidades são construídas e reconstruídas, definidas e redefinidas, criadas e recriadas, num espaço de conflito em que as práticas de resistência, abertas ou surdas e cotidianas nas suas vitórias e derrotas, sucessos e insucessos, para além de seu significado material em cada momento específico, redefinem e refundam tradições, reafirmam e reorientam práticas, elaboram e reelaboram valores e referências por onde homens e mulheres, em situações concretas de vida, percebem o seu lugar na sociedade e sobretudo percebem a eficácia de suas ações e de suas palavras na produção de fatos e acontecimentos que afetam ou podem afetar as circunstâncias de suas vidas.” (p.59)

Encontra-se, pois, na totalidade social, a presença não de um sujeito único, marcado por um processo de obliteração do real, produzido por formas ideológicas oriundas do capital, que o alienam e o impedem de desvelar a gênese da exploração. A absolutização desse sujeito alienado poderia sugerir que na vida social, o capital na qualidade de efetiva chefia, unificaria e implementaria seu ideário de tal forma que forjaria sempre subjetividades subalternizadas ao seu ordenamento.

A radical contestação desse processo de naturalização da alienação poderia, também, fazer supor, em contrapartida, a existência no interior da dinâmica social de um ‘não lugar’ da alienação, um certo ponto protegido ou até mesmo não vulnerável às influências da ideologia dominante, o que sem dúvida é impossível.

Neste contexto vale registrar que ainda que a apreensão de si e do mundo se apresente aos sujeitos de forma fragmentada, confusa, fatalista, gestada a partir dos valores hegemônicos, isto não se constituirá empecilho à emergência de outros interesses individuais e coletivos, outros sentimentos, valores, interpretação diversa da conjuntura ou ainda de outro projeto societário. No entanto, isso não ocorrerá espontaneamente nem automaticamente no interior das relações sociais. Supõe um investimento na criação de espaços coletivos, espaços formativos, instâncias organizativas com enraizamento social, campo através do qual possa ser exercitado o aprendizado de construção de referências identificatórias e de diferenciação de classe. A formulação de Antonio Gramsci[20] ajuda a melhor esclarecer este sentido:

“Deve-se insistir sobre o fato, existe realmente uma forte atividade volitiva, uma intervenção direta sobre a “força das coisas”, mas de uma maneira implícita, velada, que se envergonha de si mesma; portanto a consciência é contraditória, carece de unidade crítica, etc. Mas quando o “subalterno” se torna dirigente e responsável pela atividade econômica de massa, o mecanismo revela-se em certo ponto um perigo iminente; opera-se, então, uma revisão de todo o modo de pensar, já que ocorreu uma modificação no modo de ser social. Os limites e o domínio da “força das coisas” são restringidos. Por quê? Porque, no fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não mais o é: tornou-se uma pessoa histórica, um protagonista; (…)

Estes elementos desagregados, incoerentes, não críticos e episódicos que vão compor a concepção de mundo do conjunto das classes subalternas, consistem no senso comum, ponto de partida e ao mesmo tempo, produto do devenir histórico. O movimento de fazer a crítica desta visão de mundo reside num dos elementos essenciais à conformação dessa subjetividade com a marca da maioridade histórica. Acrescenta o autor:

“O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um ‘conhece-te a ti mesmo I como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no inventário. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário “(Idem: 12)

Nesta mesma direção Emílio Gennari[21] ressalta os distintos impactos produzidos nos sujeitos, num amálgama de sentimentos não só diversificados mas de natureza distinta. Assim:

“um movimento contraditório entre a coerção imposta pelas necessidades de sobrevivência, que gera no homem-massa sentimentos de impotência, medo, submissão ou até de dívida de gratidão, e a busca constante de espaços de liberdade nos quais

seja possível reafirmar a subjetividade dos indivíduos negada pela ordem dominante.”

Ressalte-se, portanto, que na dinâmica da vida social, as apreensões dos sujeitos podem ocorrer de forma diferenciada, ainda que tenham como ponto de partida a mesma realidade social, o que não significa afirmar nem que estão alienados dessa realidade, nem que estão cooptados pela racionalidade que a organiza de forma hegemônica. A presença destes distintos olhares – e lugares -, verdadeiros para cada sujeito, de per si, introduzem de forma contundente a temática da subjetividade e de sua importância efetiva, seja nos processos de conhecimento e reconhecimento individual, seja na gestação de campos coletivos, a agregar componentes culturais, simbólicos, de partilhamento com outros sujeitos os experimentos de solidariedade e conflitos, e a experimentação de ações coletivas.

Assim, retomar este debate de forma mais substantiva sugere a sua inscrição na agenda político-formativa dos trabalhadores, visto que a reconstrução desta forma particular de subjetividade é componente essencial para que a perspectiva do devir se coloque como possibilidade.

Este investimento, no plano da formação, pode permitir a constituição de elos entre o tempo das exterioridades (imediato) – que parece adquirir uma autônoma opacidade para quem nele está imerso -, e o tempo mediato, de compreensão do plano que não aparece, da busca coletiva de desvendamento do “segredo das formas” que estruturam a realidade dos fenômenos e experimentos humanos. Estes acessos são extremamente significativos no interior desse embate de racionalidades inscritas na vida social.

Eis parte do desafio posto às classes subalternas: afirmar sua personalidade e subjetividade, construindo uma identidade com capacidade de potencializar os elementos que estão postos no real, na tentativa de proporcionar um sentido novo às condições dadas, a partir de uma perspectiva anti-capitalista, o que significa apostar numa ordem humana emancipadora, criação histórica de uma outra sociabilidade, novos campos coletivos, outros possíveis…

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Moral e Moralismo

Cinara Nahra[22]

 

  1. Ética e Moral

 

A palavra Ética se originou a partir de três termos gregos. O primeiro é o Êtos (C/epsilon e tao), que significa a cada ano, ou aquilo que se repete a cada ano. O segundo Êthos (c/epsilon e téta) que significa costumes, hábitos. E finalmente o terceiro é o Éthos, (c/éta e téta) que significa modo de ser, caráter.

Observe-se que entre os dois primeiros termos existe uma linha de continuidade óbvia: aquilo que se repete a cada ano acaba formando os hábitos, os costumes, sejam de uma pessoa, sejam de um povo. Em relação ao terceiro termo, porém, existe algo novo, algo que não está presente nos dois anteriores. Quando falamos em caráter, imediatamente nos vem à mente a preocupação com o bom e o mau. Contemporaneamente, inclusive, quando dizemos .que”X é uma ‘pessoa de caráter”,estamos querendo dizer que “X é, uma pessoa de bom caráter”. O oposto, evidentemente é o mau caráter, inúmeras vezes fazemos referência do tipo “y é um mau-caráter”, indicando que Y não é uma pessoa que possua bons valores. No terceiro termo que dá origem a palavra ética, pois, há uma preocupação com aquilo que é bom ou mau, que não existe nos dois termos anteriores. A ética no terceiro sentido (Éthos) remete mediatamente a considerações sobre o que é bom e sobre o que é mau.

Essa pequena análise filosófica serve para que possamos entender alguns problemas que enfrentamos, contemporaneamente, na aplicação da palavra ética. Se tomarmos ética no segundo sentido, ética no sentido de hábitos e costumes, teremos que nos render a uma concepção relativista que admite que sejam quais forem os hábitos ou costumes de um povo eles seriam considerados éticos, porque, afinal de contas, se ética nada mais é do que hábitos e costumes, todos os costumes e hábitos de quaisquer povos seriam éticos. Por esta concepção deveríamos admitir, por exemplo, que o costume ainda em voga hoje em determinadas tribos de cortar o clitóris das mulheres é ético, porque, obviamente, são os costumes desta tribo. Ainda por esta mesma concepção deveríamos admitir que a escravidão foi correta, porque, afinal, foi um costume dos povos e das épocas que a admitiram. A visão relativista, em última instância, nos diz: quem poderia julgar os hábitos e os costumes dos povos? Ninguém. Assim, cada povo teria os seus próprios hábitos e costumes e ninguém teria o direito de julgá-los são éticos. Se eles são costumes, eles são, já, éticos.

Se tomarmos a ética no terceiro sentido, há de emergir, entretanto, a questão: esses costumes, estes hábitos, este comportamento, enfim, é bom? Trata-se de bons hábitos ou não? E aí então a pergunta: trata-se de hábitos, de comportamentos éticos ou não? Observe-se que o uso da palavra ética neste contexto é completamente diferente do uso da palavra ética no contexto anterior. A pergunta sobre se algo é ético ou não a partir do segundo sentido do termo deve sempre ser respondida positivamente se constatamos que algum comportamento ou conjunto de ações se repete quotidianamente dentro de um determinado povo, constituindo-se em costume deste povo. Por outro lado, a pergunta sobre se algo é ético ou não a partir do terceiro sentido do termo requer a referência a uma outra noção, que é a noção de bom ou de ruim, de certo ou de errado. Ainda que algo se constitua como o costume de um povo, resta a pergunta: “Mas esses são bons hábitos”? “É certo fazer isto?” e daí “Isto é ético?”. E a resposta, sim ou não, não pode ser dada tendo como referência apenas a constatação empírica ou histórica de que as pessoas agem assim ou tem este hábito. A resposta: sim é ético, sim é correto, ou não, não é ético, não, não é correto, deve estar referenciada em algum padrão, em algum princípio, que deve ser bem diferente da mera constatação de que se trata de um costume. Dizer que algo é ético, pois, quando nos referenciamos no terceiro sentido do termo, significa muito mais do que dizer que algo é bom ou certo, porque é praticado, porque as pessoas agem assim. Dizer que algo é ético neste terceiro sentido do termo significa questionar o modo como as pessoas agem, questionar os costumes, os hábitos, seja das pessoas, seja dos povos, e perguntar: “Ok, as pessoas fazem isso, mas é certo que elas façam isso? É bom que elas ajam assim? É ético? Elas deveriam agir assim?”

E é exatamente para apreender esta diferença que um dos maiores filósofos da moral de todos os tempos, Imanuel Kant (1724-1804) vai introduzir uma diferença semântica extremamente importante, exatamente para dar conta destes dois sentidos diferentes no qual usamos a palavra ética. Kant vai nos dizer que todo conhecimento racional é ou material ou formal. Como protótipo do conhecimento racional formal nós temos o ramo do conhecimento chamado Lógica. Como protótipo do conhecimento racional material nós temos os ramos do conhecimento chamados de Física e de Ética. Neste momento Kant deixa de lado a Lógica como objeto de análise e passa a comparar especificamente a Física com a Ética. A Física, diz ele, se ocupa das leis da natureza, sendo chamada de filosofia natural. A Ética vai se ocupar das leis da liberdade, sendo também chamada de filosofia moral. A Física (Filosofia Natural) vai ser composta por uma parte empírica e uma parte inteiramente racional chamada de Metafísica da Natureza. Do mesmo modo, a Ética vai ser composta por uma parte empírica (chamada de Antropologia prática) e uma parte inteiramente racional, a Metafísica dos Costumes, que nada mais é do que a Moral.

Para Kant a Ética será composta pela Antropologia Prática mais a Moral. Mas o que é a Antropologia Prática? A antropologia prática não é nada mais nada menos do que os costumes, os hábitos, o Êthos no seu segundo sentido. Já a Moral seria a Metafísica dos Costumes, a parte totalmente racional do estudo da Ética. O estudo da Moral, pois, não poderia se reduzir ao mero estudo dos costumes, e dos hábitos. O estudo da Moral necessariamente deve ter um aporte relativo ao Dever ser, ao modo como deveríamos agir, muito mais do que ao modo como agimos, um aporte, pois, à racionalidade e a Razão, e, portanto, diz Kant, àquilo que é universal. E o estudo, pois, da Moral, entendida exatamente neste sentido de estudo do dever ser, feito unicamente através da racionalidade humana, que vai nos fornecer um princípio, chamado por Kant de Lei Moral, que segundo ele nos fornece um critério universal para que possamos saber se nossas ações são certas ou erradas, se devem ou não devem ser praticadas. A Lei Moral, também chamada no campo humano de Imperativo Categórico é assim enunciada: “Age de tal modo que o princípio subjetivo da tua ação possa sempre valer como princípio de uma ação universal”.

Foge aos propósitos deste artigo discutir a Lei moral kantiana. O que é importante aqui, para os propósitos da nossa discussão, é que Kant apreendeu muito bem (e talvez tenha sido o primeiro a fazê-Io ao longo da história da ética, embora não, é claro, o último, porque depois uma série de outros filósofos trabalharam esta distinção, alguns até de um modo totalmente diverso do kantiano) o sentido desta diferença entre os dois sentidos do Etos. Cabe a Antropologia prática estudar o Ethos, no sentido de hábitos e costumes, e cabe a Moral estudar o Ethos, no sentido claro de dever ser, de como deveríamos agir. Dizer, pois, que um comportamento ou ação é ético no sentido em que a antropologia prática concebe, significa simplesmente dizer que este comportamento ou ação é costume ou hábito de um povo. Dizer, no entanto, que um comportamento ou ação é ético no sentido em que o estudo da Moral concebe, significa dizer que este comportamento ou ação é certo ou é errado, deveria ser praticado ou não deveria ser praticado, é bom ou não é bom.

É este aporte kantiano que nos fornece a chave pra que possamos bem compreender as noções de ética e moral. Fazer a pergunta sobre se uma ação ou comportamento é ético, grosso modo, significa perguntar se esse comportamento ou ação é moral, ou seja, se ele é certo ou errado, se deveria ser praticado ou não. Isto implica necessariamente sair do ponto de vista da antropologia prática e adentrar no campo do que Kant chama de moral, que é o

campo por excelência da racionalidade.

Isto implica e exige uma atitude de questionamento e reflexão radical. Exige que nos questionemos sobre os motivos e os porquês de nossas ações, exige, principalmente, que nós sejamos capazes de nos colocar no mundo a partir do ponto de vista universal. O ponto de vista universal é aquele a partir do qual vemos as ações e as atitudes não apenas a partir do nosso interesse pessoal, ou do interesse de nosso grupo, ou mesmo do interesse da sociedade na qual estamos inseridos, mas a partir do ponto de vista da humanidade, ou seja, a partir do ponto de vista da nossa condição de ser humano.

  1. Moral e Moralismo

 

O ponto de vista universal, que é o ponto de vista efetivamente ético o ponto de vista efetivamente moral, é completamente diferente do ponto de vista que poderíamos chamar de “moralista”. Mas o que é uma concepção moral moralista? Moralismo, poderíamos dizer que é uma concepção deturpada em relação ao que é Moral, ao que é certo e ao que é errado. E aquela que se pretende emitir julgamentos de valor negativos sobre aquilo que se refere ao comportamento pessoal de indivíduos que não prejudicam a outrem com seu comportamento ou que valora distintamente pessoas ou grupos de pessoas em função de certas características naturais (físicas, sexuais ou geográficas) ou opções diferenciadas. São moralistas, pois, julgamentos do tipo: “praticar sexo antes do casamento é errado”, “dissolver o casamento é errado”, “usar roupas curtas é errado”, “praticar sexo com pessoas do mesmo sexo e errado”, e valorações do tipo: “os negros são inferiores”, “os arianos são superiores”, “os nordestinos são inferiores”, “as mulheres são inferiores”.

Curiosamente uma das maiores contribuições para que possamos entender o que é o Moralismo, vem de um dos filósofos mais controversos, e mal compreendidos da história da filosofia, que é Friedrich Nietzsche (1844-1900). Nietzsche nunca usou a expressão moralismo, mas foi um dos primeiros a fazer uma crítica feroz ao que ele chamou de Moral Judaico-Cristã, e foi um dos primeiros a afirmar a necessidade de que seja feita uma crítica dos valores

morais, uma crítica da moralidade. No prólogo do seu livro “Genealogia da Moral” afirma Nietzsche:

“Por fim, uma nova exigência se faz ouvir. Enunciemo-Ia esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão. Para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram sob as quais se desenvolveram e se modificaram; um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor destes “valores” como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento”[23]

 

Nietzsche aponta aqui, com muita clareza, um caminho para a reflexão moral que parece se constituir no caminho certo para que se entenda o problema da Moral. Há de se fazer uma crítica dos valores morais, há de se questionar o valor de todos os valores, há de se avaliar quais foram os valores que vigoraram ao longo dos últimos 2500 anos, para, quando for o caso, romper com eles. Conforme. ele diz, nos chamando para o questionamento, até que ponto muitas coisas que nos acostumamos a definir como “boas” e “ruins” são efetivamente boas e ruins?

“Até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem. E se o contrário fosse verdade? se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, através do qual o presente vivesse como que as expensas do futuro? Talvez da maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo? De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos.”

 

Havemos de admitir que considerações como essa de Nietzsche, são bastante ambíguas e problemáticas. O que estaria ele querendo nos dizer aqui? Que aquilo que costumeiramente tomamos como bom pode ser no fundo um grande mau e que aquilo que aprendemos que seja o mal pode ser um bem? E que, se é assim, e a medida que as distinções entre bom e mau são por essência distinções morais, deveríamos jogar a Moral na lata de lixo da história? Embora muitos tenham assim compreendido Nietzsche, é necessário que sejamos mais cuidadosos nessa avaliação. Quando Nietzsche fala de que talvez haja um veneno no bem (bem sempre entre aspas) e que talvez a moral seja o perigo entre os perigos, não estaria ele querendo nos advertir justamente contra uma Moral moralista? Não estaria ele justamente querendo nos alertar que há alguns julgamentos padrão a respeito do que é certo e do que é errado que fazemos quase que automaticamente, mas que, se parássemos para refletir sobre eles com mais calma, teríamos que admitir que podem não ser assim tão certos? Em outras palavras, será que muitas das coisas que admitimos como sendo moralmente certas são efetivamente certas e muitas das coisas que admitimos como sendo moralmente erradas são efetivamente erradas?

Por exemplo, é moralmente admissível nos dias de hoje que convivam no mesmo mundo pessoas miseráveis, como muitos que encontramos mendigando, e homens que ganham milhões por dia num único jogo bem feito na bolsa. Mas será que isto é efetivamente certo? Por outro lado, é considerado imoral que as pessoas andem nuas pelas ruas. Mas será que isto efetivamente imoral? Claro que não vou discutir aqui se estes certos são certos e estes errados são errados, o que importa aqui é que nos questionemos sobre se efetivamente certas coisas que temos introjetadas como certas são efetivamente certas, são efetivamente morais, e sobre se coisas que temos internalizadas como erradas são efetivamente erradas, são efetivamente imorais.

Saindo já, da terminologia Nietzscheana, podemos perguntar: ate que ponto muitos dos valores morais que construímos ao longo dos séculos, não seriam valores moralistas? Aqui Nietzsche também pode dar luzes a nossa investigação. Ele afirma que a moral ocidental está baseada nas idéias de culpa, má consciência e nos ideais ascéticos. Os ideais ascéticos, diz ele, estão baseados nas noções de humildade, pobreza e castidade. Ao se perguntar, posteriormente, sobre “o que significa o ideal ascético?” Ele afirma:

“O pensamento em torno do qual aqui se peleja é a valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence natureza, mundo, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada em relação com uma existência totalmente outra , a qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para esta outra existência. O asceta trata a vida como um caminho errado, que se deve, enfim, desandar até o ponto onde começa; ou como um erro que se refuta- que se deve refutar com a ação: pois ele exige que se vá com ele,  e impõe, onde pode a sua valoração da existência. Que significa isso? Um tal monstruoso modo de valorar não se acha inscrito como exceção e curiosidade na história do homem: é um dos fatos mais difundidos e duradouros que existem… Pois consideremos com que regularidade, com que universalidade, como em quase todos os tempos aparece o sacerdote ascético; ele não pertence a nenhuma raça determinada; floresce em toda parte; brota de todas as classes”[24]

O ascetismo, pois, característico da moral ocidental, implica na negação do pathos, da paixão, do sentimento, do instinto, do prazer. Implica, enfim, na negação de tudo aquilo que no homem é animal. Se for assim, não poderíamos dizer que o ascetismo é uma das características de uma moral moralista? Se uma concepção moralista é aquela que “se pretende emitir julgamentos de valor negativos sobre aquilo que se refere ao comportamento pessoal de indivíduos que não prejudicam a outrem com seu comportamento ou que valora distintamente pessoas ou grupos de pessoas em função de características naturais (físicas, sexuais ou geográficas) ou opções diferenciadas”, não poderíamos deduzir que muitas vezes estes julgamentos de valor negativos são emitidos exatamente em função de uma postura ascética que quer estender a sua concepção ascética do mundo a todo mundo? Em outras palavras, será que muitas vezes o moralismo não surge em função de uma postura ascética?

  1. A Moral invertida: O Moralismo

 

Conforme já vimos, a Moral exige necessariamente um aporte ao universal. O aporte moralista, porém é um aporte deturpado. Deturpado, em primeiro lugar, porque os julgamentos moralistas, embora se pretendam universais, não se qualificam para uma pretensão à universalidade quando os analisamos mais profundamente. Ao contrario, exatamente por não respeitar a diferença e o diferente, os julgamentos moralistas são extremamente subjetivistas. Afinal de contas, em que nos basearíamos para fazer, por exemplo, um julgamento do tipo “ter filhos fora do casamento é errado”, ou “as mulheres devem restringir-se às atividades do lar?” Estes julgamentos não atendem ao critério da universalidade. Se todas as mulheres resolvessem a partir de agora ter filhos sem serem casadas, nada de catastrófico aconteceria no mundo. Do mesmo modo, se todas as mulheres resolvessem a partir de hoje trabalhar fora o máximo que isto geraria seria uma grande dor de cabeça para alguns maridos machistas. A universalização destes comportamentos não gera nenhuma conseqüência nefasta para a humanidade, ou mesmo para a sociedade na qual estamos inseridos. Isto mostra que o que é errado não são estes comportamentos. O que e errado e julgar que estes comportamentos (por exemplo, ter filhos sem ser casado; mulher trabalhar fora de casa) são errados, julgar que estes comportamentos são imorais.

Observe que algo bem diferente se dá em relação a atos ou comportamentos relativos à corrupção, a mentira, ao roubo, a exploração. Se todas as pessoas do mundo resolvessem mentir, ou agir corruptamente, ou roubar ou explorar o semelhante seria o caos. As conseqüências, pois, para a sociedade e para a humanidade seriam extremamente negativas, extremamente nefastas, o que mostra que estes comportamentos (praticar a corrupção, mentir, roubar, explorar) são errados, são imorais.

A grande questão, porém, é a seguinte: porque muitas vezes muitas pessoas estão dispostas a aceitar, ou pelo menos a serem condescendentes com atos e comportamentos do segundo tipo (corrupção, roubo, mentira) e a condenar prontamente os comportamentos do primeiro grupo (mulher trabalhar fora, ter uma produção independente)? É extremamente importante que estejamos dispostos a fazer uma profunda reflexão sobre este comportamento (ser condescendente com comportamentos do segundo grupo e condenar os do primeiro). Esta reflexão pode nos Ievar a compreender que muitos dos julgamentos que fazemos do ponto de vista moral, nada tem de moral, são totalmente moralistas.

Esta consciência implica em compreender que fazemos parte de uma sociedade cujos valores estão profundamente invertidos, uma sociedade moralista, e exatamente por isto, imoral, anti-ética. Com esta consciência estamos muito mais aptos para compreender problemas seríssimos do Brasil e do mundo contemporâneo, como falta de ética na política, a falta de solidariedade com o outro, desumanização da sociedade, a falta de investimento no social, o egoísmo. Uma moral moralista é uma moral invertida. É uma moral que diz ser certo o que é errado e diz ser errado o que é certo. É uma moral imoral. É, talvez, a expressão máxima da imoralidade.

  1. Preconceito

 

Para seguir adiante na análise do que é o moralismo vamos analisar o que é o preconceito. A mera análise da palavra nos diz digo sobre o significado do termo: pré + conceito. Pelo dicionário temos três definições:

1. Um conceito formado antecipadamente e sem fundamento razoável.

2. Um estado de superstição. Superstição que obriga a certos atos ou impede que eles sejam praticados.

3. Um estado de cegueira moral.

Vamos inicialmente analisar a definição 1. O que é um conceito formado antecipadamente e sem fundamento razoável? É basicamente um conceito injustificado, ou seja, um conceito para o qual não se consegue dar boas razões. Se por exemplo, um indivíduo X afirma que as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens e ao ser questionado sobre os motivos desta sua afirmação ele não consegue dar uma justificativa, este indivíduo está sendo preconceituoso em relação às mulheres, e isto está ainda de acordo com a definição. Suponhamos, entretanto, como hipótese adicional, que este mesmo indivíduo X tem, em mãos, uma pesquisa na qual se observa que os resultados obtidos por mulheres em testes de QI são, em geral, inferiores aos resultados obtidos pelos homens. Neste caso, pela definição, o indivíduo X deixaria de estar expressando um preconceito porque agora ele tem uma boa justificativa para sua afirmação. O conceito deixa de ser um pré-conceito e passa a ser um conceito. Um conceito equivocado, talvez, diríamos nós aludindo a outra série de razões para mostrar que testes de QI, por exemplo, não servem para medir a capacidade intelectual das pessoas. Mas aí tudo é uma questão de crença, e não poderíamos mais dizer que o indivíduo X é preconceituoso no sentido em que é definido primeiramente preconceito. Se ele efetivamente acredita na validade dos testes de QI ele está simplesmente fazendo uma mera observação ao dizer que as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens.

Se há dúvidas sobre isso façamos o raciocínio inverso. Suponhamos que X tenha em mãos uma pesquisa na qual se mostre que os resultados obtidos pelos homens em testes de QI são inferiores aos das mulheres. Neste caso nosso X teria que admitir a afirmação: os homens são intelectualmente inferiores às mulheres. Esta seria uma observação do mesmo tipo de Y é homossexual, para alguém que se descobrisse que mantém relações com pessoas do mesmo sexo, ou do tipo Z é amarelo, para alguém que tenha a cor de pele amarela. Não há aí nenhum preconceito. O problema, o grande problema, é que afirmações como estas, muitas vezes, vêm carregadas de um conteúdo que transcende a mera observação, e passa-se, então, a se atribuir à observação um caráter valorativo geralmente depreciativo, e aí está o preconceito. São os casos em que as observações encerram já em si um julgamento de valor negativo, mas que só se consegue descobrir no contexto. Neste caso dizer que Joana é mulher tem muito mais implicações do que a mera observação sobre o gênero a qual pertence; Joana é negra significa muito mais do que uma mera constatação sobre a cor de sua pele; Joana é homossexual não significa uma simples referência a sua opção sexual, Joana é prostituta é muito mais do que uma observação sobre a sua profissão,

É por isto que acredito que a boa definição sobre preconceito passa necessariamente pela definição 3, Preconceito tem a ver com moralidade. Na realidade o preconceito é fruto de uma concepção moral deturpada, ou se quiserem, uma concepção moral moralista.

Na realidade o preconceituoso é antes de tudo um “negador de diferenças”. O preconceituoso acha que tudo aquilo que é diferente de si próprio, pelo mero e único fato de ser diferente de si próprio, é inferior. Existe aqui um forte componente narcísico e egoísta. O preconceituoso não aceita a diferença e vaiara como ruim tudo aquilo que não é feito a sua imagem e semelhança.

O preconceito pode se manifestar de diversas formas. Na sua forma mais rude ele toma o nome de discriminação. O que é discriminação? É a negação de direitos que são reconhecidos como sendo direitos de todo ser humano à determinados grupos ou pessoas em função de pertencerem a determinado gênero, determinada raça, determinada região ou terem determinada preferência sexual ou de crença que é perfeitamente compatível com a liberdade alheia. A discriminação se apresenta sempre de forma manifesta, dos mais diversos modos, passando desde a proibição de freqüentar determinados locais, até a hostilização pública e chegando a discriminação na própria legislação,

Mas o preconceito pode ser também dissimulado, e talvez nesta sua forma de apresentação ele seja tão ou talvez ainda mais nefasto do que a que ocorre na discriminação. O preconceito dissimulado é aquele que se esconde, que opera não ostensivamente, aparecendo nos bastidores e não nos palcos, é aquele que escorrega … É possível aqui estabelecer uma analogia entre esta manifestação do preconceito e as estratégias do poder autocrático. Conforme nos diz Norberto Bobbio:

“Como já afirmei o poder autocrático não apenas esconde para não fazer saber quem é e onde está, mas tende também a esconder suas reais intenções no momento em que suas decisões devem tornar-se públicas. Tanto o esconder-se quanto o esconder são duas estratégias habituais do ocultamento. Quando não se pode evitar o contato com o público coloca-se a máscara. Nos escritores da razão de estado o tema da “mendacidade” é um tema obrigatório assim como é obrigatória a referência à nobre mentira de Platão ou aos discursos sofísticos de Aristóteles. Torna-se communis opinio que quem detém o poder e deve continuamente resguardar-se de inimigos externos e internos tem o direito de mentir, mais precisamente de simular, isto é, de fazer aparecer o que não existe e de dissimular, isto é, de não fazer aparecer o que existe “[25]

 

A simulação e a dissimulação são características do poder autocrático como afirma Bobbio. Podemos ir além dele afirmando que o preconceito que se dissimula também é uma das estratégias deste poder; poder este que se manifesta nas diversas instâncias da sociedade. Este preconceito que não discrimina ostensivamente, mas que opera nos bastidores, tenta produzir como resultado de seu operar uma discriminação muito mais fina, refinada e talvez por isso mais perversa. E sua perversidade está justamente no seu mascaramento. É como se ele produzisse resultados discriminatórios sem, entretanto fazer aparecer sua fonte. Ao operar deste modo ele se torna extremamente difícil de ser combatido.

Pra continuar nossa análise, vou fazer aqui uma discussão em relação a dois preconceitos clássicos, o preconceito contra os homossexuais e o preconceito contra as prostitutas.

5. O preconceito contra os homossexuais

Como se apresenta o preconceito contra os homossexuais nos dias de hoje? Aqui no Brasil neste fim de século os gays e lésbicas estão realmente sendo aceitos pela sociedade ou trata-se apenas de uma aceitação aparente?

Há vários elementos que devem ser analisados para que se compreenda mais profundamente o que está acontecendo em nossa sociedade no que se refere a esta questão. No plano relativo aos direitos observe-se que houve e há uma resistência enorme a aceitação do projeto de Martha Suplicy que permite a ampliação dos direitos relativos a homossexuais que vivem juntos e constroem patrimônios em comum. Por outro lado há uma série de decisões judiciais que são favoráveis aos homossexuais. No mês de junho de 2000 (só pra dar um exemplo), a Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu por unanimidade que um casal de lésbicas poderia resolver a partilha do patrimônio numa Vara de Família. A decisão desfez o entendimento anterior de que Varas de Família deveriam tratar apenas de questões envolvendo uniões estáveis entre marido e mulher.

Estes dois fatos refletem o que está acontecendo na sociedade brasileira em nível de aceitação do homossexualismo. Na realidade está sendo travada uma luta surda e quotidiana entre aqueles que são partidários, ainda que não se dêem conta, de uma moral preconceituosa que não aceita gays e lésbicas e aqueles que entendem que o direito de se relacionar sexual e afetivamente com pessoas do mesmo sexo é um direito inalienável de todo ser humano. Observe-se, entretanto, e é basicamente para isso que quero chamar atenção, que os partidários desta moral preconceituosa são em muito maior número do que se supõem. Há uma minoria que expressa seu preconceito e muitas vezes até discrimina, mas há também um outro contingente de pessoas, aquelas que não tem coragem de assumir seu preconceito e praticam o que chamamos de “preconceito dissimulado”. Esse preconceito, hipócrita por excelência, acaba se revelando em vários momentos: quando os pais que tem em suas relações amigos homossexuais desabam quando descobrem que seu próprio filho é gay ou quando um casal homossexual centrado, bem resolvido e bem sucedido visita a sua sala de jantar toda noite através das imagens transmitidas pela maior rede de telecomunicações do país em novela no horário nobre, e o público mostra nas pesquisas que prefere a retirada dos personagens da novela.

São estes fatos, estas atitudes e muitas outras, que se manifestam no dia-a-dia que mostram o quanto é grande o preconceito contra os homossexuais, o preconceito que não se revela, o preconceito que não ousa dizer o seu nome. Surge, então, uma outra questão a ser abordada posteriormente que é a questão da dissimulação: porque as pessoas dissimulam o preconceito? Porque elas dizem não ter aquilo que elas de fato tem?

  1. 6.    O preconceito em relação à prostituição

 

E o preconceito em relação as prostitutas, como se apresenta? Na realidade temos aqui uma das maiores expressões da hipocrisia humana. As mesmas pessoas que utilizam da prostituição são as primeiras a condená-la. A questão básica em relação a prostituição é a seguinte: porque a comercialização do sexo deve ser vista como imoral, se ela é consentida tanto por quem está vendendo seu corpo quanto por quem está comprando? A prostituição só deve ser condenada em dois momentos:

a)    quando a pessoa que está se prostituindo está sendo obrigada por alguém ou por alguma condição exterior a ela a fazê-lo, ou seja, não é de sua livre e espontânea vontade (que é a maioria dos casos relativos ao comércio internacional do sexo).

b)   quando a pessoa que está se prostituindo é menor de idade, e deste modo, não tem condições de compreender todas as conseqüências de seu ato.

Nestes dois casos a prostituição se torna imoral (a prostituição, claro, e não quem a pratica) Em qualquer outro caso, entretanto, a condenação moral a prostituição é uma condenação moralista e preconceituosa, já que não há nenhum motivo para que se condene a prostituição e não se condene outras profissões que são exercidas sem a vontade legítima de quem a exerce. Na realidade, em todas profissões há os que a exercem porque necessitam, os que a exercem porque gostam e os que a exercem porque necessitam e gostam. Se há algo a ser condenado, este algo deve ser a sociedade em que vivemos que permite e é conivente com a dissociação entre trabalho e realização pessoal. Mas porque os moralistas de plantão nunca pensaram em salvar os bancários, os médicos, os professores, enfim, todos aqueles que estão descontentes com suas profissões exercendo-as apenas por necessidade e conscientizá-los de que devem procurar outras atividades? Porque se pensa que apenas as prostitutas é que estão exercendo suas profissões por mera necessidade e que, portanto, devem ser salvas da perdição?

A questão da prostituição é extremamente complexa. Muitos afirmam que a prostituição é fruto do processo de exclusão social, e que elas(eles) são jogadas(os) neste mercado pela falta de oportunidades de emprego. Obviamente que isto ocorre, ou seja, o desemprego contribui com a prostituição, mas ele não é o único fator a influenciar a prostituição. Há um elemento último fundamental que é a escolha de quem se prostitui e não há como fugir a isto. Em grandes centros urbanos a possibilidade de auferir ganhos com a prostituição para um determinado tipo de mulheres ou de homens (geralmente com juventude e beleza) é muito maior do que a possibilidade de auferir ganhos com empregos que exigem nível de escolaridade médio. E neste caso, ainda que exista a possibilidade concreta do emprego, muitos preferem a opção da prostituição. Trata-se de uma escolha e não de uma imposição.

Este é um dos tipos de prostituição. Há, evidentemente, uma outra situação em que as pessoas se prostituem única e exclusivamente em função de condições econômicas totalmente adversas (o que é o caso de muita gente no Brasil e em países muito pobres em que a prostituição é uma das únicas opções de sobrevivência). Nestes casos há uma espécie de imposição social. A prostituição, que é fruto deste tipo de condição social, tende a diminuir drasticamente a medida em que houver melhor distribuição de renda e adoção de políticas públicas efetivas nos países em que ela existe.

Mas seja qual for o motivo que leva as pessoas a se prostituírem, o fato é que a sociedade é extremamente preconceituosa e cruel com as prostitutas. Apesar de como se diz, ela ser uma das mais milenares profissões, a sociedade atual muitas vezes não concede a ela nem este status, ou seja, o status de ser uma profissão.

Uma das formas de manifestação deste preconceito e desta crueldade é através da violência. Classicamente dividimos a violência em violência física, sexual e psicológica. Os profissionais do sexo são vítimas diárias e quotidianas destes três tipos de violência. A violência sexual muitas vezes ocorre no próprio exercício da profissão, quando alguns clientes se sentem tentados a violar qualquer acordo que tenha sido feito sobre o que é admissível ou não na relação. A ausência do acordo também é motivo para a violação, sob a alegação de que o pagamento significa o poder total sobre o corpo da profissional, o que obviamente é uma visão imoral. Mas a condição a que o profissional do sexo, principalmente a prostituta, se encontra é, infelizmente, extremamente favorável a este tipo de abuso. Não só porque, em função de sua inferioridade física, a possibilidade de uma reação é muito pequena, mas principalmente porque a chance de uma prostituta ver aceita uma reclamação por violência sexual durante o exercício da sua profissão, diante de um tribunal, é praticamente nula.

A violência física a que os (as) profissionais do sexo estão sujeitos (as) também é preocupante. O preconceito é tão forte que faz com que muitos não os (as) vejam como cidadãos (ãs), como pessoas que são sujeito de direitos, exatamente como muitas vezes acontece com os mendigos, homossexuais, travestis etc… E ao não reconhecê-los (as) como cidadãos (ãs), imediatamente há a caracterização do diferente e do inferior. E ao inferior não se respeita, se humilha, se maltrata. Essa é a perversa lógica dominador. A perversa lógica da violência.

Mas a violência psicológica, que no caso eu chamaria de violência moral/psicológica, parece ser a pior, pois se manifesta a todo o momento. A sociedade parece disposta a condenar, a todo momento, as prostitutas e a prostituição. O termo chulo para designar prostituição é usado para designar, nos mais diversos contextos, algo ruim. Conviver com este estigma, como se, a todo momento, a sociedade dissesse ao(à) profissional do sexo que ele está fazendo algo errado é um fardo pesado demais. O que as pessoas e o sistema social como um todo fazem com as prostitutas, condenando-as, é uma maldade, uma violência, uma imoralidade. Uma imoralidade que está diretamente ligada ao preconceito.

  1. 7.    A Dissimulação e a Hipocrisia

 

Quando fizemos a análise sobre o preconceito em relação aos homossexuais e as prostitutas apareceram os conceitos de dissimulação e de hipocrisia. Dissimular vem do latim dissimulare que significa não revelar os seus sentimentos ou desígnios. Significa, também, obrar dissimulada mente, afetar, não perceber ou não ouvir o que se faz e diz. Não deixar aparecer, cobrir, disfarçar. Não dar a perceber, calar. Fingir, apresentar como escusa. Tornar pouco sensível ou notável; atenuar o efeito de. Ocultar-se, esconder-se. Já hipocrisia vem do latim hypocrisis que significa declamação, ato de representar. Hipocrisia pode significar também a manifestação de qualidades ou sentimentos bons que na realidade não se tem.

A dissimulação e a hipocrisia são alguns dos sentimentos mais perversos do ser humano. O dissimulado mente, engana, finge. Trata o outro sempre como meio, nunca como fim, trata o outro sempre como meio para atingir seus objetivos, não vendo o seu semelhante como um sujeito de direitos, como alguém que tem o direito à verdade, alguém que tem o direito de não, ser enganado. André Comte Sponville escreveu o livro chamado Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Entre estas virtudes ele cita a fidelidade, a coragem, a justiça a temperança, a tolerância a doçura. Se fosse escrito um pequeno tratado dos grandes vícios, a dissimulação, junto com a hipocrisia, estaria entre eles. Curiosamente vem da literatura, através de Shakespeare, as apresentações mais perfeitas sobre o comportamento dissimulado, tanto nas suas obras trágicas, como, por exemplo, no Rei Lear, em Mac Beth, quanto nas comédias como Muito Barulho pra Nada e Medida por Medida.

O comportamento dissimulado está diretamente associado a moral moralista. Se, conforme já vimos, os julgamentos moralistas não são universalizáveis, sendo subjetivistas, o moralista não tem como justificar racionalmente sua atitude. Esta impossibilidade de justificação, em última instância, é a prova de que estamos diante de um modo de valoração errado, imoral. O moralista, pois, não tem como argumentar racionalmente em relação a sua convicção, no fundo ele sabe que ela não se sustenta. Exatamente por isto ele finge. Ele disfarça, esconde e opera na surdina. Ele dissimula. Quando ele não age com dissimulação ele age com autoritarismo. Ele tenta impor a sua concepção, impor o seu modo de valorar. O autoritarismo é a outra face da dissimulação, é a outra face de uma mesma moeda. O que há de comum entre ambos é que eles se distanciam do espaço da argumentação, da racionalidade. Exatamente porque este espaço, o espaço da racionalidade, exige a justificação, e é exatamente esta que não pode ser dada pelo moralista, exatamente porque os julgamentos de valor moralistas não são racionais.

O comportamento hipócrita apresenta um passo a mais em relação ao do dissimulado. O dissimulado finge não acreditar no que acredita, não julgar como julga, já o hipócrita finge não fazer o que faz. A hipocrisia, como podemos ver pela própria origem latina da palavra, traz o elemento da encenação. O hipócrita apresenta-se como sendo quem ele não é e exigindo de todos um comportamento que ele não tem. A hipocrisia também é característica do moralismo, sendo talvez uma de suas expressões máximas. O hipócrita é uma vítima do seu próprio moralismo. Ele mostra através da sua existência as contradições do moralismo. A hipocrisia é um monumento vivo mostrando, através dos séculos, a que ponto podem chegar as manifestações ‘da irracionalidade humana.

  1. 8.    A Moral do egoísmo e do individualismo

A postura moralista, como vimos, caracteriza-se, então, pela irracionalidade e pela inversão de valores. A irracionalidade pode ser vista através da impossibilidade de que universalizemos julgamentos de valor moralistas. A inversão de valores caracteriza-se, justamente, por declarar como certo, como bom, aquilo que é errado ou ruim e como errado ou ruim aquilo que nada tem de ruim ou errado. São característicos deste modo de valoração: o preconceito, a negação das diferenças, a postura ascética, a dissimulação e a hipocrisia, entre outros.

O modo de valoração moralista tem, como sua outra face, a “Moral do Egoísmo”. A Moral do Egoísmo tem origem na Grécia Antiga entre os Sofistas. Trasímaco, um dos mais radicais sofistas, dizia que justiça nada mais é do que a representação dos interesses dos mais fortes, e encorajava seus pupilos a seguir unicamente seus próprios interesses, dizendo que a única coisa que interessa aos indivíduos em uma sociedade é adquirir força e poder. A Moral do egoísmo, sob o nome de Objetivismo, tem na sua versão contemporânea Ayn Rend, (1905-1982) como sua maior defensora. Ayn Rend é uma das responsáveis pela formulação dos princípios “morais” que fundamentam o neo- liberalismo. Ayn Rend nos diz:

“Somente direi que todo sistema político está baseado e se origina em uma teoria ética… e que a ética objetivista é a base moral requerida por este sistema econômico-político que é destruído em todo o mundo, destruído precisamente porque lhe falta defesa e validez moral e filosófica: o sistema norteamericano original, o capitalismo. Se morre, terá sido por abandono, por não ter sido descoberto nem identificado; nenhum outro assunto foi jamais ocultado através de tantas distorções, conceitos errôneos e más interpretações. Hoje em dia, muito poucas pessoas sabem o que é o capitalismo, como

funciona e qual sua história. Quando digo capitalismo me refiro ao capitalismo de “laissez-faire” total, puro, sem controle algum, sem regulamentações, com uma clara separação entre Estado e economia. Um sistema de capitalismo puro assim não existiu jamais nem nos Estados Unidos, já que desde o começo houve uma série de controles governamentais que o limitaram e distorceram. O capitalismo não é um sistema do passado; é o sistema do futuro… se é que a humanidade há de ter um futuro”[26]

Ayn Rend descreve como ninguém a moral do egoísmo, um dos sustentáculos do capitalismo neoliberal. Entre outras pérolas temos:

“Não existe tal coisa como direito a um emprego – somente existe o direito ao livre contrato, quer dizer, o direito de um homem empregar-se se outro homem o escolher para ocupá-lo. Não existe o direito a uma habitação, unicamente o direito a trabalhar em liberdade para construir uma casa ou comprá-la. Não existe o direito a um salário justo ou a um preço justo se ninguém está disposto a pagá-lo, a encontrar colocação para um homem ou comprar seu produto. Não há direitos de grupos especiais, não há direitos de camponeses, de operários, de homens de negócio, de empregados, empregadores, de idosos, jovens ou de ainda não nascidos. Somente existem os direitos do homem, direitos que são propriedades de cada homem individual e de todos homens como indivíduos. O direito a propriedade e o direito ao livre comércio são os únicos direitos econômicos do homem (que de fato são direitos políticos)”[27]

Por mais que Ayn Rend não queira, a sua moral do egoísmo quando aplicada acaba descambando para uma moral altamente individualista, do descompromisso total para com o outro, do “o que me importa é que eu me dê bem”. Trata-se do coroamento da máxima maquiavélica de que “os fins justificam os meios”. Através da moral do individualismo estamos autorizados a fazer qualquer coisa que esteja a nosso alcance, com muito poucos limites, para atingir nossos objetivos. E aí se passa por cima do outro, engana-se, mente-se. Vale tudo e tudo é válido desde que venhamos a nos dar bem. E o “se dar bem” nada mais é do que conseguir dinheiro, bens (às vezes até não muito). Não nos enganemos. É a moral do individualismo que está por trás tanto do ato do adolescente que ataca o outro, chegando a cometer o assassinato, para conseguir o tênis da moda, até o Lalau que desvia o dinheiro da construção de um prédio público para seus bolsos. Entre um extremo a outro, entre o extremo do menino que rouba o tênis até o do grande corrupto, está uma sociedade inteira atônita, onde muitos, nos mais diversos graus, cometem atitudes que derivam da mesma lógica, da lógica do egoísmo, e não percebem.

A moral do individualismo acaba sendo profundamente imoral, exatamente como o moralismo. O que ambas tem em comum é exatamente a sua irracionalidade, mostrada pela impossibilidade total de sua universalização. O moralismo quando universalizado revela-se contraditório, e o egoísmo, universalizado, provoca o caos social.

  1. 9.    A Transvalorização de todos os valores

 

Se, como vimos, o modo dominante ocidental de valoração, através do moralismo, da moral do egoísmo e de suas variações é tão perverso e pernicioso, tão imoral, nada mais resta a quem tem consciência da sua perniciosidade senão combatê-lo. Este combate nos remete necessariamente a Nietzsche e ao início de nosso artigo. Nietzsche nos fala de uma nova exigência, que é a necessidade de criticar os valores morais, colocando em questão o próprio valor destes valores.

Fazer uma crítica dos valores, colocar em questão o valor dos valores, implica em primeiro lugar em tomar uma atitude de profunda pesquisa e reflexão sobre a sociedade ocidental e sobre o comportamento dos indivíduos. Quais são os princípios de nossas ações? Como julgamos? Será que o que costumeiramente tomamos como certo é efetivamente certo? Uma análise inicial nos remete a tomada de consciência de que a Moral ocidental é profundamente perversa e deturpada. Se aceita a miséria e condena-se o prazer. Quando não se condena o prazer deriva-se para o extremo oposto e em nome dele pratica-se todo o tipo de ações, inclusive aquelas que prejudicam e desrespeitam o outro. Desrespeita-se a diferença e o diferente ou, ao contrário, descambamos para o extremo de aceitar, em nome do respeito a diferença, práticas e comportamentos que desrespeitam profundamente os direitos individuais. Já em nome do respeito aos direitos do indivíduo (como o direito a propriedade e ao livre comércio) admite-se práticas profundamente danosas para o bem comum (como prejudicar o meio-ambiente, estabelecer condições indignas de trabalho). A lista é infindável!

Há de se fazer uma reflexão profunda sobre as práticas recorrentes em nossa sociedade, sobre os nossos valores, sobre a nossa Moral enfim. Esse é o primeiro momento de um processo cujo nome tomamos emprestado de Nietzsche, um processo de transvalorização de todos os valores. O segundo momento deste processo é justamente classificar estes valores em bons valores, ou seja, valores que devem ser mantidos, e maus valores, valores que devem ser recusados e combatidos. Dos valores que assumimos quais realmente deveríamos adotar? Será que os julgamentos que fazemos sobre o que é certo e o que é errado, sobre o que devemos ou não fazer, realmente refletem o que é certo, o que efetivamente deveria ser feito, como efetivamente deveríamos nos comportar. E a nossa prática, como é nossa prática? Estamos sempre dispostos a criticar a imoralidade dos outros, mas será que muitas vezes também não nos comportamos de modo totalmente egoísta e imoral? O terceiro momento deste processo é justamente a construção de novos valores, e, portanto, a mudança da ação, uma mudança de atos, uma nova prática.

Obviamente que estes três momentos do processo de transvalorização não se dão de forma estanque. Acontecem ao mesmo tempo, com vitórias e reveses como em todo processo de transformação. A sua efetivação, entretanto, é imprescindível ainda que mais não seja para a manutenção da vida sobre o planeta Terra. Faz parte da construção de um novo mundo. Um novo mundo que é possível e que mais do que possível é necessário. Mas não nos enganemos. O processo de transvalorização dos valores, de construção de valores novos, valores que efetivamente promovam a vida e a qualidade de vida é longo, penoso e infelizmente exige muitos atos que poderíamos chamar quase de heróicos. Não tenho dúvidas que devemos começar esse processo por nós próprios, ou seja, cada um por si próprio. Que cada um de nós faça uma profunda reflexão sobre a nossa própria prática, nossos mais pequenos atos, nossas atitudes diárias perante nossos familiares, nossos colegas, nossos amigos. Será que nós não agimos muitas vezes de modo moralista ou egoísta? Trata-se de um processo doloroso e duro, no qual corremos o risco de ser mau interpretados e de sofrer. Mas o dia em que cada um de nós tiver transformado a si próprio, teremos, enfim, transformado o mundo!

Elementos reflexivos sobre a

insustentabilidade do desenvolvimento

sustentável na sociabilidade do capital

Andréa Lima[28]

 

“Não nascemos livres: a liberdade é uma conquista – e mais: uma invenção”.

(Octávio Paz)

 

Estamos vivenciando mais do que nunca os efeitos sintomáticos do desenvolvimento econômico sem limites que desencadeou um processo de degradação ambiental no mundo inteiro. São crises de ordem econômica, política, social e ecológica assentadas na racionalidade capitalista da produção e consumo que intensificou a degradação ambiental em todo o mundo, considerando que a “pedra filosofal” do capitalismo maduro está na produção pela produção – o produtivismo.

Este produtivismo ilimitado/que se utiliza, cada vez mais, do advento de novas técnicas para aumentar a produção, provoca, necessariamente, o aumento da pobreza. Isto ocorre em virtude da concentração de riqueza que aumenta, substancialmente, as taxas de desemprego no mundo inteiro e implica na degradação do meio ambiente, surgindo, assim, uma questão social e uma questão ambiental a ser entendida e enfrentada como faces de uma mesma moeda. Sobre isto, Bihr (1991:129) adverte: “é então exatamente o modo de produção capitalista em seu conjunto que, ao submeter a natureza aos imperativos abstratos da reprodução do capital, engendra a crise ecológica”.

Não é de estranhar o fato deque os maiores poluidores do planeta sejam os países industrializados. Os EUA[29] lideram o ranking perverso da poluição no mundo. Se hoje temos uma “economia global”, temos, também, inevitavelmente, uma degradação ambiental planetária. No entanto, as conseqüências dessa degradação assumem particularidades. Uma questão se impõe: como chegamos a esta racionalidade econômica na qual o sentido e a essência da natureza foram devorados, usurpados e transformados em mercadoria? Como chegamos a este modelo de desenvolvimento capitalista perverso, homogeneizado e destruído do meio ambiente?

Nas sociedades primitivas, o uso e a exploração da natureza pelo homem era realizado numa espécie de simbiose perfeita, retirando da natureza apenas o que necessitava para a sua subsistência.

A partir do uso e da transformação da natureza, os primeiros hominídeos inventaram as ferramentas simples de pedra, depois aprenderam a usar o fogo. Com o passar dos tempos, imersos no processo evolutivo, passaram a elaborar ferramentas mais sofisticadas para facilitar a atividade da caça, inventando assim, as lanças com pontas. No Paleolítico Superior, os instrumentos eram feitos com ossos. É neste período que se registra o início da arte. Tempos depois construíram o arco e a flecha, e, com as formações das aldeias e também do começo da agricultura (economia doméstica) têm-se as premissas para o desenvolvimento da propriedade privada.

No final da Idade do Bronze, inaugura-se a época da produção de metais e das diferenças sociais, pois os indivíduos se distinguiam pelo cobre e pelo ouro que possuíam. A cada passo da evolução, o homem se viu diante de novas necessidades e é esta busca permanente pela satisfação de suas necessidades que definiu um novo sentido para o uso da natureza: os recursos naturais não seriam usados somente para as suas necessidades básicas, mas serviria para “sustentar” novas necessidades e toda base de produção material.

Para Marx, a relação homem – natureza era antes de tudo, uma relação de transformação. O homem consciente do que a natureza poderia porvir retirava dela o que necessitava, e esta ação era para ambos, transformadora.

“A própria primeira necessidade satisfeita, a ação da satisfação e o instrumento já adquirido da satisfação, conduz a novas necessidades – e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico” (Marx e Engels, 1984: 32).

As necessidades humanas são precisamente históricas, pois elas se alteram, se diluem para consolidação de outras, não há, portanto, um único caminho para resolução destas necessidades, pois elas se diferem, divergem, elas caminham entre o requinte e a brutalidade, entre o que explora e o que é explorado, das necessidades materiais mais básicas de uma classe ao consumo do supérfluo da outra classe.

Se antes, nas sociedades “primitivas”, a produção era voltada para a satisfação das necessidades humanas, na aurora da modernidade o ato de produzir se volta para a produção da valorização do capital.

Com o surgimento do sistema capitalista, aliado ao pensamento mecanicista da época, o sentido da dominação e apropriação da natureza ficou mais latente, tornou-se implacável e ilimitado. A natureza, vista como mero objeto de manipulação e dominação, tornou-se fonte de riqueza e de lucro para o desenvolvimento das forças produtivas.

É imperativo ressaltar que a aceleração do processo produtivo que tem sua base na acumulação do capital provocou crises em todas as esferas da sociedade, porém, o uso predatório e sistemático da natureza alertou para um fato por muito tempo ignorado: a natureza não é uma fonte inesgotável de recursos e deste fato emerge um problema a ser enfrentado: a degradação do meio ambiente.

A degradação ambiental não é um problema contemporâneo, ela se arrasta secularmente, sendo agravada ao longo de toda história. No entanto, o grito silencioso da natureza só seria escutado na década de 60, no paroxismo da Guerra Fria; na aurora dos movimentos que pediam o desarmamento nuclear; sob bombas de Napalm que caiam no Vietnã; da linha dura do Governo de Kruschev; da construção do muro de Berlim; no triunfo da Revolução Cubana; do assassinato de John F. Kennedy; no nascer da Primavera de Praga; das ditaduras latino-americanas; do AI-5 brasileiro; do Maio Francês.

Uma década efervescente, sobretudo no cenário político, uma década em que o autoritarismo fora contestado e combatido, sob variadas formas, em várias partes do mundo, a exemplo dos movimentos de contra-cultura e dos movimentos que pediam uma chance para paz (peace and love). É, portanto, neste cenário histórico que surgem as primeiras inquietações públicas sobre a degradação do meio ambiente, provocada, substancialmente, pelo industrialismo.

Na década de 60, o livro da jornalista Rachel Carson[30], intitulado “Primavera Silenciosa”, causou verdadeira celeuma no mundo inteiro por denunciar as agressões sistemáticas que a natureza vinha sofrendo por parte dos setores industriais.

O sentido e a ação da preservação moderna do meio ambiente tem seu início com o poético e instigante alerta do Best seller de Carson, no qual mencionava que o canto dos pássaros seria apenas uma lembrança no mundo envenenado por pesticidas sintéticos.

O livro “Silent Spring” foi considerado um clássico pelas idéias preservacionistas que continha, instigando a criação de novos movimentos ambientalistas e ecológicos e fortalecendo os movimentos já existentes, publicizando, assim, a complexidade da crise ambiental.

No final dos anos 60, as organizações e movimentos sociais saíram na frente dos órgãos oficiais do governo e deram visibilidade para a crise ambiental, que há muito tempo se instalara no planeta, mas só naquele momento os efeitos desta crise estavam sendo sentidos em larga escala e os problemas advindos da crise postos em debate no mundo inteiro.

A publicação do relatório “The limits of grawth” (Os limites do crescimento econômico) [31] e o fortalecimento dos movimentos ambientalistas possibilitaram uma série de encontros e fóruns internacionais para a discussão das questões ambientais e do desenvolvimento. Este histórico documento denunciava a pilhagem da natureza pelo crescimento econômico ilimitado e irresponsável. O relatório criticava terminantemente o aumento do consumo provocado pelo modelo de desenvolvimento capitalista.

Incentivado por estas e outras denúncias, surge o conceito de ecodesenvolvimento, utilizado em 1973 pelo canadense Maurice Strong, que apresenta o ecodesenvolvimento como proposta alternativa de política de desenvolvimento. Entretanto, foi Ignacy Sachs (1976-1986) que ampliou e formulou os princípios básicos deste conceito, colocando a satisfação das necessidades básicas dos seres humanos como uma meta a ser alcançada; o uso prudente e limitado dos recursos naturais; promoção da gestão participativa e a preservação do meio ambiente natural e construído; a salvaguarda dos valores éticos, da cultura e a criação de um sistema social em que estivesse assegurado emprego, saúde, educação.

De acordo com Leff (2001: 18), antes que qualquer tentativa de efetivação da proposta do ecodesenvolvimento fosse efetivada na prática, o potencial crítico desta proposta foi dissolvido pelas estratégias do poder hegemônico.

Em junho de 1972, aconteceu a antológica Conferência de Estocolmo, que contou com uma delegação de 113 países, que objetivavam a discussão da preservação do meio ambiente e a melhoria do ambiente humano. A “Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Humano” levou a UNESCO, juntamente com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, a criarem, no ano de 1975, o Programa Internacional de Educação Ambiental.

A Recomendação nº 96, desta conferência, apontava a Educação Ambiental como elemento estratégico e crítico para o enfrentamento da crise ambiental e, também, serviu de base para promover a I Conferência sobre Educação Ambiental em 1977, em Tibilisi (URSS), momento em que foram definidas estratégias para nortear e difundir a Educação Ambiental no mundo inteiro. Em Tibilisi, foi referendada a necessidade de incorporar todos os aspectos ambientais, como o político, o social, o cultural, a dimensão ética e a ecologia para a promoção do desenvolvimento ambiental.

Ainda na década de 70, foram produzidos dois importantes documentos: a Declaração de Cocoyok de 1974 e o Relatório de Dag-hammerskjold – este último foi imprescindível para pensar o político, o econômico-social e a cultura como elementos ambientais que, também, sofrem degradações. No documento de Dag-hammerskjold são indicados como problemas ambientais o autoritarismo, o extermínio de etnias e a desvalorização da cultura.

Enquanto relatórios, acordos, protocolos eram criados no marco destas históricas conferências, a população do mundo inteiro e o planeta sofriam com os efeitos catastróficos da degradação do meio ambiente natural e construído. Os países de economia periférica aumentavam o seu endividamento financeiro com as agências internacionais’ (FMI, BID, Banco Mundial); as taxas de desemprego aumentaram praticamente em quase todos os países do mundo; a fome crescia nos países do Sul, na África e Ásia; o agravamento da pobreza tornava-se irreversível; o problema da escassez de água aparecia em várias partes do globo terrestre; o chamado efeito estufa aumentou excessivamente o aquecimento do planeta; a população mundial produz bilhões de toneladas de lixo provocado pelo consumo excessivo; o descuido com o humano e com o meio ambiente produziu acidentes como o de Chernobil; o acidente com o Césio-137 em Goiás; o ambiente tornou-se cada vez mais inabitável, insustentável e desumano.

Para a manutenção de uma sociedade cada vez mais consumista tornou-se oportuno construir uma proposta eficaz para assegurar o crescimento econômico de forma menos destrutiva para o meio ambiente, um desenvolvimento ecologicamente sustentável.

A urgência de soluções para os graves problemas ambientais e as pressões dos movimentos ambientalistas para o enfrentamento da questão ambiental impulsionaram a ONU a criar, no ano de 1984, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente(CMMAD) para avaliar as agressões ambientais e os progressos alcançados na resolução destes problemas. Depois de três anos de intenso trabalho, a referida comissão produziu um relatório que propunha uma estratégia de desenvolvimento sustentável menos radical, se contrapondo às propostas da vertente que difundiu uma concepção de ecologia, digamos assim, mais democrática e menos mercadológica.

O Relatório Burtland, também conhecido como “Nosso futuro Comum”, envolto ao projeto neoliberal, lançou a proposta e o conceito do Desenvolvimento Sustentável como um “processo que permite satisfazer as necessidades da população atual sem comprometer a capacidade de atender as gerações futuras”, confluindo assim, a produção e o acúmulo do capital com o caráter da preservação, do crescimento econômico com “limites”.

É imperativo ressaltar que, nas entrelinhas deste relatório, está o discurso da política neoliberal e da defesa da globalização. A proposta do Desenvolvimento Sustentável foi forjada no transformismo[32], comumente usado pela classe dominante.

Apesar do Relatório Burtland identificar fossos sociais enormes entre os países, de relatar que a dívida dos países do terceiro mundo agrava ainda mais os seus problemas ambientais e que as estratégias de desenvolvimento dos países industrializados são insustentáveis para o meio ambiente; a comissão propõe uma política de consenso com saídas diplomáticas e sem radicalidade para o enfrentamento da pobreza nos países de economia periférica. Propõe, tão somente o empenho das Nações Unidas para melhorar a qualidade de vida no planeta. Para Leff, “O discurso da ‘sustentabilidade’ leva, portanto, a lutar por um crescimento sustentado, sem uma justificação rigorosa da capacidade do sistema econômico de internalizar as condições ecológicas e sociais (de sustentabilidade, equidade, justiça e democracia) deste processo” (2001: 19).

A partir desta nova concepção acerca do Desenvolvimento Sustentado proposto pelo Relatório Burtland, foi decidido na XLIV Seção da Assembléia Geral das Nações Unidas, através da resolução 44/228, que a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento aconteceria no Rio de Janeiro em Junho de 1992 (Rio-92). A resolução, também, indicava os principais pontos a serem discutidos nesta Conferência: proteção da atmosfera; proteção da qualidade da água doce; proteção das áreas oceânicas e marítimas; combate ao desmatamento, desertificação e seca; conservação da diversidade biológica; controle de dejetos, principalmente químicos e tóxicos; erradicação da pobreza e melhorias da qualidade de vida e de trabalho no campo e na cidade; proteção das condições de saúde.

Na Rio-92 foram reunidos 114 Chefes de Estados; 170 Delegações Oficiais; representantes do FMI e do Banco Mundial e mais de 3000 ONG’s[33] para discutir sobre a Questão Ambiental e o Desenvolvimento. Além dos muitos acordos entre os países, foi aprovado durante a conferência dois importantes documentos: a carta da Terra e a Agenda 21.

A Declaração do Rio, conhecida também como Carta da Terra, é um belíssimo texto que versa sobre os anseios, desejos e vontades de todos os povos do mundo, colocando na centralidade da discussão sobre o Desenvolvimento Sustentável, o ser humano, além de consagrar o direito dos países pobres ao desenvolvimento. É sem dúvida um incentivo à paz, à cooperação e à participação. Trata-se, na verdade, de um tratado para o presente e para as gerações futuras.

A Agenda 21 é o chamado produto central da conferência, “trata-se de documento político com compromissos assumidos pelos Estados, traduzidos em ações concretas, sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Será uma espécie de guia da cooperação internacional para as próximas décadas, pois as ações que estiverem nela contempladas terão melhores condições de receber cooperação internacional para a sua realização?[34].

A Conferência do Rio de Janeiro marcou historicamente as discussões acerca dos problemas ambientais pelo fato de trazer, para o debate sobre o meio ambiente, o problema da fome, as disparidades econômicas e sociais entre os Países do Norte e do Sul; a dívida externa dos países pobres e dos Estados em Desenvolvimento. Realizada num caleidoscópio multi-racial, multicultural, de etnias, crenças, ideologias e interesses distintos, tinha de tudo: dos “ecochatos” às organizações comprometidas com a degradação humana e ecológica, das propostas que sinalizavam para erradicação da pobreza ao jogo de impobridades das forças políticas hegemônicas para a manutenção e funcionamento do mercado.

Das várias sessões de debates, ocorridas durante a Rio-92, merecem destaque dois acontecimentos: a recusa dos EUA (representado pelo ex-presidente George Bush) em não assinar o acordo que obriga os países a reduzirem em 20% a emissão de gases poluentes e o momento da discussão sobre Diversidade Biológica, em que alguns países ricos, liderados pelos EUA, lançaram a proposta de que a Diversidade Biológica de um país fosse “patrimônio comum da humanidade”, o que causou uma divisão entre os países que defendiam a soberania do seu território, entre eles o Brasil.

Sem tirar o mérito da Conferência, a sua importância, relevância e contribuição histórica para a discussão da questão ambiental e da construção de possibilidades para um mundo realmente sustentável, é importante ressaltar que houve também na Rio-92 propostas absurdas de internacionalização da biodiversidade em nome do mercado consumidor. Na sessão que tratava da erradicação da pobreza não vimos, por exemplo, a construção de um protocolo com objetivo de colocar um fim na dívida externa dos países pobres.

As propostas e os acordos de cooperação, firmados na Rio-92 sobre desenvolvimento econômico sustentado; mudanças climáticas e biodiversidade foram condensados como plano de ação que deveria ser executado pelos países que referendaram a Agenda 21. Mas o que mudou depois da implantação da Agenda 21? Quais as mudanças substanciais alcançadas na melhoria da qualidade de vida nos países periféricos? O que mudou no continente africano? Houve empenho dos países desenvolvidos para a erradicação da pobreza? Os direitos humanos foram ampliados para promoção do desenvolvimento humano?

Estamos distantes, exatamente, uma década da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ocorrida em 1992 e as indagações feitas anteriormente sobre as possíveis mudanças que ocorreriam com a efetivação da Agenda 21 são dúvidas elementares que podem ser respondidas através da complexidade que a realidade expõe quanto à situação dos países pobres que estão cada vez mais pobres; da destruição das florestas tropicais em mais de 2,5% só nos anos 90; através da pauperização cada vez mais crescente de milhões de pessoas no mundo inteiro. A resposta para saber se houve empenho e concretude das ações contidas na Agenda 21 para um ambiente mais “limpo”, sustentado e humano é necessariamente histórica e objetiva.

Apesar de importantes, as estratégias preservacionistas, as micro-ações cotidianas, os esforços da implementação das Agendas 21 Locais, os protocolos e acordos firmados, o trabalho das ONG’s e da sociedade civil organizada, não surtiu o efeito desejado, ansiado e construído de forma coletiva no que confere ao combate à pobreza; à mudança no padrão de consumo; à proteção e promoção da saúde humana; do comprometimento dos países ricos em doar 0,7% do PIB para ajudar no desenvolvimento dos países pobres. Transcorridos dez anos, passamos do simulacro “do muito ter sido feito” para o real e o que a história nos mostra, algo que o projeto capitalista foi capaz de realizar ao longo do seu intenso processo produtivo: uma degradação ambiental continuada e a decrepitude dos valores éticos e morais do ser humano.

É imperativo saber, que não houve imobilismo no enfrentamento dos problemas ambientais, mas mudanças no alvo a ser atingido. O modelo de desenvolvimento hegemônico que de fato é o maior responsável pelos impactos que o meio ambiente vem sofrendo, tornou-se a partir do conceito e da ilusão do discurso do Desenvolvimento Sustentável algo conciliável com o patrimônio comum da humanidade: a natureza. O que subordinou, fragmentou e destruiu a natureza para a reprodução do capital, apresentou-se como um caminho conciliador entre a economia, o equilíbrio ecológico e melhoria das condições de vida da população mundial.

Minha crítica transita os espaços das centenas de ações “ecológicas reformistas” que não tocam no ponto nevrálgico do problema ambiental: o produtivismo. A racional idade produtiva não é atingida, pelo contrário, é reinventada, renovada com práticas e idéias de um ambientalismo mercadológico que abre o caminho para a (re) apropriação da natureza na “nova” ordem econômica. Segundo Bihr (1991: 133),

um reformismo ecológico é possível. Pode-se, de fato, conceber muito bem que os movimentos sociais e/ou os Estados conseguem impor aos industriais e às administrações normas e controles obrigatórios em matéria de ocupação das paisagens e do uso da exploração das riquezas naturais de modo a favorecer modos de produzir e de consumir que não sejam mais ecológicos, mas, além disso, abram novos caminhos para acumulação do capital. Isso já acontece no que diz respeito à indústria de reciclagem de resíduos industriais que prometeria um belo futuro na perspectiva do desenvolvimento de um capitalismo ecologicamente reformado.

Sabe-se hoje que os efeitos danosos do neoliberalismo e da “globalização” no campo da política e da economia contribuíram, também, para intensificar a degradação do meio ambiente no decorrer dos anos 90, agravando, assim, os problemas ambientais discutidos na Rio-92.

Pela via do neoliberalismo e pelo fenômeno da globalização, têm-se o advento de novas técnicas para gerar investimentos, suprir e ampliar o mercado que é cada vez mais competitivo, temos um Estado cada vez mais forte para atender aos interesses das corporações transnacionais e das agências multilaterais e um novo ethos social, construto da mundialização capitalista. Um ethos perverso, individualista, fragmentado e que vê, ainda, a natureza como mais uma ferramenta a ser manipulada, subjugada, coisificada, mercadorizada.

Segundo dados do Fundo Mundial da Natureza (WWF), divulgados no “Relatório Planeta Vivo 2002”, o ser humano está usando 20% a mais dos recursos naturais do que o planeta é capaz de repor e em 2050 estaremos consumindo o dobro da capacidade dos recursos provenientes da terra. A exploração da natureza pelo modelo de desenvolvimento passou do limite que o planeta pode suportar, de acordo com o relatório.

O retrocesso no âmbito da questão ambiental foi geral, tanto no que confere ao ecológico quanto nas outras dimensões da vida social. A poluição atmosférica causa mais de três milhões de mortes por ano no mundo; as emissões do gás carbono aumentaram consideravelmente nos anos 90, talvez pelo fato dos países industrializados estarem motivados com a campanha dos EUA contra o Protocolo de Kioto[35]. Estamos diante de um fato que vai marcar profundamente esta década, a produção de alimentos que nunca foi capaz de saciar a fome, (em virtude dos interesses econômicos-políticos da burguesia) será possivelmente diminuída nos próximos anos. Estudos recentes da ONU colocam a questão do aquecimento global numa relação direta com a produção de alimentos, “os países mais pobres serão os mais afetados, pois poderão perder seus potenciais de produção em razão das mudanças climáticas[36]”.

Os acordos multilaterais sobre Meio Ambiente no que se refere ao combate à pobreza, à transferência de tecnologia e da redução dos níveis de poluição nos países industrializados foram completamente ignorados, pois a resolução destes problemas remete necessariamente, à extinção do modelo de desenvolvimento predatório hegemônico.

A Conferência de Johannesburgo, intitulada de Rio+10, foi uma tentativa de validar o que tinha sido discutido e acordado na Rio- 92, se constituindo em mais uma busca das Nações unidas em (re)estabelecer metas para a promoção do Desenvolvimento Sustentável.

A maioria das ONG’s presentes na, Cúpula da Terra criticaram o Plano de Ação Global construídos na Rio+ 10, pois não fixava metas ou avanços fundamentais sobre o desenvolvimento dos países pobres, como a questão da dívida externa; a transferência de recursos e de tecnologia; dos subsídios para a exportação agrícola etc. De acordo com Andrew Hewett da ONG inglesa Oxfan, o encontro foi “o triunfo da ganância e do interesse pessoal, uma tragédia para os pobres e para o meio ambiente[37]“.

As discussões acerca da energia foi um ponto de impasse da conferência. Como já era de se esperar, os EUA como maior consumidor de petróleo do mundo, tratou de derrubar as iniciativas que ampliaria as fontes renováveis de energia, como a solar e a eólica[38], descartando qualquer mudança mais radical no uso dos combustíveis fósseis.

Os impasses ocorridos na Cúpula da Terra, a falta de soluções concretas para o desenvolvimento dos países periféricos e o descumprimento dos muitos acordos firmados anteriormente nas antológicas conferências sobre Meio -Ambiente são velhos pleonasmos que descambam para um mundo cada vez mais degradado, pauperizado, estranhado, espoliado, no qual a liberdade humana é solapada pelos acordos ambientais subservientes às regras do jogo da ordem societal, das regras da OMC, FMI, do Banco Mundial e do unilateralismo americano.

O que se viu foi uma reunião acontecer num clima tenso de uma nova guerra: a guerra “preventiva” de Bush. Os acontecimentos do 11 de Setembro nos EUA respingaram no mundo inteiro. Em nome da “guerra contra o terror”, direitos políticos, civis e sociais foram cerceados em quase todos os continentes. O etnicismo, o racismo, a xenofobia e o genocídio são símbolos desta nova guerra nociva ao gênero humano e ao planeta. A Rio+ 10 é contemporânea ao momento em que os EUA e países da União Européia intensificam a campanha de internacionalização da Amazônia.

Tudo isso acontece em plena crise do Oriente Médio, mediante o provável ataque americano ao Iraque. Os Chefes de Estados, delegações e participantes da conferência assistem a derrocada do Estado de Direito, vêem o autoritarismo triunfar, presenciam a redução da qualidade de vida das populações pobres. Assim, a Rio+ 10 aconteceu no cenário insustentável do projeto de Desenvolvimento capitalista para o meio ambiente.

A incompatibilidade entre o atual padrão de produção e consumo e o Desenvolvimento Sustentável é visível. Somente com o passar de uma década frustrada para o meio ambiente, temos a clareza de que a trilha percorrida para a sustentabilidade ambiental fracassou, se perdeu na ideologização do discurso do Desenvolvimento Sustentável globalizado e na sua artificialidade de preservação ambiental, equidade, justiça e de direitos para os povos do presente e para as gerações futuras. E este fracasso não está somente assentado na ação predatória dos indivíduos em suas vidas cotidianas, mas ancorado ao mercado mundializado e aos seus instrumentos eficazes de produção e reprodução da ordem vigente.

O discurso ideológico de cunho neoliberal do Desenvolvimento Sustentável que propõe a “satisfação das necessidades da população sem comprometer a capacidade de atender às gerações futuras “foi devorado pelo consumismo voraz dos países industrializados. Hoje estamos além da capacidade de recursos que a biosfera pode prover. As promessas de combate à pobreza e de promover o desenvolvimento dos países pobres propagadas nos fóruns internacionais não têm condições objetivas de efetividade frente aos interesses do capital internacional.

Os acordos comerciais internacionais como o NAFTA, a OMC e o projeto estratégico de ordem político, econômico e militar para as Américas – ALCA e o Plano Colômbia são indiscutivelmente destrutivos para o meio ambiente. Tanto estes, como os protocolos, os acordos de cooperação para o meio ambiente tirados nas conferências da ONU são, na maioria das vezes, instrumentos para anexar, regular e aumentar a dependência dos países periféricos e em desenvolvimento.

Estes acordos multilaterais mercadorizam a natureza, promovem o genocídio de etnias, segregam os povos ameríndios, põem em risco a segurança alimentar da população mundial, criam barreiras comerciais, definem regras que impedem a autonomia dos países do Sul. São metas de um desenvolvimento que compromete o direito às necessidades mais básicas da população: o direito de comer e beber água potável; o direito à saúde, educação, ao saneamento. Compromete o direito à liberdade de orientação sexual e coloca em xeque a possibilidade da efetivação dos direitos humanos e coletivos.

Desta forma, a proposta de Desenvolvimento Sustentável, mergulhado no caldo sexista; privatista; de massificação cultural; do novo colonialismo imposto aos países periféricos; da política de desemprego e aniquilamento das leis trabalhistas contidos no caldeirão do neoliberalismo, surge com o objetivo de “ordenar” o ambiente, promovendo seu “equilíbrio” em consonância com o mercado “global”. Portanto, esta proposta é funcional à hegemonia sócio-econômica que degradou o ambiente, tornou a natureza um mero objeto da produção e do consumo, dilacerando, de forma cada vez mais intensa, os valores morais da socialidade humana.

É urgente a unificação das lutas em torno da construção de propostas alternativas anti-capitalistas. E preciso subverter esta (des) ordem mundial, pois os movimentos ecológicos e ambientais por si só, não apresentam mudanças significativas para o meio ambiente, uma vez não explicitam a necessidade das transformações na estrutura complexa da sociedade. Sobre isto, Benjamim(1990:21) comenta:

o movimento ecológico não conseguirá impedir que se renovem, nessa fase expansiva do capitalismo, os velhos traços que determinaram a nossa exclusão: o aumento da dependência, o controle da tecnologia de ponta e da capacidade de inovação, a homogeneização artificial de padrões de produção e consumo, a internacionalização da economia sobre o controle de empresas oligopolistas e assim por diante. Dentro do novo, renova-se o velho, que é a concentração de riqueza e poder, em detrimento da maioria dos homens, mesmo num mundo um pouco mais limpo.

A crise ambiental deixou de ser uma preocupação exclusiva da Ecologia e dos movimentos ambientalistas para ser entendida como uma problemática econômica/política e social. É preciso inserir o movimento ambientalista numa agenda sócio-política que busque uma nova sociabilidade humana, não limitando sua intervenção num campo reformista de propostas que perpetuam o projeto burguês.

Diante da produção em larga escala da escassez, da desigualdade social e da insustentabilidade ambiental, o florescer da inconformidade é eminente. Há sinais de resistência no mundo inteiro, há um leve cheiro de rebeldia no ar.

Os protestos anti-globalização dão indícios de uma longa batalha a ser travada contra o grande capital. É imperativo a articulação entre os movimentos: sindicatos, partidos políticos de esquerda, trabalhadores(as) rurais, sem-terras, sem-tetos, organismos de defesa dos direitos humanos, movimentos feministas, movimentos ecológicos etc. O Fórum Social Mundial, as manifestações em Seattle, em Praga, em São Paulo são prelúdios que anunciam que os movimentos sociais estão vivos, estão tecendo novos sonhos, redesenhando utopias, outra sociabilidade é possível, é urgente. Desta forma, qualquer proposta de desenvolvimento que venha conciliar meio ambiente e mercado é inviável, inverossímil. A proposta para um ambiente sustentado não pode ser pensada fora de alternativas emancipatórias.

BIBLIOGRAFIA

 

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MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: teses sobre Feuerbach. São Paulo: Moraes, 1984.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

Crítica à teoria da justiça como

equidade de John Rawls

 

Maria Alexandra Monteiro Mustafá*

 

  1. 1.    Considerações preliminares sobre a teoria da justiça como equidade

 

A teoria da justiça como equidade, elaborada por John Rawls, surge num contexto liberal, como proposta ético-política que põe em discussão a questão da desigualdade social, sem considerar as bases de fundamentação do modo de produção capitalista.

A concepção de sociedade, presente na teoria rawlsiana, é de que a sociedade é uma cooperativa onde todos produzem e todos ganham neste processo de “cooperação”. No entanto, para Rawls, nesta sociedade existem desigualdades que podem ser minimizadas graças ao “princípio da diferença” que regularia uma sociedade futura, desde que as vantagens obtidas por um grupo social não impliquem em desvantagens para o outro grupo social. Com isto, ambos os grupos – os menos avantajados e os mais avantajados – sairiam ganhando e isto se constituiria num processo de “justiça como equidade”.

Esta pretensão se consolidaria a partir de uma proposta neo-contratualista que resgata o pensamento de Kant, numa perspectiva a – histórica, numa tentativa de oferecer alternativas ao utilitarismo clássico de Bentham e ao neo-utilitarismo, amplamente disseminado nas sociedades capitalistas.

Rawls contrapõe a sua contundente crítica ao utilitarismo e a J autores notoriamente liberais, tais como Nozick e Ackerman, numa tentativa de constituir-se como alternativa ao liberalismo /1 disseminado por estes dois pensadores. No entanto, a discordância entre tais pensadores e Rawls não se constitui uma questão de caráter fundamental, visto que, como afirmado anteriormente, todos se posicionam no âmbito do liberalismo, havendo entre eles uma divergência conceitual, mas não de posicionamento político. Para uma melhor compreensão da teoria rawlsiana, faz-se necessário um resgate das teorias contratualistas e de sua reatualização nos dias atuais, especialmente no que concerne ao contratualismo kantiano. É isto que tentaremos fazer a seguir.

  1. 2.    O Neocontratualismo

O neo-contratualismo floresce neste século como tendência filosófico-política que retoma os conceitos fundamentais da tradição das teorias do contrato desenvolvidas entre o início dos ‘600 e o fim dos ‘700, tendo como principais representantes: Tomás Hobbes, John Locke, Jean Jacques Rousseau e Emanuel Kant.

A idéia básica desta tendência é que o contrato está na origem da sociedade e é o fundamento do poder político. O contrato marca a passagem do estado de natureza ao “estado” social e político. Mesmo se todos os teóricos contratualistas convergem com esta base comum, as suas perspectivas são diversas com relação à natureza do contrato, à definição do estado de natureza e à proposta ideal de organização sócio-política que deve emergir do contrato, dando origem a posturas diversas no interior do próprio contratualismo.

Para os fins deste ensaio, interessa-nos mais de perto, a perspectiva contratualista kantiana na qual o contrato originário, ou pacto social, segundo Nedel (2000:30), “enseja a passagem do estado de natureza, onde qualquer posse é tão provisória, para o estado civil em que posse e propriedade são peremptórias, com a finalidade de possibilitar o exercício do direito natural, através da coação. A constituição do estado civil é dever moral, porque o estado de natureza é de injustiça permanente, de liberdade desenfreada, sem lei externa. Pelo contrato opera-se a renúncia de toda posse particular e liberdade exterior, bem com a união de todas as vontades particulares e privadas de um povo numa vontade comum e pública. Embora seja idéia pura da razão, tem uma realidade objetiva,’ a de obrigar cada legislador a instituir leis como se derivassem da vontade comum de todo um povo, e de considerar cada cidadão como se tivesse dado seu consentimento”.

A retomada das idéias contratualistas conserva a linha teórica de fundo, mas reformula e atualiza os conceitos, no sentido de propor um novo pacto que possa refundar as estruturas da organização política, sublinhando o papel das leis e das constituições. Tomando como referência a teoria dos jogos, o neo-contratualismo se preocupa em estabelecer as regras que deverão orientar o comportamento dos contratantes nas suas relações sociais e políticas que constituem a dinâmica do jogo. Por isto, o neo-contratualismo é uma teoria de caráter precisamente fictício, distante de uma análise realística da sociedade e cria uma situação hipotética na qual sujeitos hipotéticos deverão executar escolhas também estas hipotéticas sobre os princípios que fundamentam as regras a serem estabelecidas.

Em oposição direta ao utilitarismo, o neo-contratualismo se define como teoria deontológica, que reconhece no contrato o procedimento típico, através do qual se constituem os princípios que devem reger a vida comum.

John Rawls, enquanto um dos principais seguidores desta teoria filosófico-política, confere ao neo-contratualismo um caráter ético, através da introdução de princípios de justiça que estão na base das escolhas das regras sociais. Com efeito, a justiça se torna o objeto central da teorização de Rawls que a define em termos de equidade. Graças à importância que tal teoria assume no debate filosófico-político atual, e à originalidade que caracteriza a vinculação ao pensamento kantiano- especialmente por aquilo que se refere às inovações de conceito como “posição originária” e “véu de ignorância” como condições exigidas para assegurar a imparcialidade do sujeito moral – a tomaremos em análise, renunciando assim a outras teorizações da mesma corrente de pensamento.

  1. 3.    A teoria da “justiça como equidade” de John Rawls

 

O debate político-filosófico intensificou-se nos ano (2Q) com a teorização feita por John Rawls, através da sua obra mais famosa – Uma teoria da justiça. A postura do autor é definitivamente contratualista e resgata o pensamento de Locke, de Rousseau e especialmente de Kant, mesmo se podendo encontrar aí elementos de uma figura de ética inspirada em Hobbes.

A influência hobbesiana pode ser identificada quando se entende que a teoria da justiça se insere no âmbito das teorias éticas que privilegiam a discussão não da melhor vida possível para o homem, mas a escolha das regras de colaboração para a convivência social. Em outras palavras, o contratualismo de Hobbes é entendido “como o pacto social celebrado pelos indivíduos entre si onde todos renunciam cabalmente seus direitos naturais e os atribuem a um terceiro. Assim, supera-se o estado de natureza e institui-se o estado social, com a escolha de quem há de representar as pessoas, ou seja, soberano” (Nedel, 2000: 29). Segundo esta interpretação, Rawls teria transformado a teoria do contrato de teoria política em teoria moral, na qual “O contrato se torna apenas mais um artifício lógico, um método construcionista,para esclarecer, explicitar, e aplicar as intenções comuns acerca da justiça” (Abbà, 1995: 115). Em outras palavras,visão contratualista, pelo fato de ser essencialmente de natureza ética, utiliza o artifício contratual para determinar e justificar as regras de justiça, escolhidas por sujeitos racionais e livres.

Aqui se pode perceber uma outra dimensão da tradição hobbesiana, isto é, a preocupação da definição das características dos sujeitos contratantes. Todavia, Rawls recupera claramente de Kant o conteúdo desta definição, quando descreve os sujeitos como racionais,livres e iguais, e considera estas condições como indispensáveis  à realização do acordo ou contrato na posição originária. A posição originária, portanto, não é somente um conceito de base kantiana, mas reflete exigências, derivadas da postura hobbesiana, de definir as condições ideais para que sujeitos entrem em acordo sobre consideradas justas. A idéia mesma de posição originária pode ser entendida como aquela do estado de natureza em Hobbes. Todavia, Rawls sobre este aspecto se aproxima muito mais ao pensamento de Locke[39] e de Rousseau[40], já que não se preocupa em analisar a situação do homem antes do contrato especificamente de assegurar condições iguais para que o contrato aconteça e seja estabelecido em comum acordo com todos.

Rawls define a sua teoria como essencialmente deontológica, segundo a qual a ação moral é conforme as normas, de justiça, e se opõe a teorias teleológicas, realizando em modo especial uma forte crítica ao utilitarismo que vem entendido por ele como a teoria cujo critério de Justiça, das escolhas e do agir, sendo maximização de um valor ou de um fim,se constitui como critério não moral, mas reduzido ao útil ou ao bem-estar social.

As motivações filosóficas e éticas extraídas do pensamento de Kant reconduzem à idéia de que os princípios morais são objeto de escolha racional, de pessoas livres e iguais e, por isto, não e encontram em uma situação de heteronomia, ou seja, condicionadas por desejos ou movidas por interesses particulares. Só nesta condição de autonomia, as pessoas estão em grau de definir as regras morais que devem guiar a sua conduta na comunidade.

A adoção do conceito kantiano de autonomia induz Rawls a idealizar uma situação hipotética por ele entendida como posição originária, caracterizada por um véu de ignorância, isto é, pela completa desinformação sobre suas posições na sociedade e sobre os fatores históricos ou sociais que possam condicionar os seus interesses. Em outros termos, a posição originária constitui o ponto de vista do qual o eu noumênico[41] o mundo e pode escolher em’ modo imparcial e livre os princípios para a formação de uma sociedade bem ordenada sobre princípios da justiça como equidade.

Rawls justifica sua interpretação sobre o pensamento de Kant nestes termos: “Creio que Kant defende a idéia de que uma pessoa age autonomamente, quando os princípios da sua ação são escolhidos por ele como a expressão mais adequada possível da sua natureza de ser racional, livre e igual. Os princípios em base aos quais age não são adotados em função da sua posição social ou dos seus dotes naturais, ou em função do particular tipo de sociedade em que vive, ou daquilo que lhe ocorre querer. Agir em base a estes princípios significaria agir em modo heterônomo. O véu de ignorância priva a pessoa na posição originária do conhecimento que a mantém em grau de escolher princípios heterônomos” (Rawls, 1983: 216).

A posição originária é uma situação hipotética que poderia representar, como já dissemos, a substituição do “estado de natureza” nas teorias contratualistas modernas e a pretensão de assegurar a imparcialidade, já que desvinculamos os sujeitos dos seus condicionamentos históricos, isto é, pressupondo a ignorância sobre as suas posições na sociedade, admite a possibilidade da escolha de princípios universais, não correspondentes a interesses particulares.

Com este artifício, Rawls se distancia de uma visão realista e fundamenta sua teoria sobre a base de uma concepção abstrata de homem desvinculado da vida concreta, do concreto sócio-político-cultural e econômico das suas relações de classe e dos vínculos comunitários e familiares. Pode-se dizer, antes de tudo, que esta concepção de homem abstrato e a – histórico vai de encontro a suas pretensões de consideração da pessoa moral como pessoa racional, já que na sua concepção, a capacidade de planejar a própria vida vai acontecer sem o referimento à realidade.

Além disto, a própria concepção de sujeito moral está comprometida no sentido de que se o véu de ignorância pressupõe a ausência de qualquer concepção de valor e qualquer noção de bem, isso priva as pessoas da capacidade de realizar uma verdadeira escolha; as pessoas não colocam em ato a sua faculdade de decidir à base de convicções éticas e por isto não se percebem como sujeitos de conduta moral, capazes de serem virtuosos e não somente de agir segundo as regras estabelecidas. Ao privilegiar a imparcialidade como condição capaz de assegurar a igualdade e como forma de alcançar princípios universais, Rawls despreza a realidade objetiva e subjetiva, descuida da história e, sobretudo, do homem na sua globalidade, na sua identidade e na sua consciência de ser historicamente situado.

A este propósito, convém ressaltar as reflexões de M. Toso que se pergunta: “Como é possível, partindo do ‘véu de ignorância’ dos contraentes, desprovidos de qualquer sistema de valores e de bens sociais objetivos para superar a heteronomia e o utilitarismo, conseguir a adesão de uma figura de sociedade assim qualificada e caracterizada como aquela liberal social? confundindo o plano da ética geral, dos princípios fundamentais e gerais, com o plano da ética particular” (Toso, 1989: 72).

Estas considerações nos conduzem à discussão sobre os aspectos mais controversos na teoria rawlsiana: aquele do primado do justo sobre o bem e aquele da separação entre ética pública e ética privada.

Os autores, que dão sustentação à crítica do primado do justo sobre o bem, apresentam pontos de vista diversos: alguns entendem que o neo-contratualismo rawlsiano afirma o primado do justo sobre o útil e não sobre o bem; outros reconhecem uma concepção implícita do bem no interior da justiça como equidade, a qual se revela na idéia de uma justiça substantiva; e, finalmente, outros ainda admitem a recusa total por parte de Rawls de defender uma teoria do primado do bem, dada a dificuldade de alcançar um consenso sobre as concepções de bem nas sociedades modernas, caracterizadas pelo pluralismo.

Antes de tudo, Rawls admite que o justo e o bem são os dois conceitos da ética. Todavia ele considera que somente as teorias teleológicas têm o primado do bem sobre o justo e, entre estas, o utilitarismo é aquela que coloca em relação às duas noções na forma mais simples, na medida em que identifica o justo com a maximização do bem. A crítica contra o utilitarismo incide sobre o fato de que este, ao definir o bem como satisfação de um desejo racional, toma em consideração o conceito de bem como valor pertencente ao senso comum e assim generaliza a concepção daquilo que poderia ser a escolha racional de um só homem.

Além disto, ao afirmar que a justiça requereria a condivisão do maior bem possível à maioria, o utilitarismo justifica a perda da liberdade de poucos para compensar a maior vantagem de outros, o que é inconcebível na teoria de Rawls que dá a prioridade ao direito à liberdade como primeiro princípio da justiça.

Ora, aqui se pode constatar que Rawls leva em consideração uma noção redistributiva de bem, como sinônimo de útil, e desconsidera todas as outras teorias teleológicas entre as quais a heudaimonia aristotélica, que defende a idéia do bem como realização de um fim, como felicidade ou a vida boa. Todavia, como reconhece Antonio Da Re, “sempre em ‘uma teoria da justiça’ a separação entre justo e bem vem ulteriormente reproposta com uma intencionalidade que vai além da polêmica com o utilitarismo e da simples identificação do bem com o útil” (Da Re, 1998:46).

Como dissemos anteriormente, Rawls define a sua teoria como teoria substantiva da justiça e, neste sentido, se pode falar de uma concepção implícita do bem. Com efeito, a idéia de justiça como equidade se fundamenta sobre dois princípios básicos que se inspiram nos valores de liberdade (prioritariamente) e da igualdade. Os dois princípios, segundo Rawls, são o fruto de um acordo entre pessoas morais, cujo interesse comum “não é o de entrar a fazer parte de uma dada sociedade ou o adotar uma determinada forma de governo, mas o aceitar certos princípios morais” (1981: 31). Estes são apresentados nos seguintes termos: “1- cada pessoa tem um igual direito à mais extensa liberdade fundamental compativelmente com uma liberdade similar para os outros; 2- as desigualdades sociais e econômicas devem ser combinadas em modo de ser a) racionalmente previstas em vantagem de cada um, b) relacionadas a cargos e posições abertas a todos “(1981: 66).

Entre estes princípios o primeiro tem prioridade sobre o segundo e se refere aos direitos civis e políticos entendidos como as liberdades fundamentais que se traduzem politicamente como direito ao voto – ativo e passivo – liberdade de palavra e de reunião, de consciência e de pensamento, ·direito à propriedade pessoal, inadmissibilidade de prisão e detenção arbitrárias. O segundo princípio tem como objeto a distribuição da riqueza e da renda, a estrutura dos organismos caracterizados por diferenças de autoridade e responsabilidade e pressupõe que as diferenças e desigualdades na distribuição de renda não devem provocar dano a ninguém, porque em tal caso seriam injustas; são, porém, admitidas se provocam vantagem não a poucos ou a muitos, mas a todos, e em particular aos menos avantajados.

Do ponto de vista dos pensadores que se podem definir comunitaristas, isto revela não uma concepção parcial, mas uma precisa concepção do bem, isto é uma concepção liberal individualista. Em outras palavras, aquilo que vem apresentado como um mero procedimento de tipo formal que torna possível a formulação dos princípios de justiça, na realidade se baseia em uma concepção antropológica e política, na qual o homem, enquanto ser racional, é livre de direcionar o próprio plano de vida como melhor lhe convém, e a política constitui o nível que estabelece um status comum de igual cidadania, através da democracia constitucional. Neste sentido, a principal tese de Rawls consistiria em defender a idéia da sociedade liberal, através da configuração de uma democracia constitucional. Assim não se trataria de uma teoria neutra ou ausente de uma concepção do bem, mas de uma teoria consistentemente fundamentada em uma antropologia e em uma filosofia política com tendência teórica bem definida e traduzida nos termos do liberalismo individualista. Exatamente por isto, o argumento fundamental da crítica dos comunitaristas consiste em desmascarar a ilusoriedade de uma pretendida neutralidade do justo.

Aqueles que afirmam a inexistência de uma concepção sobre o bem se baseiam na idéia defendida pelo próprio Rawls, de não levar em consideração as diversas concepções de bem implícitas nas doutrinas religiosas, filosóficas ou políticas, que constituem o mundo dos valores das pessoas na posição originária, isto é no momento da escolha dos princípios de justiça. Estamos, portanto, diante de uma teoria procedimental que, reconhecendo no pluralismo a dificuldade de alcançar um consenso sobre a noção de bem, privilegia o valor da liberdade, sem, porém, dar-lhe a fundação ética necessária, e nem mesmo uma justificativa da sua razão de ser. Trata-se de uma liberdade entendida em sentido formal, ou como afirma M. Toso, “uma liberdade pela liberdade, uma liberdade sem abertura e adesões a bens humanos concretos e sem fundamento e não pode constituir, em última análise, uma base moral coerente para o agir sócio-político construtivo de umasociedade justa” (Toso, 1989: 71).

Além disto vale considerar que nem estes princípios nem os critérios de racionalidade que definem a posição originária constituem objeto de escolha por parte dos contraentes. Este fato pode ser interpretado como uma recusa à adoção de uma concepção de bem ou, por outro lado, como uma opção por uma teoria parcial do bem.

O fato é que, na sua obra Uma teoria da justiça, Rawls se atribui a tarefa de elaborar uma teoria substantiva da justiça, mas se defronta com a dificuldade do pluralismo em relação às concepções do bem, problema que tenta enfrentar no seu livro posterior Liberalismo Político. Todavia, a sua tentativa de resolver a questão do pluralismo se mostra insuficiente, favorecendo o surgimento de críticas que o acusam de manter a dicotomia entre público e privado e a defesa de uma neutralidade do Estado em relação a concepções de bem definidas como particulares.

A dicotomia entre público e privado se explicita na condição de véu de ignorância que caracteriza os contraentes na posição originária, já que, como temos visto, esta prescinde das concepções de valores dos indivíduos. Isto significa que as concepções particulares de bem são excluídas no processo de escolha de princípios universais que serão adotados pelo Estado como regra constitucional. As pessoas privadas, enquanto seres racionais e portadores de uma própria concepção de bem, são livres de agir conforme esta concepção, quando saem da situação de véu de ignorância, mas têm a obrigação de respeitar os princípios universais anteriormente acordados.

Com isto, o Estado se abstém de adotar uma concepção de bem particular e assim é salvaguardada a sua neutralidade. Em última análise, coloca em realce uma concepção de justiça universal e pública, à qual todos devem obedecer, e uma multiplicidade de concepções particulares de bem que regula a vida privada de cada um. Trata-se, portanto, de uma postura ética que, na sua relação com a política, prescinde da condição de sujeito moral, já que elimina a possibilidade de participação do homem com os seus valores e as suas convicções morais, no momento da definição dos princípios e deixa total liberdade para sua expressão nas relações privadas, como se estes fossem separados da vida pública e política.

Segundo Rawls, o pluralismo se põe como problema devido à dificuldade de encontrar um consenso sobre os princípios de justiça entre as diversas doutrinas compreensivas. Por isto, em Liberalismo Político o autor apresenta como solução desta dificuldade a possibilidade de um consenso por intersecção, que corresponde à aceitação de princípios de justiça, fundados em razões não coincidentes, ao invés do consenso strictu sensu, que pressuporia a unificação das razões que fundamentam os respectivos princípios.

Segundo a interpretação de João Rosas, a postura rawlsiana considera o pluralismo por razões pragmáticas, como uma problemática do contexto histórico atual e não por razões filosóficas e isto não lhe permite chegar ao “eixo central da Filosofia Moral contemporânea e às disputas já clássicas sobre a natureza dos conflitos de valores e obrigações morais” (Rosas, 1997: 555), o que aconteceria se Rawls elaborasse o estatuto teórico do pluralismo.

Com efeito, a desvalorização da filosofia é também registrada por Höffe, que identifica em Rawls a tentativa de colocar sobre o mesmo plano a Weltanschauung religiosa, filosófica e política. As doutrinas compreensivas articulam valores e virtudes no interior de um sistema, mas ao subscrever todas como Weltanschauungen, Rawls “modifica a competência (ou tarefa) de uma filosofia da democracia” no sentido que “deve requerer aquela renúncia que está no centro de Liberalismo Político, isto é não pode mais admitir que a filosofia vá em busca de Weltanschauengen verdadeira ( true doctrine)”. Isto significa negar à filosofia o papel de “juiz no sentido kantiano de instância crítica” e a capacidade de refletir “sobre como uma sociedade, apesar da presença de Weltanschauengen rivais, alcance princípios de justiça comuns e, A partir disto, assegura a estes seja uma legitimidade, seja confins precisos”. (Höffe, 1995: 47).

A ausência do fundamento filosófico na reflexão rawlsiana conduz à adoção do consenso por intersecção sobre uma concepção política (e não mais moral) de justiça. O consenso por intersecção se baseia na idéia de que as doutrinas compreensivas são caracterizadas por uma racionalidade, entendida como capacidade de ordenar fins e meios necessários à consecução dos fins, e de uma razoabilidade, que consiste na disposição à cooperação e implica a capacidade do sentido de justiça e a aceitação do desacordo.

Segundo Rosas é nesta base que Rawls encontra justificativas para considerar a “justiça como equidade” objeto de um consenso por intersecção: “Na situação inicial de escolha, as partes devem selecionar os princípios que especificam o conceito de justiça, a partir de um menu fornecido pela história do pensamento político[…]. Tanto a descrição da posição originária como os princípios de justiça que os representantes escolherão devem ser avaliados por nossas convicções mais profundas. O objetivo deste procedimento é, segundo Rawls, aquele de alcançar um equilíbrio reflexivo entre a constituição hipotética e as nossas convicções” (Rosas, 1997: 560).

Todavia, segundo o mesmo autor, Rawls não resolve de modo satisfatório o problema do pluralismo, no sentido de que uma sociedade bem ordenada, entendida como sociedade democrática, deve conviver com o pluralismo e por isto admitir o desacordo também sobre a concepção de justiça, o que é incompatível com a proposta de justiça como equidade. Em outras palavras, o consenso por intersecção é impossível em uma sociedade democrática que, por sua natureza é essencialmente pluralista. Além disto, a introdução do problema do pluralismo nas sociedades democráticas requer que se evidencie a questão do próprio conceito de sociedade bem ordenada e não apenas o tema da justiça, isto é, exige a consideração dos fins e não só dos procedimentos ou dos conceitos referentes aos meios necessários para alcançar estes fins. .

Para entender melhor o contexto da discussão sobre o pluralismo faz-se necessário analisar o percurso feito entre o primeiro livro, Uma teoria da justiça e o segundo livro, Liberalismo político. Como dissemos anteriormente, a passagem entre uma obra e outra é caracterizada pela mudança de postura ética para uma postura predominantemente política.

No primeiro livro, a dimensão ética’ se define nas condições de escolha dos dois princípios de justiça, e a dimensão política se refere à escolha das instituições conforme aos respectivos princípios. Esta última se realiza com a saída dos indivíduos da posição originária, com a eliminação do véu de ignorância e com o empenho para a construção de formas institucionais que sejam em conformidade aos dois princípios de justiça. a procedimento consiste em aplicar tais princípios às instituições sociais, políticas e econômicas em maneira similar àquela adotada pelas democracias constitucionais. Neste processo, podem ser identifica das três fases consecutivas: a fase constituinte, que estabelece um status estável comum de igual cidadania e realiza a justiça política; a fase legislativa, que define as políticas sociais e econômicas, em condição de igualdade de oportunidade e de liberdade, dando a prioridade aos mesmos avantajados; e a fase aplicativa, sob a responsabilidade de juízes e administradores que adequam as normas aos casos particulares, o que implica o respeito da parte dos cidadãos.

O objetivo principal de Uma teoria da justiça é aquele de conciliar justiça e liberdade, e assim responder aos problemas considerados fundamentais nas sociedades liberais e democráticas modernas. O autor parte da idéia de que “a sociedade é uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que, nas suas relações recíprocas, reconhecem como vinculadas certas normas de comportamento e que, para a maior parte, agem de acordo com isto” (Rawls, 1983: 22). Neste sentido, a sociedade é um sistema de cooperação que tem como objetivo avantajar aqueles que dela participam. Todavia, esta sociedade é também marcada por conflitos de interesse. Daí se deduz a necessidade da existência de princípios de justiça que possam regular a distribuição da riqueza, causa principal do conflito de interesses. Por isto, “uma sociedade é bem ordenada quando não somente é voltada a promover o bem-estar dos próprios membros, mas é também regulada em modo efetivo por uma sociedade em que 1) cada um aceita e sabe que outros aceitam os mesmos princípios de justiça e 2) as instituições fundamentais da sociedade satisfazem geralmente, e em modo genericamente reconhecido, estes princípios” (Rawls, 1983: 22). Porém, segundo Rawls, as sociedades existentes são raramente bem ordenadas, especialmente porque não existe um consenso sobre o que é justo ou injusto.

Convém então perguntarmo-nos que coisa é justo ou injusto para Rawls. A tal pergunta ele responde que o justo e o injusto não correspondem a situações de igualdade ou desigualdade, porque estes são “fatos naturais”; as desvantagens econômicas, sociais, culturais são manifestações da distribuição natural e por isto não são justos nem injustos em si. A injustiça ou justiça se encontra no modo em que as instituições sociais tratam estes fatos. As sociedades aristocráticas ou de castas, por exemplo, são injustas porque as suas instituições reforçam o ordenamento injusto, mas como o ordenamento social não é imutável, os homens podem condividir princípios eqüos que se traduzam em benefício comum.

Tais reflexões nos induzem a pensar que a teoria de Rawls não é de forma alguma teleológica. Com efeito, ele elabora um modelo de sociedade que pretende resolver os problemas da injustiça nas sociedades modernas e o define “justiça como equidade”. Em tal perspectiva a “sociedade é interpretada como uma empresa cooperativa para a vantagem recíproca. A estrutura fundamental é um sistema público de regras que definem um esquema de atividades que induz os homens a agir juntos de modo tal que possam produzir a maior quantidade de benefícios e que assegura a cada um certas pretensões reconhecidas como uma quota de produtos” (Rawls, 1983: 99).

Partindo destas concepções e coerentemente com sua visão liberal, ele admite a existência dos desavantajados como uma coisa inerente à organização social, onde o papel da justiça consiste em “reparar” estas desigualdades, no sentido de aumentar os benefícios a favor dos menos avantajados, para reduzir a diferença entre os membros da sociedade.

Para alcançar este objetivo, Rawls se serve do princípio de separação e daquele de diferença. Estes princípios são complementares e interdependentes. a primeiro se refere às condições necessárias para que se estabeleça a igualdade de tratamento e de oportunidade para todas as pessoas, o que significa prestar maior atenção àqueles que são menos dotados ou em posição social menos favorável. Isto corresponde a investir nos desavantajados, porque as desvantagens são imerecidas. Materialmente isto é possível, por exemplo, se investe na educação dos menos inteligentes ao invés de naquela dos mais dotados. Já que as desvantagens são imerecidas, a separação constitui uma obrigação moral da sociedade. Neste ponto, Rawls se refere à idéia democrática da Revolução francesa: liberdade, igualdade, e fraternidade. Ele afirma que esta última foi subvalorizada pelas sociedades democráticas e que só um sistema de cooperação e de reciprocidade pode assegurar o bem-estar de cada um.

O princípio da diferença “requer que as maiores expectativas dos mais avantajados contribuam com as perspectivas daqueles que o são menos” (Rawls, 1983: 93). Aqui se trata, portanto, de colocar em ato os princípios da justiça distributiva, no que se refere à distribuição da riqueza nas relações entre o todo e as partes, mas Rawls se limita a especificar o dever do Estado em modo muito restrito, como garantia da ordem pública, a segurança ou providências eficazes para a saúde e a incolumidade pública, promovendo o interesse comum. Em síntese, compete às instituições assegurar a todos, em modo igual, as condições necessárias para realizar os próprios objetivos. O seu ponto de vista é de que existe uma igual cidadania, de modo a agregar as expectativas de quem está pior e através das estruturas fundamentais da sociedade regular a distribuição dos benefícios da cooperação social.

As modificações apresentadas no segundo livro reafirmam a idéia de uma concepção política da justiça em termos de democracia constitucional, mas aprofundam os princípios que podem justificar politicamente tal postura. Em primeiro lugar, ele reafirma a autonomia desta concepção em relação a qualquer doutrina compreensiva, já que esta assegura a adesão das diferentes doutrinas. Isto significa a reafirmação da neutralidade do Estado, na medida em que este não adere a uma doutrina compreensiva particular, mas adota como modelo uma concepção de justiça formulada em base a conteúdos da cultura política comum e por isto capaz de ser aceita por todos os cidadãos.

A natureza política do segundo livro é definida já no início, quando Rawls apresenta as motivações básicas da sua reflexão, partindo do pressuposto da ausência de um consenso sobre estruturas políticas nas sociedades democráticas: “A história do pensamento democrático dos últimos dois séculos mostra claramente que não existe, hoje, um acordo sobre o modo como se deveriam organizar as instituições de base de uma democracia constitucional, se quer que satisfaçam equos termos de cooperação entre os cidadãos considerados livres e iguais” (Rawls, 1993: 24).

Por isto – continua Rawls – “o liberalismo político está à busca de uma concepção política da justiça que possa conquistar, em uma sociedade de que é regra, o consenso por intersecção de doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis” (Rawls, 1993: 28). Neste sentido, a concepção política da justiça se apresenta como teoria autônoma, o que significa, para uma parte constitutiva essencial que se adapta a várias doutrinas compreensivas razoáveis, as quais têm uma existência duradoura na sociedade por essa regulada, e encontra nestas uma base de sustentação; e isto significa que pode ser apresentada sem dizer ou saber ou hipotetizar a quais destas doutrinas pertença, ou em qual encontre uma base de sustentação” (Rawls, 1993: 30).

Com isto permanece clara a tese do Estado neutro, porque não adere a uma particular concepção de justiça e porque não interfere nas concepções particulares do bem de cada cidadão, já que estes são livres de manifestá-las nas suas relações privadas. A justiça, portanto, não é virtude dos indivíduos isolados, mas objeto de aplicação de domínio público, isto é do Estado, o que confirma uma concepção de justiça essencialmente política. Deste ponto de vista, o conceito de política se opõe expressamente àquele da tradição filosófica clássica, que pressupõe a participação do cidadão livre e constitui a atividade por excelência na vida da cidade. Em Rawls, a participação se reduz à escolha dos princípios de justiça e, à obediência das regras extraídas destes princípios. Tal participação pode ser considerada ainda mais reduzida, se admitimos que a escolha tem as características de uma ficção, no sentido de que os sujeitos entram em acordo sobre regras de justiça, cujos princípios estão já previamente estabelecidos. Como afirma o próprio Rawls sobre a determinação dos princípios de justiça; estes funcionam como imperativos categóricos, no sentido kantiano, porque orientam o agir e são independentes dos objetivos particulares de cada um.

Os requisitos para uma concepção política da justiça consistem essencialmente no fato de que o objeto da justiça como equidade é a estrutura básica da sociedade, entendida como “o complexo das principais instituições políticas que combinam em um sistema unificado de cooperação social que estende de uma geração à outra” (Rawls, 1993:29). Estas estruturas básicas são responsáveis pela determinação das oportunidades de vida dos indivíduos na medida em que regulam a distribuição dos bens sociais primários, tais como a liberdade, as oportunidades, a renda e a riqueza. O papel dos cidadãos é aquele de respeitar as regras acordadas e de avaliar a validade e suficiência da concepção publicamente aceita: “Esta concepção fornecerá um ponto de vista publicamente reconhecido pelo qual todos os cidadãos poderão examinar, um de frente ao outro, se as suas instituições políticas e sociais são justas, o que Ihes colocará em grau de fazê-Io invocando aquelas que entre elas são publicamente reconhecidas como razões válidas e suficientes que esta mesma concepção tenha identificado” (Rawls, 1993: 29).

  1. 4.    Dificuldades ético-políticas da “Teoria da Justiça como Equidade”

 

No seu conjunto, a proposta moral e política de Rawls constitui uma resposta à problemática por ele considerada fundamental nas sociedades democráticas, isto é, a ausência de um consenso sobre o modo em que se deveriam organizar as instituições de base de uma democracia constitucional de forma justa e equa.

Esta postura não leva em consideração a experiência histórica do Estado social enquanto tentativa das respectivas sociedades ao realizar em modelo consensual de conciliação entre liberdade e justiça. Com efeito, nas suas obras, Rawls quase nunca se refere nem ao Estado social, nem ao socialismo enquanto tal e por isto se pode dizer que as suas propostas se referem estritamente a um modelo de sociedade liberal. Esta recusa em considerar o Estado social e o socialismo, ao nosso entender, indica a negação destes modelos de Estado como proposta ideal da organização social: não se trata apenas de uma recusa do ponto de vista histórico, isto é, da análise da experiência concreta do Estado social e do socialismo real, em função de uma postura abstrata e idealista, mas revela uma escolha política que se apresenta como alternativa ao modelo de Estado social.

Antes de tudo, podemos dizer que a própria lógica do neocontratualismo, enquanto postura teórico-filósofica, é aquela de propor um novo acordo social, um novo contrato, em base à constatação de que a forma de organização social precedente é insuficiente e indesejável. No caso específico da teoria rawlsiana, o modelo precedente é aquele do Estado social, mas ele não se coloca o objetivo de reformá-Io ou de reprojetá-lo. Com efeito, tomando como base os princípios da justiça, da democracia e também, marginalmente, da solidariedade, o autor poderia evidenciar que estes são os princípios já idealizados pelo Estado social. Ao invés disto, ele opta por uma consideração abstrata e a – histórica, como se o debate sobre estas temáticas encontrasse eco somente ao nível das teorias políticas. Mas torna presente as dificuldades do pluralismo e aquelas de encontrar um consenso sobre as doutrinas compreensivas e, assim mesmo, se põe como objeto de suas considerações o ponto central do debate atual, caracterizado pela relação entre ética e política, não o contextualiza no âmbito do Estado social.

Todavia, não se pode negar que sua reflexão teórica não discuta as problemáticas centrais do Estado social, isto é, a justiça e a democracia. O problema que emerge então é a natureza desta reflexão que, antes de tudo, parece ser centrada na necessidade de reformulação dos procedimentos necessários a uma sociedade constitucionalmente democrática, ou mesmo em uma postura ética procedimental na qual a relação com a política vem colocada de maneira formal e não substancial.

Tomando as devidas distâncias de um referimento histórico realístico por quanto se refere aos princípios do Estado social, o mesmo se verifica por quanto se refere ao conteúdo do consenso, isto é, o modo como se deveriam organizar as instituições de base da sociedade democrática. É evidente a ausência de referimento às organizações sociais, econômicas e políticas que colocam em ato os princípios básicos do Estado social através das estruturas administrativas e as medidas de distribuição da renda ou de promoção da democracia.

Se tomamos em análise a postura rawlsiana sobre aquilo que consideramos os princípios básicos do Estado social veremos que, naquilo que se refere à visão de democracia – ponto central de sua reflexão – a chave das divergências se encontra exatamente na conceituação. A visão defendida por Rawls se distancia daquela idealizada pelo Estado social, entendida como valor que realiza os direitos civis, políticos e sociais e que constitui o eixo propriamente dito das relações sociais e das relações que se estabelecem entre cidadão e Estado. Enquanto valor, a democracia se apresenta como modo de vida que caracteriza a convivência social e não pode ser desvinculada do referimento aos fins, ao telos e ao ethos da comunidade. Por isto os princípios que a fundamentam não podem ser vistos apenas como pontos de referimentos formais, como faz Rawls, mas como conteúdo essencial do mundo vital. Rawls tem a pretensão de assegurar a conduta moral dos indivíduos, através da definição prévia de princípios, também estes morais, mas a dificuldade reside na não consideração dos fundamentos, dos valores que inspiram estes princípios, na exclusão do mundo vital e com isto na impossibilidade do homem-cidadão colocar-se como sujeito moral.

Não existem novidades na definição dos direitos civis e políticos que correspondem àqueles já estabelecidos nas sociedades liberal democráticas. Estes são entendidos em termos de igual cidadania e buscam assegurar a liberdade como valor prioritário. A liberdade é discutida no âmbito da controvérsia da liberdade positiva ou negativa, mas especialmente em relação às restrições legais e constitucionais. Para Rawls, a liberdade é “uma certa estrutura das instituições, um certo sistema de normas públicas que definem direitos e deveres [. ..] É constituída por três elementos: os agentes como seres livres, as restrições ou limitações de que são livres, e aquilo que são livres de fazer ou não fazer” ( Rawls, 1983: 176-177).

Esta é uma compreensão da liberdade como algo formal e não enquanto valor. O próprio Rawls estabelece a diferença quando afirma que “a liberdade e o valor da liberdade são distintos no seguinte modo: a liberdade é representada pelo sistema global das liberdades de igual cidadania, enquanto o valor da liberdade para as pessoas e os grupos é proporcional à sua capacidade de promover os próprios fins no interior da estrutura definida pelo sistema. A liberdade enquanto igual liberdade é a mesma para todos; […]. Mas o valor da liberdade não é o mesmo para todos. Alguns têm maior autoridade e riqueza e, portanto, maiores meios para alcançar seus objetivos” (Rawls, 1983: 178). Aqui se evidencia a tendência já assinalada na teoria rawlsiana de estabelecer uma dicotomia entre público e privado. A liberdade, enquanto valor, recai no âmbito do privado e é delimitada pelas possibilidades oferecidas pela liberdade definida em âmbito público.

Neste sentido, o valor da liberdade é intimamente vinculado à racional idade, à capacidade de desenvolver um plano de vida próprio, que incluem as concepções do bem, mas ao mesmo tempo essa é determinada pelas condições objetivas que permitem ou não a realização deste plano de vida, e aqui entram em jogo as regras de convivência, o princípio de diferença e os procedimentos estruturais concernentes à justiça social. Visto nestes termos, o valor da liberdade não fundamenta o direito à Iiberdade, assim como os valores do homem livre não fundamentam a legislação do homem cidadão. A dicotomia entre o público e privado se estende à condição do homem como indivíduo e como cidadão. Não existindo continuidade entre um e outro, não se pode esperar na realização de planos de vida, que pressupõem um homem como ser unitário.

Por isto, o conceito de liberdade rawlsiano não só não realiza a democracia, mas também não se aplica à solução dos problemas das sociedades liberal-democratas, porque não responde à necessidade de identidade que caracteriza as sociedades atuais; não cria nem mesmo instrumentos de participação que favoreçam a inserção do cidadão no âmbito da política em modo a transformar a política em uma atividade por excelência da vida social.

Além disto, a liberdade ao construir o ponto de partida da sociedade idealizada por Rawls, identificada na escolha dos princípios de justiça, apresenta dois problemas fundamentais. O primeiro se refere à condição de autonomia, expressa no “véu de ignorância” e requerida pela posição original, que coloca entre parênteses a condição de seres conscientemente dotados de vontade. O segundo problema diz respeito à base mesma dos princípios de justiça e aos sujeitos sociais que concorrem à sua definição. Segundo as propostas do consenso por intersecção, estes princípios emergem de uma síntese das teorias do pensamento político e sugerem a idéia de conter os pontos comuns de uma cultura política, também esta entendida como comum. Mas a quem se pode atribuir a tarefa da síntese? Parece que aqui se encontra o ponto fundamental de divergência entre Rawls e Habermas, no sentido de que este último propõe um consenso sob a base de um diálogo, no qual todos os participantes tenham igual direito à argumentação. Rawls, ao contrário, evidencia a importância das estruturas que possam assegurar os direitos de cidadania.

Por quanto se refere à justiça social, Rawls a considera em termos de “equidade” e fundamenta a sua reflexão baseando-se nos princípios de separação e de diferença, os quais orientam a determinação da divisão, das vantagens e subscrevem um acordo sobre a correta distribuição das quotas, isto é, dos benefícios e das perdas da cooperação social. Admitindo, porém que as desigualdades são fatos naturais e não merecidos, é tarefa da sociedade realizar a justiça social: “É a estas desigualdades, que provavelmente pertencem de modo inevitável à estrutura fundamental de toda sociedade, que devem ser, antes de tudo, aplicados os princípios da justiça social. Estes princípios regulam depois a escolha de uma constituição política e dos principais elementos do sistema econômico e social. A justiça de um esquema social depende essencialmente do modo em que são repartidos os direitos e deveres fundamentais, das oportunidades econômicas e das condições sociais nos vários setores da sociedade” (Rawls, 1983: 24).

Antes de tudo, a justiça vem considerada como “o primeiro requisito das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento” ( Rawls, 1983: 21), e o critério daquilo que é justo vem definido no tratamento das desigualdades. Estas considerações definem o caráter essencialmente procedimental do tipo de justiça de que fala Rawls. A postura adotada se distancia de uma interpretação das desigualdades como fenômeno social e histórico, enraizado na questão social, que é a tese central do Estado social. Assim, a justiça social não se põe como resposta aos problemas da questão social, e toda a sua teorização se distancia de qualquer referimento às determinações sócio-político-econômicas das desigualdades. O que importa para Rawls é a igual cidadania e por isto a discussão se concentra nas formas legislativas e constitucionais que garantem os direitos.

Quando fala de justiça como eqüidade, Rawls se refere exatamente a esta igual cidadania e por isto não se refere necessariamente à teoria aristotélica da justiça, segundo a qual eqüidade significa correção de leis não conformes à justiça: “A natureza mesma da Eqüidade é a retificação da lei onde esta se revela insuficiente pelo seu caráter universal” (Aristóteles, Ética a Nicomaco V, 14, 1137 b 26). Apesar disto, não se pode negar que, mesmo se não o admite, Rawls propõe uma justiça como eqüidade que, em última análise, é uma proposta de reparação, de correção das leis consideradas injustas, e por isto se aproxima à concepção aristotélica.

Em conformidade ao que acabamos de afirmar, podemos dizer que ele utiliza também os conceitos de justiça distributiva e de justiça comutativa e, por quanto se refere à justiça social, podemos dizer que utiliza um conceito frágil. Isto se explica pelo fato de que a sua teoria considera os objetos específicos da justiça distributiva, isto é a distribuição dos bens comuns e as condições em que esta se verifica, ou melhor, as relações entre o todo e as partes, e considera ainda as relações de ganho e perda entre os privados. Considera também que os bens comuns são fruto da colaboração social, mas não se preocupa com as relações entre as classes ou sujeitos coletivos, objeto da questão social, e nem mesmo coloca em discussão as causas estruturais que determinam as desigualdades, o que conduziria a uma revisão não apenas das estruturas legislativas, mas também das estruturas econômicas e da natureza das relações sociais.

Partindo deste raciocínio, se a existência dos mais avantajados e dos menos avantajados é um fato natural, não é necessário modificar as instituições de modo a promover a eliminação ou evitar as desigualdades; faz-se necessário reduzir estas últimas e favorecer a distribuição em base ao critério da reciprocidade, em conformidade à teoria econômica (teoria dos jogos), que estabelece a regra do maximin. Segundo esta regra “é preciso observar o sistema do ponto de vista do indivíduo representativo mais desavantajado”; com isto “as desigualdades são permitidas quando maximizam ou, ao menos, contribuem geralmente a melhorar, as expectativas de longo período do grupo menos afortunado da sociedade”. Em outras palavras, “a regra do maximin indica que se deve classificar as alternativas segundo o seu pior resultado possível: devemos adotar a alternativa cujo pior resultado é superior ao pior resultado das outras” (Rawls, 1983:136-138).

Esta regra pressupõe que a satisfação das maiores expectativas dos mais avantajados não resulta necessariamente na perda por parte dos menos avantajados, mas na medida em que o sistema é visto na sua globalidade “cada aumento deste tipo vai em vantagem destes últimos” já que “as maiores expectativas dos privilegiados cobrirão provavelmente os custos da formação profissional, e encorajarão melhores prestações, contribuindo deste modo para o bem-estar geral”( Rawls, 1983: 142).

Neste aspecto, Rawls não apresenta nada de novo em relação às medidas redistributivas adotadas pelo Estado social através da atuação da medida fiscal como elemento de socialização da riqueza, com a intervenção do Estado através das políticas sociais voltadas à realização do bem-estar coletivo.

Um outro aspecto a considerar é que ele exclui o Estado do papel de mediador nas relações entre os mais avantajados e os menos avantajados, visto que não vê uma ligação causal entre ganho e perda na produção da riqueza social. Por isto, a intervenção do Estado é indireta, se dá na distribuição da renda final e não se ocupa de regular as relações que estabelecem ganho e perda, como as relações de trabalho. Com isto, Rawls limita a aplicação dos direitos sociais e a noção mesma de justiça social, que requer uma justa distribuição nas relações de trabalho, o que reformularia a condição mesma de “desavantajados”.

Neste sentido, podemos dizer também que ele se aproxima à lógica utilitarista (tão combatida por ele) pela maximização do bem-estar, quando justifica a distribuição em base a um cálculo generalizável e não em base a critérios qualitativos, como aquele dos direitos sociais e da dignidade da pessoa humana. Com efeito, esta proposição é apenas teórica e matematicamente favorável aos “desavantajados” porque permite a continuidade das relações que produzem as desvantagens e se apresenta como ilusão de privilegiá-los no ato da distribuição. Em última análise, a teoria da justiça como eqüidade se revela como insuficiente para realizar a justiça social e, em muitos aspectos, se apresenta ainda mais retrógrada em relação às propostas apresentadas a este respeito pelo Estado social.

No tocante ao valor da solidariedade, estamos de acordo com a interpretação dos comunitaristas, que consideram a hipoteca individualista da teoria rawlsiana fundamentada em concepção abstrata e a – histórica do sujeito humano. O argumento defendido pelos comunitaristas se refere às assim chamadas “circunstâncias de justiça” que, segundo eles “evidenciam o caráter contingente, frágil das relações sociais, expostas constantemente ao risco do conflito e da violência” e faz com que Rawls elabore “uma teoria defensiva, na qual a justiça entra em campo para opor-se à possível dissolução provocada pela explosão de contrastes” descuidando assim “aquelas condições (família, comunidade, grupos de várias naturezas) [, ..] nas quais as relações humanas são vivifica das pela solidariedade e pelo espírito de doação”( Da Re, 1998: 49).

As circunstâncias de justiça são definidas por Rawls como “as condições normais através das quais a cooperação dos homens é possível e necessária” (Rawls, 1983: 117). A cooperação social é vista, portanto, como a característica essencial da vida em sociedade, mas esta última é marcada também por uma contradição fundamental: a coexistência de identidade e conflitos de interesses. Se a identidade torna possível uma vida melhor para todos, o conflito de interesses, originado pela tomada de consciência da diferente repartição dos benefícios sociais, faz com que os homens prefiram sempre uma quota maior para si mesmos. As circunstâncias de justiça são exatamente as condições objetivas (especialmente a escassez moderada de recursos) e subjetivas (o recíproco desinteresse pela ocupação dos outros) que exigem a aplicação da justiça para tornar possível a cooperação social. Em outras palavras, “as circunstâncias de justiça se dão no caso em que pessoas reciprocamente desinteressadas apresentam pretensões conflitantes sobre a divisão dos benefícios sociais, em condições de escassez moderada. Se estas circunstâncias não existissem, faltariam as condições para a virtude da justiça, exatamente como, em ausência de ameaças e danos à integridade de uma pessoa, não existiria’ nenhuma ocasião para a coragem física” (Rawls, 1983: 119). Além disto, continua Rawls, “a justiça é, portanto, a virtude de práticas sociais nas quais existem interesses em conflito, ou nas quais as pessoas se sentem autorizadas a impor os próprios direitos sobre os outros. Se fosse possível uma comunidade de santos que condividem um ideal comum, esta seria isenta de discussões sobre a justiça” (Rawls, 1983: 120).

Isto não significa necessariamente que o homem seja egoísta, mas um ser orientado por um plano de vida próprio que o conduz a objetivos diversos uns dos outros. Estes planos de vida estão fundamentados em concepções de bem, também estas diversas, que refletem a multiplicidade de crenças religiosas e filosóficas, e de doutrinas políticas e sociais existentes. Admitindo que tais  concepções do bem não são levadas em consideração na posição original, a teoria da justiça como eqüidade convida o homem ao individualismo na medida em que cada um deve imaginar a si mesmo em qualquer posição social se encontre. Ninguém é convidado a pensar nos outros, mas a prever as situações ideais para a própria condição na sociedade futura. Neste sentido, não entra em jogo virtude da solidariedade, mas se trata essencialmente de reforçar a existência de condições que favoreçam os planos individuais de cada um. Os procedimentos que constituirão as regras de justiça e de reciprocidade são igualmente vazias de conteúdo de solidariedade, porque não se preocupam em desenvolver relações solidárias, mas apenas relações formais de cooperação social.

Isto não significa que, sob este aspecto, a leitura de sociedade conflitante feita por Rawls não seja realista. O que queremos evidenciar é que o ponto de vista moral requer que o homem seja virtuoso, isto é, que atue segundo princípios não por imposições ou adequação, mas por convicção e decisão pessoal. O modelo de sociedade rawlsiano, ao invés, estimula uma convivência formal, na qual ao indivíduo não vem requerido um comportamento solidário no confronto dos outros. Em outros termos, Rawls elabora uma teoria da justiça partindo de aspectos negativos existentes na convivência social (como o desinteresse pelas ocupações dos outros) e não se preocupa em identificar as dimensões positivas (inerentes às concepções de bem), que poderiam ressaltar as disposições morais particulares em estrita conexão com a idéia pública expressa em uma sociedade solidária e justa.

Em última análise, podemos afirmar com Alasdair MacIntyre que não existe muita diferença entre as teorias de Rawls e aquelas de Robert Nozick, já que “aquilo que aproxima ambas as teorias é de um lado o desconhecimento da justiça como virtude pública indispensável para dar consistência e identidade à estrutura da comunidade política, e por outro lado, uma compreensão redutiva do viver social, toda concentrada na exasperação da fragmentação e da anomia social” (Da Re A., 1998: 49-50).

Com efeito, mesmo reconhecendo que os critérios usados por Rawls e Nozick para definir a justiça são diversos, MacIntyre consegue individuar nos seus pensamentos, a ausência da idéia de mérito como fundamento da vida comunitária, o que deriva da sua concepção contratualista em que a inserção do indivíduo na sociedade se dá como ato voluntário baseado em interesses formulados anteriormente “seja para Nozick seja para Rawls uma sociedade é composta de indivíduos, cada um com os próprios interesses pessoais que, sucessivamente, devem se reunir e formular regras de vida comuns. […] Em ambas as interpretações os indivíduos são primários e a sociedade secundária, e a determinação dos interesses individuais é precedente e independente em relação à construção de qualquer vínculo moral ou social entre estes”. Mas, continua Maclntyre, “a idéia de mérito pode sobreviver somente no contexto de uma comunidade cujo vínculo primário é uma concepção condividida por todos do bem para o homem e do bem daquela comunidade, em que os indivíduos determinem os seus interesses primários em referimento a tais bens” (Maclntyre, 1988: 298).

A teoria da justiça como eqüidade não responde aos problemas emergentes no interior das estruturas solidaristas do Estado social; nem ao menos se apresenta como solução possível de ser proposta para resolver a dicotomia entre ética pública e ética privada, por quanto se refere às relações de solidariedade. Com efeito, as leis não têm o sentido aristotélico de promover condições para formar cidadãos mais justos e solidários, mas somente o objetivo de tornar a sociedade menos conflituosa para que a cooperação se realize em concomitância com a realização dos planos de vida individuais.

Segundo a interpretação de A. Da Re, em concordância com o pensamento dos comunitaristas, aquilo que parece a solução para Rawls, pode ser exatamente o ponto frágil da sua teoria, isto é, o não considerar a dimensão dos valores que dão fundamento e conteúdo sólido a qualquer proposta política. Nem deriva “uma subestimação do valor das redes das ligações familiares, comunitárias tradicionais, na qual se desenvolve a normalidade de vida do sujeito: para os comunitaristas o risco da dissolução, ou ao menos o risco da anomia, é presente exatamente nesta postura abstratamente universalista, fundamentada em uma interpretação puramente procedimental e formal da justiça. Uma comunidade política é tão mais- sólida quanto mais pode confiar em um conjunto de valores condivididos, de tradições, de cultura, nos quais os cidadãos se identificam” (Da Re A., 1998: 50-51).

Feitas estas considerações podemos afirmar que a postura rawlsiana se mostra insuficiente como resolução da crise das sociedades democráticas liberais, por causa do seu caráter deontológico que, ao privilegiar os procedimentos, se descuida dos fundamentos que podem inspirar uma sociedade emancipada e se apega a uma análise superficial que pode trazer modificações institucionais, mas não reformula, nem destrói as estruturas fundamentais da sociedade, nem realiza os valores básicos da solidariedade, justiça social e democracia. Em última instância, a sua proposta reafirma o modelo de sociedade liberal e não acrescenta modificações substanciais à noção de justiça, nem mesmo àquela de direito, defendendo a idéia de dicotomia entre ética pública e privada, distanciando-se assim de uma postura centrada no homem como sujeito moral, solidário e sujeito da história.

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Notas reflexivas sobre a concepção de

política em Hannah Arendt

Mary/ucia Mesquita[42]

Sâmya Rodrigues uemos[43]

Silvana Mara Morais Sentos[44]

Introdução

 

Hannah Arendt, filósofa e pensadora política, é identificada, comumente, com o pensamento neo-aristotélico, apesar de sempre ter procurado fugir de qualquer classificação no âmbito da teoria política. Preocupada com as questões de seu tempo, relembrou os ensinamentos da polis grega ao se interrogar pelo sentido da política na contemporaneidade. Ao formular tal questão, seu pensamento evidencia as marcas aristotélicas, afinal, assim como em Aristóteles, para Arendt, a política é a ciência arquitetônica da sociedade. Não temos, neste artigo, pretensão de desenvolver uma análise exaustiva sobre o pensamento de Hannah Arendt, mas tão somente sinalizar notas críticas 50bresua concepção de política, direcionando a argumentação para a seguinte Questão: ao admitir que a política, entendida enquanto ação cujo sentido é a liberdade, está na centralidade da vida’ social, fica cancelada, no seu pensamento, a possibilidade objetiva quanto à superação da ordem burguesa.

O pioneirismo de Aristóteles no entendimento da política

 

A liberdade para os antigos era um conceito essencialmente político, pois só na polis alguém poderia ser livre e a liberdade era a definição mesma da cidadania, quese realizava na esfera pública.

Há, portanto, um finalismo do Bem que unifica virtudes éticas e políticas, enquanto atualização de uma potencialidade da natureza humana, cuja razão comanda e orienta as paixões e as vontades.

A atividade política, enquanto experiência que se refletia na vida pessoal, convergia com o coletivo social da multiplicidade da polis, fazendo da política grega uma ética. Sendo éti:a, a atividade política tinha uma função pedagógica, de transformação dos homens em cidadãos: a paidéia. Por sua vez, a atividade do soberano, do chefe – a soberania – tornou-se atividade de uma função definida pelos cidadãos, os “políticos”.

Aristóteles foi o primeiro pensador a sistematizar uma obra sobre ética, intitulada – “Ética a Nicômaco” – na qual explicita os fundamentos de sua concepção ética. Neste percurso filosófico, para subsidiar as reflexões acerca da relação entre ética e política, elabora – “A Política” – na qual tece, dentre outras questões, a noção de polis e de cidadão.

Um aspecto fundante para o entendimento da dimensão ética no pensamento aristotélico é que esta se baseia em uma concepção de ciência prática. Em tal perspectiva, “o interesse teórico da ética não se elimina, pois do contrário ela não seria ciência, mas é relativizado em benefício de um interesse prático, no sentido não-instrumental, mas ético da palavra” (Oliveira, 1993: 59).

O interesse prático da ética aristotélica está presente na sua pesquisa, cujo objetivo era não só conhecer o mundo da polis (compreendida por ele como uma “pluralidade de cidadãos”), mas contribuir para possibilitar a ação política, dos cidadãos livres. Neste sentido, Aristóteles nas suas obras – “Ética a Nicômaco” – e – “A Política” – reafirma que o fim da ciência prática “não é o conhecimento, mas a ação” (Mustafá, 1999).

Para Mustafá (1999: O 1L “esta concepção de ética leva Aristóteles a enfrentar a questão da relação entre ética e política. De fato, se a ética se ocupa do agir humano e se coloca como problema fundamental à identificação de que coisa seja o bem para o homem, e se a política se interessa do homem enquanto ser capaz de agir, consciente e livremente, em vista de um fim, não é concebível tomar em consideração a ética isoladamente da política e vice-verse”.

A visão aristotélica sobre a relação entre ética e política é influenciada, no trajeto histórico, pela vida política na polis grega. A democracia ateniense, exemplo típico de democracia direta, embora restrita aos ditos “cidadãos livres” (o que excluía mulheres, escravos e crianças) propiciava um ambiente fecundo para a elaboração de uma concepção da relação entre ética e política caracterizada pela unidade.

É nesse contexto histórico que, Aristóteles elabora a sua noção de política. Para ele, as ações, as artes e as ciências têm um fim, A política é a

arte mais prestigiosa e que, mais verdadeiramente, se pode chamar a arte mestra ( … ) utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar (Aristóteles,1991,’ 9-10).

 

Aristóteles propõe que o bem supremo, que para ele é a felicidade, deva ser um fim almejado pela ciência política e que este fim tem que se dar, sobretudo, no âmbito do Estado – da polis – e não apenas da vida do indivíduo.

Na conformação da ordem política, Aristóteles (1998) define como objetivo do Estado criar as condições de possibilidade para uma vida feliz. Essa felicidade, no âmbito da comunidade estatal, seria garantida através da Constituição, pela qual, necessariamente, estaria relacionada à virtude do cidadão. Neste sentido, Aristóteles realiza uma pesquisa sobre várias constituições para descobrir qual a melhor para os cidadãos. Segundo Mustafá (1999: 03), “a consideração sobre o fim do Estado repõe a temática desenvolvida na ‘Ética a Nicômaco ‘ sobre a felicidade como fim da política e assegura a impossibilidade de romper a relação entre ética e política no seu pensamento”. Aristóteles, como vimos anteriormente, preocupava-se com – o fim – da ação humana, ou seja, a racionalidade do fim é o que caracteriza o seu pensamento. E nessa perspectiva, suas idéias orientam-se para a ética teleológica, ética da primeira pessoa, nos termos de Mustafá (1999), em detrimento da ética deontológica.

A concepção de filosofia prática de Aristotéles influenciou toda a tradição ocidental, sendo mediada pela escolástica, a qual foi moderna mente retomada por Hegel e, contemporaneamente, tem inspirado diferentes autores(as), a exemplo de Hannah Arendt.

A Política sob a análise contemporânea de Hannah Arendt

 

Para analisar a concepção de política em Hannah Arendt, vamos nos deter, de forma breve, nas considerações que ela faz em seu livro – A condição humana sobre a – vita activa – que congrega três atividades humanas fundamentais: o trabalho (labor), il obra ou fabricação e a ação.”

Segundo Arendt (1991:15), o trabalho (labor) “é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano”. Trata-se do empenho para satisfazer as necessidades humanas no campo da própria sobrevivência física não apenas do indivíduo, mas da vida da espécie. O resultado do trabalho é a produção de bens que não permanecem no mundo, não possuem durabilidade, posto que são destinados ao consumo imediato dos indivíduos, a exemplo da alimentação. Sendo uma atividade do espaço privado, o trabalho limitava-se às necessidades do processo biológico, não se constituindo espaço da liberdade, uma vez que os indivíduos aí estão no reino da necessidade. A condição humana do trabalho é garantir a própria reprodução da vida.

A obra refere-se à produção artificial de objetos que, diferentemente dos produtos do trabalho, adquirem permanência no mundo e não têm consumo imediato. Para a autora, a obra traduz a “atividade correspondente ao artificialismo da existência humana” (Arendt, 1991: 15), ou seja, é por esta atividade que o indivíduo produz um mundo artificial de coisas. A condição humana da obra é a sua capacidade de pertencer ao mundo.

A ação é, em Arendt (1991: 15), “a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria”. Na ação, os indivíduos se libertavam do reino da necessidade e exerciam, na polis – na esfera pública, a atividade verdadeiramente política. Liberado das necessidades, o homo agens é considerado como igual entre iguais, sendo o espaço da ação aquele que possibilita o encontro da comunidade de indivíduos

iguais, os quais se reúnem para a realização da liberdade, expressa na política. O instrumento característico da ação é a palavra, o discurso e não a força ou a violência’.

Ao deter-se na análise da – vita activa – Hannah Arendt explicita com veemência sua crítica à modernidade. Isso porque, conforme a autora, ao contrário da polis grega, a modernidade valorizou somente o trabalho e a obra, enquanto a ação foi esquecida. Demasiadamente voltado para a sobrevivência, o indivíduo moderno trabalha e produz, vivendo em condições pré-políticas ou sob uma concepção tirânica de política que se torna meio para o domínio e para a conquista do poder, assumindo na sua essência, um caráter meramente instrumental de enfrentamento entre dominantes e dominados.

A condição humana, afirma Arendt (1991:17), “compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem, Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência”. Nessa perspectiva, a ação é das três atividades mencionadas anteriormente, àquela que se encontra mais diretamente relacionada com a inteireza e intensidade da condição verdadeiramente humana, constituindo-se numa atividade política por excelência, que tem na pluralidade sua característica fundamental.

Cabe, então, interpelar: mas o que é política para Arendt7 A política baseia-se tanto na singularidade como na pluralidade. Na singularidade, emana o indivíduo enquanto ser único no mundo. No indivíduo, apresenta-se o novo, a natalidade, o inusitado, o viver como ser distinto entre iguais. A pluralidade revela a igualdade e a diferença presentes na convivência, no diálogo entre as pessoas, Podemos afirmar, segundo Arendt (1999:22), que “a política trata da convivência entre diferenças”. Nisto consiste a dignidade da política e o reconhecimento do espaço público como espaço de realização da liberdade.

No ensaio organizado por Ursula Ludz – O que é política?(1999) – que reúne fragmentos póstumos do pensamento arendtiano, Hannah Arendt adverte para o fato de que, ao falar de política, em nosso tempo, impõe-se o desafio de problematiza r os preconceitos que todos têm contra a política.

O problema, para a autora, é que vigora, nos tempos modernos, uma concepção de política circunscrita à relação entre dominantes e dominados, em detrimento da noção de política propriamente dita, aquela designada na ação. Sob a perspectiva de política predominante na modernidade, Arendt (1999:26) argumenta que conseguiríamos “em lugar da abolição da política, uma forma de dominação despótica ampliada ao extremo, na qual o abismo entre dominadores e dominados assumiria dimensões tão gigantescas que não seria mais possível nenhuma rebelião, muito menos alguma forma de controle dos dominadores pelos dominados.”

Outro preconceito igualmente difundido contra a política reside no reconhecimento da existência de uma política interior que seria traduzida por “uma teia feita de velharia de interesses mesquinhos e de ideologias mais mesquinhas ainda, ao passo que a política exterior oscila entre a propaganda vazia e a pura violência” (Arendt,1999: 27).

Hannah Arendt elabora, assim, uma crítica contundente ao nazismo e stalinismo, considerados, por ela, sistemas totalitários. Arendt mostra que no século XX, eles se constituíram a forma mais definida de desnaturação da política, uma vez que suprimiram, por completo, a liberdade humana. Para ela, na modernidade, as atrocidades cometidas em nome da política, notada mente na edição stalinista e no nazismo, se constituíram em heranças malditas que além de reduzir a política ao autoritarismo, desprezaram a liberdade e desestruturaram o espaço público.

Ao apresentar a catástrofe da modernidade que dissimula o verdadeiro sentido da política, submetendo os indivíduos a viverem sob as amarras da necessidade e no limite da sobrevivência, Arendt, assinala a perda da liberdade como sinal evidente de que o totalitarismo impede a presença atuante de homens e de mulheres na história.

Segundo Kurt Sontheimer (1999:09), no prefácio do livro – O que é política? –

apesar das experiências de calanidade que o homem moderno teve com’ o po itico, Arendt acredita ser evidente que o homem é dotado, de uma maneira altamente maravilhosa e misteriosa, do dom de fazer milagres, a saber: ele pode agir, tomar iniciativas, impor um novo começo” e, citando as palavras de Arendt, afirma, ainda, que “o milagre da liberdade está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo, já que através do nascimento veio ao mundo que existia antes dele e continuará existindo depois dele.

Na verdade, Arendt não embala suas idéias em nenhuma forma de pessimismo trágico. Ao contrário, adverte que “o ponto principal do preconceito corrente contra a política é a fuga à impotência, o desesperado desejo de ser livre na capacidade de agir” (Arendt,1999:28). Há, desse modo, uma crítica severa, realizada pela autora, quanto à pseudo-alternativa de fuga à vida privada, à adoção, no cotidiano, da irresponsabilidade com a vida social e da apatia política. Tais formas de condutas, tão correntes na contemporaneidade, representam, para Hannah Arendt, práticas nocivas à construção da verdadeira política.

Considerando as formas totalitárias de Estado e as conseqüências nefastas oriundas do exercício da política no século XX, Arendt (1999:38) interroga-se de forma radical: “tem a política algum sentido ainda?” A autora responde de modo enfático que o sentido da política é a liberdade.

A política não é necessária, em absoluto – seja no sentido de uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor, seja no sentido de uma instituição indispensável do convívio humano. Aliás, ela começa – onde cessa o reino das necessidades materiais e da força física (. ..) Falando em termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conheceram e realizaram (Arendt, 1999:50).

Para a autora, apesar de não ser possível reeditar as formas de organização que deram, na antiguidade, sustentação para consolidar o que considera a verdadeira política, uma idéia permanece atual, trata-se do entendimento da liberdade enquanto um valor fundamental que atribui sentido à existência da política. Arendt (1999:34) vai mais além quando diz que “na crise do mundo moderno não é tanto o mundo, mas sim o próprio homem que saiu dos trilhos”.

 

 

Considerações Críticas

 

Sem a pretensão de esgotar a discussão, destacaremos três aspectos na concepção de política de Hannah Arendt que merecem considerações críticas.

O primeiro aspecto refere-se ao fato de que, para Arendt, a distinção entre trabalho e obra foi eliminada ou ignorada na modernidade. “Todo o seu esforço consiste em resgatar essa distinção (distinção que correspondia, na antiguidade, à distinção entre o trabalho não produtivo do escravo e a atividade produtiva do artesão) e em explicitar as implicações que decorrem de sua não distinção na modernidade” (Magalhães, 1985: 133).

Ao tematizar – a vita activa – Arendt põe em relevo que o indivíduo moderno está preso às leis da sobrevivência e critica a ênfase dada na modernidade, segundo ela, por autores como Locke, Smith e Marx que consagraram o trabalho como a mais relevante de todas as atividades humanas.

Para Arendt, há uma explícita contradição no pensamento de Marx que se expressa quando ele apreende o trabalho como uma necessidade eterna na vida dos indivíduos, ao tempo em que sinaliza a necessidade histórica de emancipar homens e mulheres do trabalho. O problema é que ao reduzir o trabalho à reprodução da vida biológica, Arendt, diferente de Marx, não considera que, na produção capitalista, a força de trabalho produz mercadoria e mais-valia. Segundo Magalhães (1985: 148), “no fundo é toda a concepção de Homem e do trabalho, em Marx, que ela recusa[45]“. Numa lógica de análise distinta de Arendt, consideramos que o trabalho não pode ser reduzido apenas à mera sobrevivência ou a sua forma alienada, expressão particular que o trabalho assume na sociabilidade capitalista, posto que o trabalho constitui, do ponto de vista ontológico, a protoforma do agir humano, o que não significa reduzir todos os atos humanos ao trabalho. Lessa (1996:24) refletindo sobre o pensamento lukacsiano, afirma que “a reprodução social comporta e, ao mesmo tempo, requer outros tipos de ação que não os especificamente de trabalho. Todavia, sem a categoria do trabalho, as inúmeras e variadas formas de atividade humano-social não poderiam sequer existir”.

Sob esse prisma, cabe-nos interrogar: de que forma o indivíduo social pode pensar sua existência sem o trabalho?

Quando Hannah Arendt afirma que a modernidade valorizou o trabalho e a obra em detrimento da ação, vale considerar que na Grécia antiga, os escravos e as mulheres, que não gozavam de cidadania, estavam destinados a garantir a sobrevivência, enquanto os cidadãos (homens livres) cuidavam do espaço público, da política propriamente dita. Como podemos observar, isto não significa, de modo algum, que os indivíduos, na antiguidade, tenham vivido sem o trabalho.

Temática tão corrente nos dias atuais, a crítica à centralidade do trabalho aparece sob diferentes enfoques: desaparição do trabalho; substituição da esfera do trabalho pela esfera comunicacional; perda da central idade da categoria trabalho etc. Além de lançar mão de estratégias como globalização, neoliberalismo, reestruturação produtiva, o capital propala o fim da sociedade do trabalho.

Ao contrário do que se multiplica aos quatro cantos do mundo, a nova face do capital necessita cada vez mais do trabalho, da classe trabalhadora, só que a considera como uma força produtiva ainda “mais complexa, multifuncional, que deve ser explorada de maneira mais intensa e sofisticada (…)” (Antunes, 1999a: 220).

Afinal, analogamente à história que Marx ilustra da melhor abelha contracenando com o pior arquiteto, as máquinas superdotadas, com alto índice de inteligência artificial, não podem prescindir do trabalho humano. Ou seja, a introdução cada vez mais intensa da tecnologia exige trabalhadores (as) cada vez mais qualificados (as), aptos (as) a lidar com as máquinas informatizadas. Consideramos que o trabalho, mesmo em face de tantas mudanças, assume, numa perspectiva ontológica, centralidade na vida de homens e mulheres. No entanto, o que se verifica, nos dias atuais, é a retomada de níveis explosivos de exploração do trabalho, de intensificação do tempo, dos ritmos e dos processos de trabalho. É preciso ter presente que esta nova gramática social excludente traz conseqüências danosas para o interior do mundo do trabalho, mas não cria condições para validar as teses sobre o fim do trabalho. Afinal, como diz Antunes, “o capital pode diminuir o trabalho vivo, mas não eliminá-lo. Pode intensificar sua utilização, pode precarizá-lo e mesmo desempregar parcelas imensas, mas não pode extingui-lo “(1999b: 26).

Na interpretação de Magalhães (1985: 137),

“não foi a distinção entre trabalho e obra que permitiu que o político fosse valorizado na antiguidade, e isso segundo a própria H. Arendt, mas sim a distinção entre o privado e o público, fica, assim difícil de compreender por que motivo essa não distinção (trabalho e obra) na época moderna é, para ela, a causa da perda do espaço público, espaço este que ela defende com tanta energia”.

O segundo aspecto problemático presente na concepção política arendtiana refere-se ao uso que a autora faz da noção de totalitarismo para explicar sua crítica aos desdobramentos da política no século XX.

O uso da noção de totalitarismo para negar e criticar as experiências do nazismo e do stalinismo efetiva-se mediante a lógica na qual contra o terror do Estado policial que ameaça o indivíduo e suprime sua liberdade, consagra-se o direito e a lei, fundamentados no Estado de direito.

De acordo com Chasin (1977: 122), nesta interpretação,

“o Estado liberal vem a ser o sistema onde predominam a lei, a razão e a liberdade, garantidas pela difusão do poder e pela estrutura pluripartidária. E o Estado totalitário o sistema onde prevalecem a violência extremada – o terror – e a dominação hipertrofiada pela concentração do poder e nutrida pelo monopólio do partido único. Um portanto, é o regime da liberdade, regido pela lei, pela razão; o outro, o da opressão comandada pela violência.”

Desse modo, na perspectiva de realizar uma crítica radical e, em nossa opinião, absolutamente necessária à violência e a toda ordem de desvalorização da vida humana, ocorrida durante os regimes nazista e stalinista, Arendt, na essência, acaba por efetivar uma contra posição entre totalitarismo e liberalismo. Nesse embate, o capitalismo se edifica como o fim da história, portanto racionalmente insuperável. Considerando que, na análise liberal, opera-se o ocultamento da desigualdade concreta frente à valorização extrema da legalidade, temos como conseqüência que o liberalismo não é entendido como expressão ria hegemonia burguesa, mas como expressão da igualdade de todos os indivíduos perante a lei.

O pensamento de Arendt apresenta-se refém do uso do conceito de totalitarismo. Ao utilizar esta noção na perspectiva de explicar e condenar as atrocidades cometidas por determinados estados, acaba por reduzir toda explicação ao emprego de universais abstratos que obscurecem a compreensão das particularidades dos fenômenos sociais. “Donde, em lugar de reproduzir conceitualmente o concreto, evidenciando em cada caso a particularidade decisiva, somos conduzidos, por aquela análise, a nos defrontar com a razão em geral, a liberdade em geral, o cidadão em geral, o estado em geral, a violência em geral etc” (Chasin, 1977: 125).

O terceiro aspecto que gostaríamos de mencionar está relacionado ao conceito em si de política defendido por Arendt.

O pensamento de Arendt ao desconectar a esfera da política da esfera da economia, redunda numa análise aparente quanto à explicação de porque os indivíduos não tomam as rédeas da história e superam as condições desumanas em que vivem. Sua concepção de política redunda na inviabilidade de alternativas para a construção de uma nova sociabilidade, à medida que não agrega, na sua análise, a racional idade das classes sociais e seus projetos.

Para Hannah Arendt, a dignidade da política, entendida na -ação- que se realiza mediante a vivência da liberdade e da pluralidade é o objetivo maior da humanidade. A política é, portanto, uma dimensão ineliminável da vida social, não se constituindo, pois, conforme Marx, enquanto uma dimensão própria da sociedade de classes.

Sobre isto é oportuno lembrar que Gramsci chamava atenção para o fato de que, embora a criação de um novo tipo ou nível de civilização se opere essencialmente sobre as forças econômicas, os fatos da superestrutura não devem ser abandonados a si mesmos, a seu desenvolvimento espontâneo. Neste sentido, define a política como a esfera do coletivo que reúne sentimentos, aspirações e leis próprias, sendo relativamente autônoma em relação à dimensão econômica e sofrendo, simultaneamente, influências desta. No seu pensamento, há uma determinação da economia em relação à política, sem apresentar, no entanto, imposições mecânicas de resultados, mas condicionando as alternativas que se colocam para a ação do sujeito.

Ao discutir a concepção de política defendida pela Filosofia da Práxis, Gramsci argumenta que “não é verdade que a filosofia da práxis ‘ destaque’ a estrutura das superestruturas; ao contrário, ela concebe o desenvolvimento das mesmas como intimamente relacionado e necessariamente inter-relativo e recíproco” (Gramsci,1999:369).

Trata-se de um fetiche qualquer tentativa, na sociedade capitalista, de desnudar os indivíduos de suas determinações estruturais. O fosso entre economia e política pode criar a ilusão da autonomia plena do político, mas logo é possível perceber que “a naturalização/deshistorização da vida social é essencial na construção da hegemonia burguesa. Reforça, por um lado o atual como o único possível da história e, por outro, nega a possibilidade e a capacidade de existência da racionalidade das outras classes” (Dias, 1996: 132).

Todas as reflexões, ainda que sérias e profundas, quando abstraídas das múltiplas determinações que conformam o ser social, tendem ora para o politicismo com ênfase no subjetivismo, ora para o economicismo, com ênfase na subtração da subjetividade, na despersonalização dos indivíduos enquanto pertencentes a uma determinada classe social. Desse modo, o politicismo e o economicismo acabam por não potencializar iniciativas de formação e ação de sujeitos críticos, capazes de identificar, nomea e se opor às atrocidades tais como a fome, a miséria, o desemprego e a desigualdade social que, naturalizadas, conformam a vida cotidiana da maioria subalternizada, sob o advento da sociabilidade do capital.

Na verdade, Arendt propõe uma concepção positiva de política e, neste sentido, a ação entendida enquanto a atividade verdadeiramente política, destina-se ao aperfeiçoamento do Estado de direito, do espaço público e da liberdade.

No pensamento de Arendt, a política está aprisionada numa trama idealista que obscurece as relações classistas e interdita as possibilidades de compreensão da essência da sociedade capitalista e seu sistema de exploração e opressão, não havendo, desse modo, no seu pensamento, alternativas à ordem do capital.

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OLIVEIRA, Manfredo A. de O. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993.

A ética e o trabalho cotidiano do assistente social

 

Aione Maria da Costa Souza[46]

 

 

No contexto atual, onde o capital globalizado aprofunda as desigualdades sociais, torna-se cada vez mais necessário construir formas concretas de efetivação de valores éticos que, como fundamentos da vida humana precisam ser constantemente construídos, reconstruídos e reafirmados.

Esse é um processo que se faz na busca cotidiana de luta pela liberdade, pelo acesso à vida, ao trabalho, à dignidade, à participação, à justiça, à democracia, aos direitos humanos, dentre outros.

Neste sentido, é preciso pensar a ética a partir das questões complexas e desafiantes que se apresentam hoje no nosso cotidiano, particularmente para os assistentes sociais que atuam diretamente com os reflexos da questão social, convivendo’ diretamente com situações aviltantes, que pela sua constância e freqüência correm o risco de serem banalizadas, sendo necessário um certo cuidado para evitar a naturalização das questões cotidianas.

É importante compreender essas situações, reconhecendo-as como demandas à profissão, tendo clareza do papel profissional, e assim saber conduzi-Ias de forma ética e estratégica. OU seja, enfrentar a situação concreta com competência, responsabilidade, interpretando – a, qualificando e redirecionando-a, fundamentando-se nos princípios ético-políticos do projeto profissional.

Neste texto tentaremos transmitir essa compreensão. Assim, inicialmente apresentamos a discussão acerca da ética como componente fundamental no processo de sociabilidade humana, referendando uma concepção de ética que está presente nas discussões atuais da profissão, em seguida apontamos alguns caminhos que consideramos importantes para a efetivação do projeto ético-político profissional.

  1. 1.             Ética: componente fundamental da sociabilidade humana

 

Os homens e as mulheres fazem a história, que é na realidade, a manifestação de suas vidas em sociedade, das suas relações e do desenvolvimento humano e social. A constituição histórica da humanidade é um trajeto permeado por situações que muitas vezes dificultam ou mesmo impedem que a construção dessas relações e dessa história, seja tal como é definido ou planejado.

Heller (1985: ai), baseando-se nas teses da imanência e da objetividade em Marx, concorda com a afirmação de que desejamos determinados fins, mas existem circunstâncias que produzem resultados diferentes. Ou seja, existem “relações e situações humanas que são mediatizadas por coisas” e que formam um complexo de várias posições teleológicas, onde a circunstância torna-se uma resultante objetiva.

Assim a autora afirma que “causalidade e finalidade”, em Marx, são fatos ontológicos e sociais que se relacionam. No entanto, isso é logicamente correto quando se refere a história da sociedade, pois na natureza, a causalidade existe sem a teleologia.

Causalidade e finalidade, portanto, são em Marx fatos ontológicos-sociais que necessariamente se relacionam. A tese de sua necessária inter-relação, decerto, só é verdadeira para a sociedade, pois na natureza existe uma causalidade sem nenhuma teleologia. Disso decorre que também o par conceitual aparência-essência expressa uma realidade ontológico social. O conceito de essência não tem sentido sem a finalidade, pois não há essencialidade – nem, consequentemente, aparência – a não ser do ponto de vista de uma colocação determinada de fins. (idem: 02)

Na opinião da autora, a essência humana é a realização, gradual e contínua, das suas possibilidades ontológicas. Portanto, considera que o valor é uma categoria que possui uma objetividade social, visto que é expressão das relações sociais.

Neste sentido, Heller (idem:05) define valor como “tudo aquilo que explica o ser” e fundamenta essa afirmação na concepção marxiana, de onde extrai como componentes da essência humana: o trabalho, a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade.

Esses cinco componentes são fundamentais para o desenvolvimento da sociedade e da constituição do próprio processo histórico. Neste sentido, relacionamos a nossa compreensão, acerca de cada um deles.

1. O trabalho é um dos elementos fundamentais na constituição das relações entre os homens, como também na concretização de diversas necessidades humanas e sociais. É por meio do trabalho que se dá o processo de constituição das relações sociais.

2. A sociabilidade tem como mediação primordial o trabalho. É por esta mediação que se reconhece a capacidade humana e a constituição dos sujeitos sociais. É, por este mesmo percurso, que se estabelecem os valores como: o exercício da liberdade, a manifestação de vontades e pensamentos, a constituição e a defesa dos direitos humanos e sociais, entre outros.

É no processo de sociabilidade que as pessoas se reconhecem como sujeitos de realização do trabalho, de construção de sua identidade, da necessidade de convivência, de comunicação, de participação política, sujeitos de construção desse mundo e de sua história.

Assim, se estabelecem as relações políticas, econômicas, sociais, que se manifestam no cotidiano a partir das relações de trabalho, familiares, de amizade, de afinidade, amorosas, de inserção em partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais, dentre outros.

O processo de sociabilidade humana, portanto, se manifesta na criação dos espaços de organização coletiva, que se expressam a partir do desenvolvimento das relações econômicas, políticas, sociais e culturais, onde a ética surge como um componente fundamental.

3. A universalidade não pode ser entendida como um ideal, distante, a ser alcançado, mas como parte do exercício de conquista real do processo de emancipação.

4. A consciência como ato de reconhecimento de si mesmo enquanto ser singular, mas nunca como forma de negação do outro, da coletividade. Mas entendida, principalmente como responsabilidade no processo decisório.

5. A liberdade, como fundamento da própria existência, como possibilidade de concretização do processo de decisão, de querer, de poder optar e escolher caminhos que realmente sejam possíveis para todos.

É na construção da própria história, pelo processo de mediação e de intervenção na realidade social, que se recriam as relações e valores éticos, ao mesmo tempo, em que também são criadas e recriadas as necessidades sociais.

A ética é responsável pela compreensão da sociabilidade a partir do processo de investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento e decisões humanas, o que conduz a uma reflexão sobre a essência dos valores da sociedade.

Como coloca Heller (1985: 01), “a história é a substância da sociedade” onde a sua essência está na vida cotidiana, âmbito em que o Ser se faz presente em sua particularidade e em sua genericidade. Por isso “a vida cotidiana é a vida do homem inteiro”. É no interior da vida cotidiana que surgem os valores, entre os quais os valores morais.

Compreendendo a moral como uma relação que está no interior das atividades humanas, Heller (idem: 06) coloca que tal relação é a conexão da particularidade com a universalidade genericamente humana e, neste sentido, a moral é:

O sistema das exigências e costumes que permitem ao homem converter mais ou menos intensamente em necessidade interior – em necessidade moral – a elevação acima das necessidades imediatas (necessidades de sua particularidade individual), (…) ‘de modo que a particularidade se identifique com as exigências, aspirações e ações sociais que existem para além dás causalidades da própria pessoa, elevando-se até a essa altura.

Desta forma, a elevação acima da particularidade é um ato consciente do ser humano. E, de acordo com Heller, as necessidades tornam-se conscientes, inicialmente, no indivíduo particular, mas o genérico também está contido nesse indivíduo, mesmo dentro de motivos e necessidades particulares. Portanto, é através da integração, da formação coletiva que o indivíduo toma consciência de sua condição de ser genérico, pois como tal é produto das relações sociais. (1985:20)

A moral é, então, uma relação entre um comportamento particular e uma decisão particular de um lado e as exigências genérico-sociais de outro.

Na interpretação de Barroco (1996: 74): “A compreensão dos fundamentos ético-morais da vida social supõe o entendimento da relação entre os níveis de existência do ser social: universal, particular e singular.” E, mesmo o indivíduo sendo singular e genérico, não é apenas por sua singularidade que se coloca como representante do gênero humano, pois a dimensão da vida social que é orientada predominantemente pela singularidade na vida cotidiana, se expressa na autoconservação.

No entanto, a autora acrescenta que é neste espaço que “o indivíduo se socializa e aprende a responder as necessidades práticas imediatas, assimila hábitos, costumes e normas de comportamento”. Incorporando tais mediações, vincula-se à sociedade ‘reproduzindo a dimensão humano-genérica.

A moral é parte fundamental da vida cotidiana, pois a reprodução das normas depende do espontaneísmo e da repetição para se tornarem hábitos que respondem às necessidades de integração social; a legitimação das prescrições morais implica numa aceitação subjetiva, pois se não forem intimamente valorizadas não se reproduzem diante de situações cotidianas – onde a necessidade de escolha entre uma ou mais alternativas se faz presente. A partir do momento em que os indivíduos incorporam determinados papéis c comportamentos, reproduzem-nos espontaneamente, donde a tendência da vida cotidiana: as escolhas nem sempre significam exercício da liberdade. (Barroco, 1996: 80)

De acordo com Silva, a afirmação de Marx de que é “o ser social que determina a consciência” expressa que aquilo que penetra a consciência humana é, na realidade, reflexo das relações sociais que esses homens estabelecem entre si. Portanto, a autora acrescenta que,

(…) não se trata da consciência pura dos filósofos idealistas, mas de uma consciência adquirida através das necessidades materiais, do intercâmbio com os outros homens e com as coisas situadas fora dele mesmo. É portanto a consciência da natureza e da necessidade e estabelecer relações entre os indivíduos, da qual nasce e se desenvolve a linguagem. Essa consciência ultrapassa o instinto e é o início da vida social, distinguindo a espécie humana das outras espécies animais. (Silva, 1992: 21)

Deste modo, o que se evidencia é a concreticidade humana a partir de sua atividade criadora, ou seja, o trabalho, que no processo de produção e reprodução determina as relações sociais humanas.

De acordo com essa autora, a análise de Marx parte do homem em uma sociedade específica, no caso a sociedade capitalista, onde existe a divisão em classes, cujos interesses são antagônicos.

Assim, a moral é apreendida de forma diversa, pois os interesses são diferenciados e as construções éticas dos sujeitos repercutem na sua condição de classe.

Os valores morais se incluem, então, como elementos que se relacionam com esses componentes essenciais, da particularidade com a universalidade de forma a explicar esses aspectos.

Sendo a moral uma relação entre atividades humanas, sua objetividade se estabelece em cada dimensão da organização social: econômica, política, social, cultural, etc. Considera-se, então, que a fundamentação dos valores está nas relações entre os homens e que estas se situam tanto na organização familiar, como no trabalho, ou nos espaços onde se realizam a educação, a cultura, o lazer e outros espaços de realização da sociabilidade.

Neste processo, surgem várias formas de organização e mecanismos de ordenamento da vida em sociedade, onde é criado o Estado, a Religião, o Direito, a Política, a Ética, entre outros.

Neste sentido, os valores e fundamentos éticos são construídos histórica e socialmente pelos homens através de suas ações na sociedade. São atitudes humanas, conscientes, criativas e teleológicas.

É nessa construção social que se ampliam as alternativas e possibilidades de escolha, onde o indivíduo social é sujeito de sua própria ação. Os valores, as normas e os meios para a transformação da realidade, são construções desse homem social, que quando idealiza suas ações através de uma práxis consciente, tende a buscar efetivá-Ias. Concordamos neste sentido, com a afirmação de Netto (1999:93):

A ação humana, seja individual, seja coletiva, tendo em sua base necessidades e interesses, implica sempre um projeto, que é, em poucas palavras, uma antecipação ideal da finalidade que se quer alcançar, com a invocação dos valores que a legitimam e a escolha dos meios para atingi-la.

Sendo as concepções éticas determinadas historicamente, a partir das relações sociais que os homens estabelecem em cada época, a forma de concepção dos valores, também, se realiza a partir de fatos predominantes em determinado período e realidade social. No entanto, o eixo central de construção dos valores, que são as relações humanas e sociais, é conservado. Do mesmo modo, permanecem os desejos e projetos de busca por uma sociedade diferente, configurada pela emancipação.

Com as transformações sociais e a complexificação das sociedades, o processo de desumanização em face do avanço tecnológico e do aprofundamento das desigualdades sociais, resultantes do desenvolvimento capitalista, as questões éticas tornam-se uma necessidade cada vez mais presente.

As concepções éticas atuais têm se evidenciado pela exigência de tomada de posição, em face de acontecimentos cada vez mais desumanizadores, bem como, pela necessidade da concretização plena dos direitos civis, políticos e sociais e ampliação da democracia.

A referência à necessidade de concretização da cidadania remete a um fato de grande repercussão para o surgimento da sociedade moderna, ou seja, a falência do feudalismo e a ascensão da burguesia, cujo vetor de movimentação assentava as bases na luta pelos ideais burgueses da liberdade e da igualdade.

A discussão acerca da cidadania ocupa um espaço importante, quando a compreensão da posse subjetiva da liberdade do ser humano é exaltada e revelada na Declaração dos Direitos Humanos, onde se estabelece que todos os homens nascem livres e iguais. Esses são alguns dos passos na direção de uma sociedade democrática e humanizada, pela qual se luta até hoje.

A idéia de liberdade que foi estabelecida no direito formal da sociedade burguesa e do Estado liberal, não adquire o sentido de liberdade universal e real, pela existência da prática da desigualdade e confronto de interesses de classes divergentes.

A liberdade humana é um princípio ético fundamental que não pode ser compreendido apenas em seu sentido abstrato. A base de sua concretização está na superação dos limites naturais, humanos e sociais, o que representa, antes de tudo, autoconsciência do indivíduo enquanto ser singular e genérico, para poder se constituir em sujeito da história.

Para Barroco, a liberdade é uma capacidade ontológico-social e uma ação prática de negação dos impedimentos e entraves à sua realização. Esses entraves estão relacionados às necessidades humanas e às possibilidades de sua satisfação.

Liberdade e universalidade se referem à totalidade e à diversidade de capacidades e necessidades: o ser social é mais livre e mais universal na medida em que tem condições concretas de objetivar suas potencialidades de forma multilateral e de criar novas alternativas. (1996:56)

No seu sentido político, a liberdade se refere às capacidades e possibilidades de escolha dos indivíduos em face das opções que se apresentam na realidade social. A liberdade é o fundamento de todos os valores, e o homem faz parte de um universo, onde as possibilidades de escolhas podem se tornar cada vez mais amplas.

A importância dos valores está na condução da realização dessas possibilidades humanas. Neste sentido, os problemas éticos implicam uma tomada de posição, diante das situações que se apresentam na realidade social. São posicionamentos que envolvem, consequentemente, a capacidade de optar mediante situações complexas.

Sendo a essência humana a “realização gradual e contínua das possibilidades imanentes à humanidade”, o valor é tudo aquilo que contribui com esse processo de crescimento do gênero humano.

Neste sentido, Barroco (1996:77) define ética, moral e política como meios propiciadores da elevação do indivíduo à dimensão humano genérica:

A ética – enquanto reflexão filosófica dirigida ao humano-genérico -, a moral – enquanto ação prática voltada a objetivação dos valores humano-genéricos – e a política – enquanto práxis de superação dos impedimentos objetivos à realização das forças essenciais do ser social – se inserem dentre as atividades propiciadoras da elevação ao humano genérico, na possibilidade de instauração da particularidade, ou seja, da mediação entre o particular e o humano genérico que corresponde à individualidade.

A moral faz parte das necessidades práticas do cotidiano da vida social, que contribui para o estabelecimento do ethos[47] e sua representação como identidade cultural de uma sociedade, ou fração da sociedade: sendo marcada pela contraditoriedade entre interesses econômicos, políticos, culturais e necessidades sociais.

A ética é constituída na práxis humana concreta e relaciona-se a cada momento histórico de desenvolvimento das condições socioeconômicas e culturais da sociedade. A sua discussão situa-se nesse contexto político de decisão e de possibilidade de escolha. As normas e os valores, criados pelo homem, adquirem objetividade a partir dessa tomada de posição, porém, situados em uma sociedade de classes, são movidos por necessidades e interesses contraditórios.

Concordamos com a afirmação de Barroco de que a contraditoriedade entre interesses e necessidades dificulta, de certa forma, a concretização de uma concepção de bem que represente os interesses coletivos, pois adquirem significados diferentes nas diversas classes, visto que são direcionados por interesses divergentes.

As determinações que incidem sobre a eleição de determinados valores morais podem ser entendidos na totalidade social. Isto é, levando em conta a complexa rede de mediações existentes na interação recíproca entre as necessidades e interesses econômico-políticos e culturais e as possibilidades de escolha e determinação dos indivíduos sociais. São os homens que criam as normas e os valores, mas nas sociedades de classes, as relações sociais por eles estabelecidas são movidas por necessidades e interesses contraditórios, donde a impossibilidade de existirem valores absolutos ou uma concepção de bem que corresponda ao interesse e necessidade de todos. Por isso, a moral é também marcada por essa contraditoriedade; seus valores e princípios têm historicamente diferentes significados e atendem, indiretamente, a interesses ideológicos e políticos de classes e grupos sociais. (Barroco, 1999: 123)

Na sociedade de classes os valores estão permeados, portanto, por necessidades e interesses contraditórios, donde muitas vezes os interesses da coletividade são preteridos por interesses de indivíduos particulares.

A ausência de compreensão dessa realidade pode conduzir a um processo de alienação[48], onde a falta de clareza desta questão leva a uma descaracterização da ação pelo próprio indivíduo, que não se reconhece como sujeito de sua prática.

Por conseguinte, o entendimento da dimensão ético-política da ação dos sujeitos, está na compreensão das contradições da realidade social e da capacidade dos homens agirem de forma ativa e consciente, no processo de transformação dessa realidade e de construção da história.

Se o indivíduo alcança a consciência da universalidade, se reconhecendo como ser humano genérico, assume uma atitude de reconhecimento face às questões que se referem à coletividade, podendo, portanto, comprometer-se com projetos coletivos. Esse compromisso se concretiza pela tomada de posição, pela escolha em face de determinada situação social concreta. Essa tomada de posição, consciente, caracteriza a relação da ética com a política.

A adesão consciente à norma supõe a autonomia diante das escolhas morais; o sujeito ético é capaz de deliberar diante do possível historicamente, de forma responsável e livre. Mas a consciência, o conhecimento crítico não são suficientes para garantir a ampliação dessa autonomia; sua realização objetiva supõe a unidade entre a ética e a política, pois esta se faz no campo dos conflitos, da oposição entre projetos sociais, caracterizando-se, pois, pela organização coletiva na luta entre idéias e projetos que contém valores e uma direção ética. (Barroco: 1999: 127)

Por essa práxis social, os indivíduos se elevam à sua universalidade, mas sem perder sua singularidade. Mas, nesse processo enfrentam contradições que podem dificultar essa apreensão consciente da realidade social. Tais contradições tornam-se mais visíveis quando verificamos o conflito entre interesses particulares de indivíduos e interesses coletivos, da sociedade.

No entendimento de Barroco,

A atividade política supõe a projeção ideal do que se pretende transformar, em qual direção, com quais estratégias; por isso, implica em projetos vinculados a idéias e valores de uma classe, de um estrato social ou de um grupo. A ideologia, tomada enquanto uma forma de enfrentamento dos conflitos sociais, é parte da práxis política. (idem: 89)

Compreendemos então, que formas de apreensão do significado da ética podem estar vinculados a pontos de vista diferenciados: por um lado podem limitá-Ias à prática moral, individualizada, definida no cotidiano pela obediência à normas e deveres, desvinculada de sua relação com a política e do seu sentido genérico social. Noutro ponto de vista, a moral pode ser compreendida como uma relação social e a ética como uma ação e reflexão teórica. O ser social é entendido em sua totalidade, na compreensão da sua universalidade, como ser humano genérico.

É a partir dessas fundamentações teóricas e filosóficas, permeadas por pontos de vista diferenciados, que se constroem as concepções de ética das profissões, onde se definem princípios, normas, orientações gerais e específicas para a inserção de uma determinada profissão no contexto da prática social. Mas, como isso pode ser colocado, especificamente, no cotidiano de trabalho do assistente social?

  1. 2.    A ética e o trabalho do assistente social

 

A ética é um aspecto fundamental na dimensão prática de qualquer profissão, pois pelo processo de reflexão ética é possível tanto a análise crítica da realidade social, como a influência na tomada de decisão política.

No caso do Serviço Social, a reflexão ética assume um conteúdo complexo pela própria especificidade de constituição das demandas[49] que se colocam aos profissionais em seu cotidiano de trabalho. Tais demandas se constituem em exigências concretas a necessidades sociais, muitas vezes imediatas, no interior de uma realidade adversa e contraditória.

Estas contradições e adversidades que fazem parte do cotidiano de trabalho do assistente social, e muitas vezes se tornam o próprio caminho de sua atuação profissional.[50]

Segundo Barroco (1999:132) “o conteúdo da ética profissional “é construído na práxis cotidiana, espaço de confrontos das situações de conflitos que demandam um posicionamento de valor.”

A dimensão da ética no espaço de realização da profissão vincula-se ao papel que a mesma desempenha na sociedade, em um período histórico determinado. Na realidade, as profissões incorporam os valores em vigor. Mas, também instituem os veículos de discussão e re-atualização desses valores e princípios éticos-morais.

A problematização dos valores que fundamentam as profissões são enunciados através dos seus códigos de ética, os quais tanto podem se referir a dimensão social na qual a profissão se insere, como aos aspectos específicos das relações estabelecidas por tal profissão no período e contexto social em que se realiza.

A reflexão ética institui as bases para afirmação do conhecimento e compromisso profissionais, estabelecendo meios para uma postura e consciência dos profissionais.

Barroco (1999: 129) afirma que a ética profissional é uma dimensão da profissão vinculada organicamente às dimensões teórica, técnica, política e prática. Neste sentido, a autora expõe três esferas constitutivas da ética profissional, as quais consideramos importante expor aqui, visto que nos concede uma compreensão melhor das particularidades dos elementos presentes na ética profissional.

• A Esfera Teórica constitui-se de orientações filosóficas e teórico-metodológicas que fundamentam as concepções éticas profissionais (valores, princípios, visão de homem e de sociedade)

• A Esfera Moral Prática que envolve: o comportamento prático individual dos profissionais em suas ações, orientadas pelas suas visões de mundo, juízos de valor, responsabilidades, compromisso social, e o conjunto das ações profissionais em seu processo de organização coletiva, direcionada teleologicamente para a realização de determinados projetos com seus valores e princípios éticos.

• A Esfera Normativa expressa no Código de Ética Profissional, uma exigência estatutária, que é referida a todas as profissões liberais. Constitui-se de um código moral, onde se orienta o comportamento individual dos profissionais e se define uma direção social, através de um projeto profissional. (Cf. Barroco: 1999: 129)

Nesta perspectiva, apontamos aqui para a necessidade de uma constante reflexão teórica, que deve ser realizada pelo assistente social no cotidiano de sua atuação. Tal reflexão envolve a compreensão dos princípios ético-políticos explícitos no código de ética, Tais princípios configuram as orientações de um projeto profissional, que se incorpora num processo de constituição da ética profissional, mas se caracteriza por uma perspectiva mais ampla, na medida em que aponta para um ideal maior que é o compromisso social, a defesa da democracia, da cidadania e da justiça social, indicando, claramente, um posicionamento político na medida em que aponta para um processo de construção de uma nova ordem societária.

Quando voltamos essa discussão para o cotidiano profissional do assistente social, uma questão que nos ocorre é a importância que a ética assume 00 espaço de concretização da ação profissional. Pois, existem caminhos, estratégias que, utilizadas  pelo assistente social no cotidiano, consideramos que estão em conformidade com as orientações do projeto ético- político do Serviço Social.

Neste sentido, enfatiza-se aqui a importância da utilização sistemática do código de ética pelo assistente social, visto que, contribui para o direcionamento profissional; fruto dos posicionamentos ético-políticos construídos historicamente pela profissão e que precisam materializar-se nas ações cotidianas.

Mas, como isto pode ser realizado! Tentaremos apontar alguns caminhos que, na nossa concepção, podem contribuir com esse processo.

  1. 3.    O projeto ético-político e o cotidiano de trabalho do assistente social

 

Procurar viabilizar o trabalho profissional orientado pelos princípios ético-políticos do projeto profissional é um desafio que se coloca para o assistente social em seu cotidiano, visto que, antes de tudo, deve-se reconhecer que as dificuldades presentes são resultantes de um projeto maior que é o da ordem capitalista. Então, o primeiro passo é reconhecer o projeto ético-político profissional, partindo da análise da realidade contemporânea e das contradições que se apresentam no contexto atual.

O segundo passo é torná-lo visível no cotidiano de trabalho, onde a defesa da universalidade, da liberdade, da democracia, da cidadania torne-se componente essencial da atuação profissional. A perspectiva deve ser de buscar garantir ações articuladas às necessidades concretas da população.

Outra questão é não se amoldar ao mero fazer cotidiano, às práticas rotineiras, repetitivas e imediatas, o que não significa negá-las. Pois é preciso saber conduzir essas ações, mas dentro de um projeto, que leve em consideração as reais necessidades da população e as possibilidades conjunturais. Para isto, o profissional precisa ter uma postura investigativa que lhe permita identificar os problemas, classificar as prioridades, visualizar os caminhos possíveis, estabelecer as alianças e conduzir o processo interventivo.

A consciência ética do profissional se faz na análise e  enfrentamento dos  conflitos cotidianos, na sua crítica, na  compreensão das contradições que se apresentam e em proposição de estratégias.

De acordo com Iamamoto (1997:08), as possibilidades são dadas pela realidade, compete ao assistente social apropriar-se delas, transformando-as em projetos de trabalho, abrindo os horizontes para uma nova perspectiva frente às adversidades conjunturais.

Um quarto ponto que consideramos importante é a participação e envolvimento dos assistentes sociais em fóruns de discussão que envolvam os direitos humanos, políticos e sociais. Certamente isto influirá na sua atuação cotidiana, inclusive considerando-se que uma das atribuições do assistente social consiste em prestar as informações e esclarecimentos sobre direitos dos usuários e, para isso é preciso ter conhecimento, domínio teórico, político, efetivo sobre esses direitos.

O nosso entendimento é de que esse processo de participação e envolvimento dos assistentes sociais nos momentos onde se travam as discussões e movimentos, de constituição de direitos sociais, é fundamental para a compreensão da realidade e consequentemente para definição de suas proposições e estratégias de atuação.

Uma outra questão é ter clareza de que sendo o assistente social formado como um generalista, para trabalhar com as seqüelas da “questão social”[51], a inserção dos profissionais em áreas como: saúde, judiciário, educação, assistência social, ong’s, empresas, etc., requer um posterior aprofundamento, de acordo com a especificidade institucional em que se vai atuar.

Este aprofundamento deve ser constituído pela busca sistemática de fundamentação do objeto de intervenção através do conhecimento e leis, regulamentações, produções teóricas da área específica e do Serviço Social, como também pela troca de experiências no contato com profissionais na instituição, ou em outras instituições afins, em outras cidades, outros estados, num processo de socialização de conhecimentos, dúvidas e questionamentos.

Os conhecimentos adquiridos no próprio trabalho[52] contribuem para a compreensão da realidade institucional e das demandas colocadas à profissão, ao mesmo tempo possibilitam ao profissional realizar proposições. Então, ao se inserir em uma determinada área, o profissional deve procurar especializar-se e conhecer profundamente esse espaço de atuação, pois isto lhe dará as possibilidades e à competência para elaborar propostas de atuação efetivas.

Outra indicação que apontamos é a identificação e reconhecimento das demandas colocadas ao Serviço Social, que podem se referir a um conjunto de situações que envolvem as necessidades pessoais, familiares, dentre outras, que apesar de se apresentarem como questões individuais, se referem a necessidades coletivas, como por exemplo:

• a busca de serviços como: saúde, assistência social, etc.;

• a solução de situações que impedem ou se constituem obstáculos no acesso aos serviços;

• as dificuldades de informações sobre o funcionamento de determinado serviço, ou às condições e capacidade de atendimento que contribuem para a existência de uma demanda reprimida;

• a falta de conhecimentos sobre os direitos e as formas de exercê-lo.

Estas, dentre outras, são demandas que se apresentam para o Serviço Social e que o profissional precisa ter clareza e reconhecer a necessidade de transformá-Ias a partir de ações efetivas.

Para nós, a identificação e reconhecimento dessas situações como demandas, pelo assistente sociais faz parte do esforço pelo reconhecimento dos direitos e da preocupação com a sua discussão e efetivação; ou’ ainda a organização de ações que envolvam a melhoria das relações que se estabelecem dentro da instituição e desta com a população, passa pela necessidade de democratizar os espaços e efetivar ações de reconhecimento da cidadania e concretização dos direitos sociais.

Na realidade, a forma de problematização das demandas, ou seja, o processo de construção do objeto de’ intervenção é que vai refletir e prescindir de uma direção ético-política. O nosso entendimento.é de que o conjunto de ações voltadas para assegurar o acesso ao direito universal, com’ relação à realidade, às necessidades e à cultura dos usuários é que vincula as ações profissionais às orientações do projeto ético-político.

Se no conjunto dessas ações, as atividades profissionais são direcionadas no sentido de conformar ou adaptar a população à uma dada realidade de exclusão social, de fragmentação do acesso aos serviços, de aceitação da seletividade e da situação colocada, estas ações com certeza se distanciam das necessidades dos usuários e consequentemente das orientações do projeto ético-político.

Neste sentido, é fundamental a compreensão da realidade, para que se possa criar as possíveis estratégias de ultrapassagem dessas situações que foram expostas.

É um processo complexo, envolve uma série de questões e situações, que engloba desde o planejamento das ações, à socialização e execução das mesmas. É, neste sentido, que são viabilizadas as atividades dos assistentes sociais. Ou seja, o processo de articulação e execução do trabalho depende do posicionamento profissional em face das necessidades coletivas.

Quando convoca reuniões, cria formas alternativas de trabalho, que envolva a participação da população, expõe objetivos na execução dos trabalhos e envolve as equipes na instituição, ou mesmo quando se realiza atividades educativas, verifica-se no planejamento e na execução de políticas, a necessidade de articulação do trabalho coletivo, e de propostas, cuja iniciativa do Serviço Social seja de articular, socializar, envolver setores na realização de ações que respondam às demandas.

Com certeza tais atividades estão permeadas por inúmeras dificuldades, mas este fato não pode servir de empecilho para a concretização do trabalho, ao contrário, é preciso contorná-las e qualificá-las, em função das necessidades e interesses da população.

E uma última questão que considero importante salientar é sobre o processo de organização coletiva da categoria, que realmente precisa de um fortalecimento, isso envolve o compromisso do assistente social consigo mesmo, com a profissão e com a sociedade. Esta é uma questão que merece ser discutida e aprofundada no âmbito da categoria profissional, que encontra-se, ao nosso ver, bastante desarticulada.

  1. 4.    Conclusão:

 

As indicações aqui apresentadas não devem ser vistas como uma tentativa de construir um modelo de atuação profissional, é preciso cuidado para não incorrer neste erro, pois lidamos com questões da realidade, que pela sua dinâmica não comporta aplicação de modelos ou fórmulas mágicas. A nossa intenção é mostrar que existem possibilidades que devem ser apropriadas.

Concordamos com Iamamoto (1998:99) quando afirma que a dimensão política presente no exercício profissional abre as possibilidades de neutralizar a alienação do trabalho para o sujeito que a realiza.

Para isso é importante que o assistente social esteja inserido em todos os espaços coletivos, participando de conselhos de conferências, de debates de repercussão social.

É preciso compreender as orientações presentes no Código de Ética do Serviço Social, reconhecendo o projeto profissional, e isso se faz resgatando a historicidade da profissão e sua inserção no contexto das contradições da sociedade capitalista. Compreendendo que, como projeto coletivo aponta para as possibilidades de alcance dos ideais de uma coletividade, que só pode adquirir consistência na análise da realidade e na ação. É no movimento do espaço cotidiano que o profissional deve explorar, as reais possibilidades, reconhecendo os limites de seu trabalho, fazendo uso, consciente, dos meios e estratégias para a concretização do que é planejado.

Enfim, podemos reafirmar após todas essas considerações, que a ética é fundamento de todo o processo da sociabilidade. E hoje, constitui uma das questões urgentes e necessárias em face da desigualdade, da crescente desumanização e miséria social, tornando-se cada vez mais categórico, no processo de construção de uma nova organização social e política, onde a vida seja reconhecida como direito radical, e as manifestações que buscam afirmar os direitos humanos e a justiça como práticas cotidianas sejam respeitadas.

O nosso entendimento é de que no cotidiano profissional, deve ser criado o espaço ético-político, que propicie a consolidação do projeto profissional, e isso requer um esforço conjunto dos assistentes sociais, isso implica em uma organização maior da categoria profissional.

É preciso compreender o que representa, hoje, o projeto ético-político do Serviço Social, e isso se faz analisando a sociedade atual e rediscutindo-o, repensando inclusive novas orientações para a profissão.

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A centralidade ético-política do Serviço

Social: reflexões a partir da

problemática da violência de gênero

 

Miriam de Oliveira Inácio[53]

 

Qual o lugar que o componente ético-político vem ocupando nas reflexões sobre o exercício profissional do Serviço Social na atualidade? É pertinente falar de uma centralidade ético-política no exercício profissional? Como ela se expressa e quais suas contribuições para o desvelamento da prática profissional numa realidade social mais ampla?[54]

Hoje, nos parece que tais reflexões se tornam cruciais.Quando já há aproximadamente dez anos após a aprovação do código de ética (1993) e a legitimação, pela categoria organizada, de um projeto ético-político voltado para a plena emancipação humana, ainda nos deparamos com uma enorme distância entre as orientações propostas pelo projeto ético-político profissional e a prática cotidiana do (a) Assistente Social nos seus campos de trabalho.

O que está na pauta do debate atual é a própria viabilidade do atuai projeto profissional, pois se de um lado nos deparamos com o desconhecimento de parcelas significativas da categoria sobre o projeto profissional e o próprio código, de outro identificamos uma compreensão errônea de alguns que consideram tal projeto de cunho reformista ou até mesmo utópico.

E o por quê dessas reflexões a partir da problemática da violência de gênero? Em função de o Serviço Social desenvolver uma atuação nesta área que possui um caráter eminentemente educativo junto à família, que requer a utilização de valores éticos, podemos afirmar que esta centralidade ético-política torna-se mais evidente.

Neste artigo, iremos analisar a dimensão ético-política e sua centralidade no exercício profissional a partir do cenário institucional de atenção à violência de gênero nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM’s).

Para isso, sentimos a necessidade de recuperar, ainda que brevemente, o estágio atual do debate ético no Serviço Social e o papel da ética profissional enquanto reflexão crítico-filosófica sobre as respostas profissionais diante dos desafios e contradições da realidade social. Abordaremos, também, algumas particularidades do trabalho de atenção à violência de gênero nas DEAM’s, destacando as respostas profissionais do Serviço Social às demandas sócio-educativas aí expressas, ou seja, caracterizando seu ethos profissional.

Compreendemos que em qualquer espaço de atuação profissional, ainda que o sujeito não tenha a consciência moral[55] de que trabalha com elementos valorativos, sabemos da existência de “crenças silenciosas” que movem e dirigem as ações, no cotidiano profissional, para uma determinada perspectiva, que estará sempre associada a um projeto de sociedade, com suas implicações ético-políticas.

Partilhamos da perspectiva que considera a ética[56] enquanto espaço de reflexão crítico-filosófica sobre os valores morais e a conduta humana. Se fundamentada numa perspectiva crítica, pode realizar a crítica radical aos valores dominantes na sociedade, desmistificar o significado sócio-político desses valores e o seu papel na reprodução de determinadas relações sociais.

Para que exista qualquer ação ética é necessário que o indivíduo tenha liberdade de escolha. Portanto, a liberdade é condição fundamental da existência ética, uma vez que sem a possibilidade de escolha e autonomia, o indivíduo não pode ser responsabilizado pela sua conduta moral.

A liberdade como capacidade humana, constitui-se valor central da ética. O homem, enquanto ser histórico-social, age eticamente porque é capaz de agir de modo consciente e livre, ao dispor de condições objetivas para criar alternativas e escolhas. (Barroco, 2000).

Recuperando o debate ético no Serviço Social, temos que desde o início dos anos 90 até o momento, ocorreu um redimensionamento na compreensão sobre o lugar da ética na profissão. Nesse período, foi possível afirmar que o debate sobre a ética não se restringiu à ética profissional, e que esta não ficou reduzida à sua dimensão normativa, ou seja, ao código de ética. Ficou em evidência a discussão sobre os conflitos entre valores profissionais e pessoais e a necessidade da internalização de valores conciliados ao projeto ético-político profissional objetivado no código de ética. (Paiva et. alli, 1998).

Chegou-se a conclusão que se torna fundamental uma maior publicização desse projeto ético-político, buscando mais possibilidades de viabilização daqueles valores inscritos no projeto profissional[57], considerando evidentemente as particularidades do exercício profissional e os limites impostos pela ordem burguesa (Brites e Barroco, 2000; Iamamoto, 1998).

Foi possível, também, elucidar as várias dimensões da ética profissional, que estão intimamente articuladas: a filosófica, formada pelas bases teórico e ético-filosóficas responsáveis pela concepção de ética e pela reflexão sobre os valores; o ethos profissional, referido à moralidade profissional (a consciência moral dos sujeitos profissionais) e as conseqüências ético-políticas das ações individuais e profissionais (a partir dos posicionamentos ético-políticos dos (as) profissionais, indicando um dever ser implícito no projeto profissional); e a normativa, expressa no código de ética profissional, estabelecendo normas, deveres, direitos e proibições (Barroco, 1~99, 2001; Paiva et. alli, 1998).

Quando falamos da dimensão ético-política de uma profissão como o Serviço Social, estamos nos referindo aos valores e princípios norteadores da profissão, articulados a uma direção social voltada para a defesa de determinado projeto de profissão, em sua articulação com determinado projeto societário.[58]

Nesse sentido, ao pensarmos nessa dimensão ético-política do exercício profissional, vemos que a ética realiza uma mediação entre o saber e a práxis política, por meio da interiorização de valores e princípios profissionais que suscitam novas posturas, ou da construção pessoal e profissional. Daí a intrínseca relação entre ética e política (Paiva e Sales, 1996:203).

No interior do debate sobre a ética profissional no Serviço Social, as discussões que culminaram com a aprovação do atual código compreendem a ética a partir da ontologia do ser social.

Esta concepção já contém, em si mesma, uma projeção de sociedade – aquela em que se propicie aos trabalhadores um pleno desenvolvimento para a invenção e vivência de novos valores, o que, evidentemente, supõe a erradicação de todos os processos de exploração, opressão e alienação (Código de Ética Profissional do Assistente Social, 1993).

Apesar do marxismo não ter elaborado uma ética, ou seja, não podemos afirmar que o marxismo represente uma corrente ético-filosófica, no sentido de elaborar e fundamentar critérios do que venha a ser o ético, a teoria social de Marx faz uma crítica à moral burguesa e nos permite desmistificar o real significado dos valores: suas contradições e seu caráter de classe ou grupo social.

(…) Uma ética fundada em Marx tem um caráter revolucionário. Em termos de reflexão ética exige a crítica radical e a perspectiva de totalidade; em termos de valores se apóia na liberdade e na emancipação humana. Praticamente, supõe um projeto societário de supressão da alienação, da exploração, das formas reificadas de viver moralmente (Barroco, 2001: 198).

De acordo com Barroco (2000), o significado da ética na ontologia social de Marx parte da idéia fundamental de que é o homem, com suas capacidades e potencialidades, que possibilita a ação ética (criação de valor, escolha consciente e objetivação das escolhas). O homem está constantemente se autoconstruindo, por meio do trabalho, respondendo as suas necessidades materiais e espirituais, por meio de mediações (consciência, conhecimento, linguagem, cooperação, valoração de objetos, ações e costumes).

Assim, a ética como reflexão filosófica, possibilita ao homem adquirir uma consciência como ser humano-genérico (Barroco, 1999: 126).

Também o debate sobre a ética profissional nos marcos da teoria marxista vai resgatar as conexões entre as demandas sociais postas à profissão e suas possibilidades de resposta frente aos projetos societários divergentes na sociedade.

Nesse sentido, compreende-se que o ethos profissional é construído na relação entre as necessidades sócio-econômicas e ídeo-culturais e as possibilidades de escolhas ético-morais dos sujeitos profissionais (Barroco, 2001:68).

Então, as discussões sobre a ética profissional estão articuladas a uma compreensão da ética enquanto reflexão crítica, filosófica, radical e de totalidade. Nesse sentido,

A ética volta-se para a apreensão dos fundamentos sócio-históricos da moral, donde a compreensão de que o ethos pertence ao domínio da práxis e da liberdade – e que moral e ética são produtos históricos e respostas a necessidades, de acordo com o que é possível em cada momento histórico (Barroco, 1996:94).

Conforme Iamamoto (1998), é importante, também, explicitar a dimensão teleológica do trabalho[59], considerando o sujeito da atividade laborativa e seu nível de consciência ético-política, que com seus “ethos” (costumes, valores, virtudes, vícios e projetos) e autonomia criam as finalidades para sua atuação, uma vez que “esse ato de acionar consciente, que é o trabalho, é uma atividade que tem uma necessária dimensão ética, como atividade direcionada a fins, que tem a ver com valores, com dever ser, envolvendo uma dimensão de conhecimento e ético-moral”. (Iamamoto, 1998: 61),

Se analisarmos a problemática da violência contra a mulher, o recurso ao componente ético-político nos parece indispensável, uma vez que a intervenção de diferentes setores profissionais sobre tal problemática envolve a relação entre as dimensões público e privado, visto que.a violência ocorre majoritariamente no espaço familiar.

Nas ações dos (as) diversos profissionais existe a possibilidade da adoção de valores – ainda que de forma inconsciente – construídos sobre um ethos societário dominante e legitimador do machismo e do preconceito dispensado às mulheres, podendo traduzir-se em práticas de naturalização da violência contra a mulher; e conseqüentemente de violação dos seus direitos humanos.

Portanto, torna-se relevante destacar a influência do ethos[60] individual/ profissional na direção do trabalho, tendo em vista que o cenário institucional de violência contra a mulher parece ser um terreno propício para a reprodução de valores construídos sobre um ethos dominante marcado pela hierarquia de gênero.

Desde a criação das primeiras Delegacias da Mulher, o Serviço Social tem sua inserção voltada para um atendimento social e moral, cuja finalidade é desenvolver uma política de prevenção criminal, orientar a mulher sobre seus direitos e valorizar sua auto-estima para romper com a impotência diante da violência.[61]

A ação do Serviço Social exige uma intrínseca relação entre Gênero e Ética, tendo como eixo a defesa dos Direitos Humanos. Isso porque os (as) profissionais trabalham com elementos valorativos – remetendo para o campo da ética – que podem vir a reforçar ou a desconstruir o padrão dominante de relações de gênero presente na sociedade.

As DEAM’s atendem majoritariamente a casos de violência conjugal, donde praticamente todos (as) os (as) profissionais que aí trabalham realizam uma atividade de aconselhamento junto a vítimas e agressores, uma vez que tanto homens como mulheres procuram esta instituição em busca de orientação sobre seus direitos sociais e humanos.

Os (as) profissionais atuam junto à família, emitem opiniões e juízos de valor sobre a problemática da violência contra a mulher, extrapolando as atividades meramente policiais, em função do tipo de crime, por se tratar de uma violência que ocorre na família: a violência conjugal.

Conforme Silva (2002), as ações das DEAM’s podem ser divididas em atribuições/obrigações e práticas extrapoliciais não regulamentadas. Com base nos dados da “Pesquisa Nacional sobre as condições de funcionamento das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres[62], essa autora destaca que em termos de suas atribuições oficiais, 92,13% das delegacias dizem realizar atendimento às mulheres vítimas de violência, registrando, apurando e investigando queixas; 42,79% afirmam praticar conciliação e mediação entre as partes conflitantes; 37,83% fazem atividades de prevenção à violência contra a mulher e 29, 69% afirmam realizar atendimento psicológico e social às mulheres.

E considerando as práticas não regulamentadas oficialmente, vistas como extrapoliciais, os (as) profissionais entrevistados (as) afirmam realizar práticas educativas, além das suas atribuições normalizadas, como aconselhamento (93,63%) e palestras sobre gênero e violência nas escolas (55,43%).

A autora chama a atenção para a responsabilidade dos agentes envolvidos nessas tarefas de natureza educativa na democratização das relações de gênero, pois se é atribuição precípua das DEAM’s a criminalização, tais práticas devem ocorrer à luz de valores éticos do respeito aos direitos humanos e da integridade moral e física das mulheres (2002:11).

Conforme Brandão (1998), em estudo realizado sobre o atendimento policial em uma Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro, ocorre entre os (as) profissionais uma naturalização da violência conjugal e, por conseguinte, uma banalização da intervenção sobre a mesma, em que a investigação do fato cede lugar à discussão sobre a conduta moral da “vítima” e do “acusado”.

A prática do Serviço Social não está imune a este contraditório cotidiano institucional. Se o (a) profissional está inserido num contexto social em que predomina a banalização da violência de gênero, baseado na idéia de que em briga de marido e mulher não se mete a colher, por ser esta modalidade de violência uma questão da vida privada que não merece intervenção pública, várias inquietações devem permear a intervenção do (a) Assistente Social nesse campo.

Por exemplo, como os (as) Assistentes Sociais se posicionam diante da questão da ambigüidade feminina? Essa ambigüidade se expressa em algumas posturas da mulher; como por exemplo, quando ela denuncia e, ao mesmo tempo, não deseja punir legalmente o companheiro agressor; ou quando, ela demonstra insatisfação com o agressor e, por outro lado, valoriza suas qualidades de “bom pai” e chefe da casa.

As próprias expectativas das mulheres em relação à Delegacia já contêm, em si, uma ambigüidade, pois “ao reivindicarem determinadas medidas ‘corretivas’ contra os parceiros, as mulheres não buscam uma punição específica para aquele delito denunciado, mas a restauração de toda uma ordem que confere sentido não só àquela relação, mas à sua existência social” (Brandão, 1998:63).

Conforme Brandão (1998), o recurso feminino à polícia torna-se um meio de reforçar a lógica de gênero na perspectiva do restabelecimento do regime ideal (tradicional) de relação entre os sexos, mas sem a violência, haja vista a visão da polícia como “ordem masculina”.

A questão da violência contra a mulher precisa ser analisada a partir de uma compreensão de gênero[63], fundamental para se entender a questão da ambigüidade feminina: a maioria das mulheres não quer punir o agressor, mas estabelecer novas relações, fundamentalmente sem violência.

Numa Delegacia da Mulher, a intervenção do Serviço Social se diferencia da prática eminentemente policial, visto que as demandas postas à profissão referem-se a ações sócio-assistenciais (esclarecimento e encaminhamentos relativos a questões de pensão alimentícia, separação judicial, partilha de bens, etc.) e ético-educativas (negociação de conflitos familiares e conjugais), devido a dimensão educativa da profissão[64].

A dimensão educativa do trabalho do (a) Assistente Social interfere no modo de pensar e viver dos usuários: “essa prática se delineia a partir das mediações entre o universo simbólico dos usuários e o paradigma teórico-metodológico adotado pela profissional, que, por sua vez, se sustenta em uma determinada visão de mundo, organizadora de seu universo simbólico” (Silva, 1992)[65].

Em relação às perspectivas ético-políticas do trabalho profissional do Serviço Social, identificamos a possibilidade de uma heterogeneidade quanto à direção social do trabalho, em que se mesclam práticas balizadas tanto no ideário conservador quanto no feminista.

Em primeiro lugar, devemos considerar que a expectativa da maioria das mulheres que procuram a DEAM é a “harmonia” familiar e não a sua dissolução.

A família nuclear burguesa é o modelo hegemônico na nossa sociedade e a tendência predominante é o reforço desse modelo de família “( … ) seguidora das tradições, composta de mãe, pai e filhos, coexistindo por laços de aliança e consangüinidade, vivendo numa casa harmoniosa e destinada a ser feliz para toda a vida” (José Filho, 2001:79).

O ideário conservador traduz-se na defesa da família nuclear, em que os determinantes da violência contra a mulher estão associados a problemas de “desestruturação familiar”.[66]

De Maistre Bonald, filósofo francês representante do pensamento conservador, afirmou que “a autoridade – e daí a liberdade ou autonomia – da família é sacrossanta; nem o Estado nem a Igreja têm o direito de transgredir as prerrogativas ligadas ao parentesco” (Nisbet, 1987:70 Apud Barroco, 1996:141).

Na história do Serviço Social, vamos encontrar a origem do ethos profissional na ideologia conservadora e na moral positivista, fundamentados na defesa da família tradicional e da moralidade “feminina” que aprisiona o papel da mulher às suas características naturais (Barroco, 1996:225).

Trata-se de uma perspectiva ética conservadora que restringe a mulher ao espaço da vida doméstica, em que seu trabalho configura-se útil à acumulação do capital tanto do ponto de vista do processo reprodutivo, como da educação moral que lhe é atribuída para garantir a harmonia na sociedade. Nesse sentido,

o homem deve sustentar a mulher, a fim de que ela possa preencher convenientemente seu santo destino social. (…) sob a santa reação da revolução feminina, a revolução proletária purificar-se-á espontaneamente das disposições subversivas que até aqui a têm neutralizado (Comte, 1977: 115 Apud Barroco, 1996: 115).

Tal tendência faz parte do modelo predominante existente na sociedade contemporânea, pois segundo Barroco (1996:81), “os comportamentos orientam-se por valores, compondo um conjunto de papéis sociais vinculados ao ethos socialmente legitimado”.

As práticas precisam, portanto, ser analisadas dentro de um contexto mais amplo de uma sociedade estruturada sobre múltiplos processos de opressão de classe, gênero e raça. E a instituição e os (as) profissionais que nela trabalham tendem a reproduzir preconceitos e moralismos, atitudes dominantes na sociedade.

Uma outra direção possível é aquela baseada no ideário feminista, ou seja, voltada primordialmente à defesa da igualdade de direitos entre os gêneros, compreendendo que a violência contra mulher é uma questão histórico-cultural, fazendo parte das relações de gênero dominantes na sociedade.

As propostas do movimento feminista são vistas como potencializadoras de conflitos e estímulos à dissolução da família (Rodrigues, 1998:257). Isto porque a defesa dos direitos humanos das mulheres se torna um valor moral superior a defesa da família quando ocorre a violência contra a mulher e esta decide dissolver uma relação conjugal marcada pelo machismo, valor dominante na sociedade.

Nos anos 80, o feminismo[67] foi marcado pelas lutas contra a violência de gênero, afirmando que ‘o privado é também político’, questionando os valores morais da família, colocando na agenda de discussão as questões do corpo, da sexualidade, da liberdade e do amor (Bandeira, 2000:31).

Portanto, foi no século XIX que se assistiu ao surgimento de um dos mais significativos movimentos sociais que se configurou plenamente na segunda metade do século XX, o Movimento Feminista. Após longos séculos de exclusão e de dominação, as mulheres conheceram a possibilidade histórica de pensarem a sua condição, não mais como um destino natural-biológico, conseqüente da condição imposta pelo direito universalizante do mais forte, ao contrária, como sujeitos de uma situação social nova (Varikas, 1989) (Bandeira, 2000: 16).

É necessário compreender, portanto, a caracterização do ethos profissional do Serviço Social na área da violência de gênero a partir das diversas necessidades sócio-culturais postas como demandas à profissão, como já abordamos: a expectativa das mulheres em restabelecer a relação conjugal, muitas vezes baseadas na continuidade da hierarquia de gênero, mas livre da violência; e das demandas postas pela instituição policial para realizar um trabalho educativo, portanto extrapolicial, para resolução dos conflitos familiares.

Compreendendo que o ethos profissional se refere à consciência moral dos sujeitos da atividade, e que esta se orienta por determinados valores e perspectivas, expressando o comportamento profissional, cabe ao (a) profissional pensar como aquelas perspectivas estão presentes na sua atividade, identificando as conseqüências ético-políticas de sua ação nesta área da violência contra a mulher. A profissão tem contribuído para a democratização das relações de gênero e garantia dos Direitos Humanos das mulheres? Por realizar uma atividade predominantemente extrapolicial, de cunho educativo, tem potencializado, também, os encaminhamentos necessários à punição do agressor?

Portanto, nos parece que a dimensão ético-política do Serviço Social adquire uma centralidade na atenção à problemática da violência de gênero, uma vez que requer uma reflexão crítica sobre os valores de gênero hegemônicos na sociedade, e que perpassam tanto o campo institucional, quanto às crenças dos indivíduos sociais.

É fundamental potencializar o debate que já se iniciou, acerca do papel da ética profissional enquanto reflexão crítico-filosófica sobre as respostas profissionais diante dos desafios e contradições da realidade social, destacando a relação entre projeto profissional e projeto societário.

Na área da violência contra a mulher o que está em jogo é a Defesa intransigente dos direitos humanos das mulheres; a opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero; e o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças, princípios defendidos pelo código atual (CFESS, Código de Ética Profissional do Assistente Social, 1993).

Esses princípios se constituem em orientações fundamentais para o exercício, em que a sua incorporação tem suscitado novos posicionamentos profissionais capazes de interferir na vida cotidiana das mulheres atendidas pelo Serviço Social.

Contudo, aqueles valores adquirem um caráter abstrato no capitalismo, que torna impossível a plena efetivação daqueles princípios. A dominação de gênero é aprofundada e consolidada no interior da sociedade capitalista, donde a discriminação dispensada à mulher serve ao sistema de dominação capitalista. Por exemplo, foi com o aparecimento da propriedade privada que a Mulher ficou subordinada aos homens no seio da família. (Moraes, 2000).

Mas, considerando que os homens e as mulheres fazem a história sob determinadas condições, a trajetória histórica das lutas feministas nos tem demonstrado que existem possibilidades para a conquista de novos direitos.

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Ética em movimento: ‘ uma experiência de pesquisa na atuação ético-política do(a) Assistente Social

 

 

Cyntia Raquel V. Medeiros

Flávia Franca de Carvalho

Marina Guimarães Gondim

Nicoly Danielle Neves

Rauliana Karina Sales*

 

O conceito de ética no momento está passando por um processo de popularização, utilizado aleatoriamente no cotidiano do cidadão comum. Fala-se em ética em filas de banco, em bares, nas conversas informais entre amigos e em outros espaços de convivência social. No entanto, são nos espaços de atuação dos profissionais que a ética ocupa um locus original, mesmo quando esta não é falada e nem discutida, pressupõe-se que os profissionais, principalmente os de nível superior, encarem um comportamento ético, assumindo valores que coincidam ou se contraponham às normas institucionais, à sua categoria profissional e à moral social vigente, que é determinada e construída historicamente.

Nos dias de hoje, podemos exemplificar estes valores culturais no âmbito profissional, como um simples cumprimento de horários, respeito ao trabalho do outro, postura honesta diante das requisições institucionais, atendimento qualificado aos seus usuários, clientes, pacientes e etc.

A escolha deste tipo de procedimento não é apenas casual, mas cultural, pois, a ideologia hegemônica da classe burguesa determina os valores morais para a sociedade. Estes valores embasam um posicionamento político, que pode ser limitado à ação profissional, não atingindo diretamente as causas dos problemas sociais.

Segundo Chauí, “Não se pode pensar na ação ética sem pensá-la como uma ação política. Por que na medida em que a ação do sujeito entra em contradição ou’ em conflito com a moralidade universal e abstrata da sua sociedade, a ação que ele realiza ou é de conformismo ou de contraposição a isto (…)” (2000: 51).

E dentro desta perspectiva que se coloca o “Projeto Ética em Movimento”, desenvolvido pelo CFESS em articulação com os CRESS. Seu maior objetivo é desfazer a noção de restrição do debate ético ao Código de Ética Profissional. Uma oportunidade de “desengavetar” nossos princípios ético-políticos, dando-lhes vida tanto no campo profissional como no social. Constitui-se, entre outros, um dos eixos principais do projeto dar visibilidade social à ética profissional, ou seja, analisar posicionamentos ético-políticos à luz dos princípios do Código de ética profissional, estabelecendo uma relação com a ética e com a política. Conforme CFESS (1999) são eixos do projeto:

• Formação de Agentes Multiplicadores;

• Viabilizar política e juridicamente denúncias éticas;

• Publicizar posicionamentos ético-políticos públicos sobre ações de governo, acontecimentos relacionados à ética na sociedade, em nível regional e nacional;

• Fortalecer a interlocação com organismos internacionais e nacionais na defesa dos Direitos Humanos e Sociais;

• Sugerir um espaço fixo na Revista Inscrita para posicionamentos e denúncias éticas;

• Realizar uma pesquisa articulada com a ABEPSS e a ENESSO;

• Aprofundar o entendimento nacional no que diz respeito ao trabalho voluntário;

• Aprofundar o debate ético através da participação em encontros e publicações.

“Ética em movimento” é o mais recente projeto em que o GEPE – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética – está envolvido, à medida que aquele tem a perspectiva de fertilizar ao máximo as potencialidades do Código de Ética, enquanto um documento estratégico, que possibilita explicitar as várias dimensões do projeto ético-político profissional, ao assumir o compromisso com valores e princípios como liberdade, democracia, justiça social e equidade. É assinalado um campo de possibilidades, que extrapola deveres e direitos neles inscritos, portanto, suscita atitudes político-profissionais firmes, que denunciem criticamente os mecanismos de individualismo, particularismo, corrupção e desigualdades intensificados nesses tempos de neoliberalismo.

A intenção desse projeto é reoxigenar o debate, aprofundando princípios ético-políticos, fazendo-os sair do espaço restrito dos arquivos, pastas e gavetas. Na verdade, trata-se de imprimir visibilidade profissional e social, dar vida, ou seja, movimento à categoria ofertando-lhe a possibilidade de materializar uma concepção de ética mais ampla que sua expressão legal. É, portanto, um projeto que visa resignificar/traduzir o movimento da ética na realidade, abordando-o como uma mediação social viva e dinâmica, tornando-a visível para a categoria e para a sociedade.

A implementação do projeto “Ética em Movimento” na Cidade do Recife – PE suscitou a necessidade de realização de uma pesquisa articulando CFESS/CRESS/UFPE/UNICAP, através da disciplina Ética Profissional. Esta pesquisa tem como objetivo subsidiar a intervenção profissional, dando visibilidade ao processo de aprofundamento, articulação e principalmente efetivação dos fundamentos filosóficos da Ética à sua operacionalidade, no âmbito do exercício profissional. Tal pesquisa contou com a participação de alunos da disciplina de Ética Profissional da UNICAP e alunos da mesma disciplina do sétimo período de Serviço Social da UFPE[68] e constituiu-se de várias etapas, dentre elas a definição das áreas de atuação profissional; visita ao CRESS para identificar o universo institucional do campo de atuação, e de assistentes sociais (identificamos 127 instituições totalizando 964 assistentes sociais); elaboração de questionários com perguntas abertas e fechadas; divisão das instituições entre as equipes (foram utilizadas para amostragem 50% + 1 do total de instituições)

Na UFPE, a metodologia utilizada foi a divisão da sala em subgrupos cujos coordenadores são membros do GEPE; e que têm como atribuições participar efetivamente de todas as fases do presente projeto e, principalmente, orientar os subgrupos, que foram divididos em áreas de interesses dos alunos: Saúde, Assistência e Previdência, Empresa e Diversos (ONG’s, Consultarias, e Entidades Governamentais).

Como recursos de pesquisa, foram utilizadas análise documental[69] e em seguida a elaboração de um Roteiro de Entrevista com as Assistentes Sociais. A implementação da pesquisa foi precedida de um pré-teste do respectivo roteiro, que subsidiou a realização da pesquisa de campo, a partir de visitas às instituições selecionadas.

  1. 1.        A Ética no Cotidiano do (a) Assistente Social

 

O cenário dos anos 90 no Brasil é caracterizado pela vigência do neoliberalismo: o “ajuste neoliberal” é posto como estratégia de saída da crise do Estado e do capitalismo no país, após o que se convencionou chamar de “década perdida”, ou seja, os anos 80. O “ajuste neoliberal” é caracterizado, principalmente por uma economia centrada na abertura comercial e pelo impulso no processo de privatização, desregulamentação e flexibilização das relações trabalhistas, contenção de gastos públicos, entre outros.

Através das transformações advindas com o projeto político da globalização e com a política neoliberal, em especial a contenção de gastos públicos, percebe-se a falsa imagem de “garantir benefícios” para a população. Ao contrário do que se anuncia, há um descomprometimento do Estado com as políticas sociais, sendo esses fatores entendidos como agudizadores das desigualdades sociais.

Diante dessa contextualização, o Serviço Social enquanto profissão mediadora entre o fogo cruzado de interesses tensionados pela luta de classes entre a burguesia e a classe trabalhadora, busca posicionar-se nu ma postura de confronto ao projeto societário hoje hegemônico, na defesa de uma nova ordem sem dominação e exploração das classes, gênero e etnia, na superação do autoritarismo e do preconceito através da defesa dos direitos humanos e do pluralismo.

A prática profissional do Assistente Social pode, numa articulação com um projeto societário mais amplo, ser um elemento de criação de condições para viabilização da participação social, com intuito de garantir a efetivação dos direitos sociais conquistados. Dentro de uma perspectiva contraditória, observa-se que ao mesmo tempo em que a população se defronta com o individualismo, a corrupção, a hipocrisia, o dito “jeitinho brasileiro”, a conjuntura abre espaço para a discussão de tendências éticas, de valores que norteiem o profissional para um enfrentamento consciente das manifestações da questão social.

Faz-se necessário elucidar que o fio condutor da transformação social deve estar respaldado por princípios éticos, e que esta reflexão ética pode e deve envolver todos os setores da sociedade e não se constituir apenas como iniciativa dos profissionais de Serviço Social. Atualmente, essa reflexão, ainda embrionária, gira em torno de eixos como a crise social e a do sistema do trabalho. Vale ressaltar que o debate ético proposto, ao contrário do que preconiza a ideologia neoliberal, não se pauta em interesses pessoais, mas na busca de uma sociedade emancipada. Logo, a ética torna-se um instrumento de resistência da realidade posta, na medida em que permite uma “revisão radical da vida humana, pessoal e coletiva” (Oliveira, 1993: 29), uma vez que ela tem a ver com as atitudes assumidas pelos homens diante da realidade.

É no contexto dessa problemática, exposta anteriormente, que realizamos a pesquisa do projeto “Ética em Movimento” e é também sobre ela que pautamos a análise dos dados coletados. Num primeiro momento, interrogamos os (as) Assistentes Sociais sobre a sua compreensão sobre a conjuntura e suas determinações no tocante à dimensão ética. A maior parte desses profissionais analisou a conjuntura atual como um período anti-ético. Acreditam, no entanto, que existem fatos marcantes que demonstram que setores da sociedade procuram se conscientizar dos problemas que enfrentamos. Tal constatação pode ser observada no depoimento da Assistente Social conforme explicita o trecho que segue:

“(…) a situação está tão grave e fora de controle que algumas parcelas da sociedade já começam a levantar a bandeira de um agir ético, defendendo uma sociedade mais justa e com respeito aos direitos individuais e coletivos”.

A ordem econômica L1ueimpera no Brasil gera distâncias sociais cada vez mais brutais e o Assistente Social encontra dificuldades para fazer valer os direitos sociais e políticas sociais. É partindo desse pressuposto que identificamos durante a pesquisa, relatos de algumas profissionais afirmando categoricamente: “a realidade influencia cada vez mais uma postura anti-ética dos profissionais”.

O projeto societário hegemônico diverge completamente do projeto ético-político profissional. Apesar de todos esses fatos, há um dado marcante: foi muito reduzido o número de Assistentes Sociais que identificou a ética como um mecanismo de mudança. Há ainda relatos que apontam para uma “banalização” da ética no cotidiano profissional e social:

“(…) pelo que temos visto e sabido, a ética não é hoje uma palavra que faz parte do vocabulário no seu verdadeiro sentido. Vejo ser muito usada com certa banalidade para encobrir erros e justificar a falta de atitude diante dos fatos”.

A partir da compreensão acerca da ética no exercício das profissões, de acordo com as considerações feitas sobre a conjuntura atual, a maior parte das entrevistadas indicou que a ética se constitui como um paradigma e é também imprescindível para o exercício profissional:

“A ética é fundamental no exercício profissional, pois ela dá uma orientação, uma regulamentação à profissão (…)” (Assistente social da área de Empresas)

Quando Reis coloca que “o projeto ético-político profissional (…) tem uma determinada direção social que envolve valores, compromissos sociais e princípios que estão em permanente discussão exatamente porque é participante do movimento vivo e contraditório das classes na sociedade (…)” (2001: 393), vemos que, como bem nos situa um depoimento de um profissional da área de Organizações Não-Governamentais:

“A questão da ética no exercício da profissão não pode ser vista como projeto individual, mas um projeto societário, levando em consideração o nosso código que é voltado para a sociedade”.

Todo profissional tem seu Código de Ética com princípios, valores e normas que norteiam a prática profissional. Na pesquisa do “Ética em Movimento”, um dos depoimentos da área de Saúde destaca:

“(…) é através dela (ética) que o profissional norteia suas ações e relações com os usuários, com os colegas de profissão, com as instituições em que trabalha (…)”.

Além dos princípios e normas profissionais, também os valores pessoais de cada indivíduo contribuem para o exercício das profissões; pois cada pessoa tem seus próprios valores morais; tem seus valores éticos. É o que nos ressalta um depoimento feito por um(a) profissional da área de Assistência e Previdência Social:

“A questão da ética no exercício profissional está diretamente ligada com formas de refletir e agir dos indivíduos”.

A ética está presente nas relações sociais de uma maneira geral, isso é colocado numa entrevista da área de Saúde, na qual o (a) profissional diz que é preciso conhecer a ética “na organização da vida em sociedade, nas relações sociais, nos indivíduos consigo mesmos e nas relações entre si”.

Identificou-se, também, que na realidade social existe uma postura anti-ética devido às condições de trabalho dos profissionais. É o que nos lembra um (a) assistente social da área de Organizações Não-Governamentais que afirma: “todas as profissões estão vulneráveis a essa crise de valores. Se o poder, a competição, o ‘levar vantagem’ estão permeando muitas condutas, as pessoas podem deixar em segundo plano os valores norteadores, quando estes oferecem obstáculos a seus interesses. (…)”, ou ainda um (a) Assistente Social da área de Assistência e Previdência Social, que afirma: “nem sempre a ética é respeitada no exercício das profissões. Na conjuntura atual, algumas estratégias de ação são conflituosas, principalmente em instituições. Por vezes, a burocracia atrapalha os serviços, a política social é limitada restringindo o público (…)”.

Como sabemos, a profissão está inserida na divisão social do trabalho, em que nós, Assistentes Sociais, somos solicitados (as) a buscar formas de enfrentamento da questão social dentro do atual sistema em que vivemos.

Frente à atual conjuntura, o Serviço Social tem que assumir uma postura crítica da realidade, incorporando uma dimensão ético-política que se efetive em sua prática profissional; visto que o (a) profissional tem valores e princípios éticos que norteiam sua prática e sua condição enquanto indivíduo.

Os objetivos propostos pela maioria das instituições se encontram mediados por uma política que tem como principal conseqüência/ resposta a não garantia da efetivação dos princípios do Código de Ética do Serviço Social. Tal fato se concretiza devido ao projeto societário vigente, que se traduz em uma ameaça aos princípios éticos como: Liberdade, Democracia, Cidadania, Direitos Humanos entre outros. Desta forma, os objetivos institucionais se encontram distantes de uma compatibilidade com os princípios do Código de Ética Profissional.

“(…) a prática na área hospitalar na visão institucional requer uma disciplina imposta aos usuários que muitas vezes fere direitos e liberdades individuais. Além disso, as autoridades, chefe da instituição, muitas vezes, têm valores incompatíveis com os princípios éticos do Serviço Social”(Assistente Social da área de Saúde).

Entretanto, mesmo diante desta realidade, existem profissionais do Serviço Social que acreditam nesta compatibilidade, sem fazer a devida leitura crítica das condições contraditórias e discriminatórias vivenciadas pelos usuários:

“A instituição (…) garante aos pacientes atendidos, através do SUS ou por convênios privados, um atendimento completo, sem distinção na qualidade do serviço” (Profissional da área de Saúde).

Torna-se difícil observar tal posicionamento, pois as instituições são inerentes ao sistema capitalista, cuja lógica é intrinsecamente anti-ética, e dita normas a serem seguidas que dificultam a realização de ações norteadas plenamente pela ética.

Sabemos que, historicamente, o Código de Ética, sofreu várias reformulações já que os princípios e valores que norteiam a profissão se modificam também historicamente. Dessa forma, a importância desse documento, é descrita no depoimento que se segue:

“É fundamental o Código de Ética porque o mesmo dá diretriz no meu fazer profissional, funcionando como um parâmetro e auxiliando-me no enfrentamento dos obstáculos com os quais me deparo nó cotidiano profissional” (Assistente Social de Empresa).

Neste contexto, podemos nos valer também da definição de Paiva que afirma: “O Código de Ética pode ser explicitado para além de um instrumento legitimo, como normas que garantem respaldo à prática profissional, ou seja, direitos, deveres, limites, mas também como um instrumento privilegiado que permite à profissão expressar sua identidade ético-política à sociedade”. (Paiva e Sales, 1997:173). Neste sentido, o Código não contém apenas medidas repressivas, mas, sobretudo, recursos inspiradores em condutas e valores como os de democracia, eqüidade, justiça, cidadania e liberdade entre outros, os quais, devem dar fundamentos para a prática cotidiana do profissional.

Diante do exposto, o desafio que se impõe ao Assistente Social é o da materialização dos princípios norteadores do seu Código no cotidiano profissional, seja nas Empresas, na área da Saúde, nas Entidades Governamentais e Não Governamentais ou em, qualquer âmbito da prática do Assistente Social. O Código de Ética não deve ser visto como algo abstrato, sem ligação com o processo social como demonstra o depoimento que segue:

“É possível se implementar, efetivar o código de Ética profissional, na medida em que os profissionais estejam atentos a seus preceitos e se esforcem para concretizá-Ios. Não apenas o engavetem, mas façam uso dele”. (Assistente Social de uma Organização não governamental).

Assim, a ética, que permeia o cotidiano profissional do assistente social, deve estar integrada ao produto final de sua prática. Desse modo, cabe ao profissional reconstruir as mediações, e buscar, com base no projeto ético-político profissional, desenvolver iniciativas que aproximem sua prática das necessidades reais dos usuários e fazer concretizar, dentro de sua atuação, os princípios norteadores de seu Código.

No que se refere à possibilidade de implementar os princípios no exercício profissional, detectamos com os dados de nossa pesquisa, uma diversidade de posicionamento entre os profissionais. No entanto, predominaram aspectos positivos relacionados a isto, como expressa a citação a seguir:

“É uma questão de escolha: conduta pautada por conveniências pessoais ou convicção? (Assistente Social de uma ONG de Recife).

A indagação desta profissional, que contribuiu com a nossa pesquisa, é bastante provocativa, impulsionando todos nós a uma ação reflexiva sobre a postura ética do (a) Assistente Social no campo de trabalho, seja em ONG’ s, instituições públicas ou privadas.

A grande maioria das entrevistadas, responderam que há possibilidades de implementar os princípios do Código de Ética da profissão em suas práticas cotidianas no trabalho, a partir do momento que assumem um compromisso com diversos segmentos da classe subalterna, contribuindo para ampliar sua cidadania através dos serviços prestados com qualidade.

Esta postura ética do (a) profissional não pode ser isolada. Ela depende de vários fatores que contribuem para sua efetivação, como a flexibilização dos posicionamentos institucionais; condições de trabalho favoráveis para o desenvolvimento de sua função; interdisciplinaridade; recursos suficientes para responder às demandas vigentes e a sua própria construção moral e ética de vida, firmadas em convicções ideológicas e de valores que possam pronunciar uma iniciativa de ruptura com a burocratização das atividades.

Segundo relato de uma Assistente Social da área de saúde pública:

“trabalhamos em uma equipe multidisciplinar, garantindo ao usuário o direito ao tratamento médico, visando à saúde a todos que procuram o serviço com diagnóstico. Inclusive, oferecendo todo o serviço social aos familiares, visando garantir o tratamento sem interrupções”.

A ética no dia-a-dia do Assistente Social, apesar de ser pontual, pode suscitar novas possibilidades para os usuários terem acesso aos serviços no espaço institucional, criando uma relação dinâmica interativa entre o profissional, os diversos setores da instituição e o próprio usuário. Este tipo de prática sugere que os princípios estejam nas “entrelinhas” da ação técnica e operativa do profissional; tendo como teleologia a apropriação e implementação dos direitos sociais por parte dos usuários dos serviços, como mediação para uma sociedade livre e emancipada.

Esta visão da postura ética delimitada ao âmbito institucional nos leva a fazer alguns questionamentos. O que implica ser ético? Basta apenas adotar convicções baseadas em valores e ideologias materializadas em uma determinada ação? E, quando as condições materiais objetivas das instituições não proporcionam recursos suficientes para atender suas demandas sociais, esta realidade pode influenciar na atitude e posicionamento éticos do (a) profissional?

Se considerarmos a política social e econômica da nossa sociedade que corta recursos para investimentos na área social, podemos perceber uma delimitação concreta dos direitos constitucionais, como também, a falência e sucateamento e privatização das instituições públicas; a terceirização que precariza os serviços e desqualifica os trabalhadores; o aumento da miséria e a seletividade dos “mais pobres” para terem acesso às políticas sociais imediatistas, focalizadas e compensatórias, destituindo o usuário de sua condição humana cidadã para um estereótipo de “necessitado ou miserável”. A universalidade dos direitos que estão na lei cede lugar a uma realidade excludente e seletiva.

“No nível de uma universalidade ética abstrata, pressupõe-se a existência de um sujeito racional, consciente, livre e responsável que é capaz de se auto-determinar para a ação. Só que isso é abstrato, porque esse sujeito é social e histórico e, portanto, ele vive em condições materiais determinadas. E ele vive em uma sociedade de classes e que propõe, sob a forma de uma moral universal, evidentemente uma ideologia de classes como se fosse uma universalidade ética. Isto significa, portanto, que o simples fato de nós determinarmos as condições pelas quais nós podemos falar numa ação ética, não significa que a realização dessas condições é imediata. Pelo contrário (…) esse obstáculo à ação ética é justamente a ideologia moral estabelecida pela própria sociedade”. (Chauí: 2000, 51)

A prática cotidiana do (a) Assistente Social pode ter uma direção fundamentada nos princípios éticos, mas esta ação está limitada pela realidade que apresenta uma ideologia hegemônica.

1.2.       Principais questionamentos do “Ética em Movimento”

 

No decorrer da análise dos dados da pesquisa do “Ética em Movimento” defrontamo-nos com situações que perpassam o dia-a-dia do (a) assistente social demandando uma atenção especial, tais como: perda da auto-estima e desmotivação profissional; dificuldade do profissional em definir seu papel na sociedade e na instituição onde trabalha; desinformação sobre o Código de Ética Profissional; refuncionalização; perda de espaços profissionais historicamente garantidos.

Diante disto, percebemos a necessidade de não só divulgar os instrumentos legais da profissão, mas também trazer à tona o grau de compreensão e utilização destes instrumentos, no que se refere à articulação dos princípios do Código de Ética ao seu cotidiano profissional.

Na apreensão sobre o código e seus princípios, este é visto, na maioria das vezes, como um instrumento formal e normativo do exercício pro1fissional, como regulador dos direitos e deveres profissionais, dissociado, portanto, da ética vista como algo abrangente, mais ligada às grandes questões nacionais. Percebe-se um distanciamento entre os princípios e valores profissionais e as demandas sociais; por vezes separa-se os princípios da profissão e sua postura enquanto cidadão.

Alguns vinculam o projeto profissional somente ao Código de Ética, limitando-se em apenas apresentar uma postura moral e ética que coincidam com as normas da sua instituição de trabalho, ressaltando que muitas dessas’ normas estão adequadas ao sistema vigente, trazendo conseqüências tanto para os usuários dos serviços no que diz respeito à não conquista de seus direitos ou à apreensão destes de forma parcial, como para o Assistente Social, que direciona sua práxis fundamentada no conservadorismo e muitas vezes sem “consciência” desta prática, vivendo uma postura “ética” ilusória que não está aliada às classes subalternas. Como afirma Netto, “os elementos éticos de um projeto profissional não se limitam a normatizações morais e/ou prescrições de direitos e deveres, mas envolvem ainda as escolhas teóricas, ideológicas e políticas das categorias e dos profissionais” (2000: 99).

Pressupõe-se que esta questão abarca a necessidade de sobrevivência do próprio profissional que está inserido na divisão social e técnica do trabalho e pela precariedade e insuficiência do mercado de trabalho que não absorve a demanda de profissionais existentes.

A historicidade de um projeto de ruptura da categoria a partir do movimento de Reconceituação entra em conflito com o neoconservadorismo, que propõe destituir o sujeito de sua luta, resistência e militância para um simples “emprego” e que este lhe seja um meio de sobrevivência. Há riscos em tencionar o sistema capitalista e um deles é o desemprego.

Além disso, as exigências impostas para formar o perfil do (a) Assistente Social nos dias de hoje, como a polivalência em funções, especializações, conhecimento de língua estrangeira, dentre outros não estão ao alcance de muitos destes profissionais que não têm recursos para ‘vislumbrar este espaço de conhecimento e se qualificarem para responder satisfatoriamente as suas requisições, formando assim uma “elite” intelectual à parte que tem acesso a estes bens e conhecimentos. “Os projetos profissionais também são estruturas dinâmicas, respondendo as alterações no sistema de necessidades sociais sobre o qual a profissão opera, às transformações econômicas, históricas e culturais ao desenvolvimento teórico e prático da própria profissão (. ..) Os projetos profissionais se renovam, se modificam ( Netto:2000, 95).

No que se refere à relação do (a) assistente social com os usuários, destacam-se o compromisso e o respeito pelos interesses destes; democratização das informações; “neutralidade profissional”, relação de confiança, de transparência, a necessidade de atualização profissional; a luta e defesa pela garantia dos direitos sociais.

Houve uma ênfase na necessidade de incentivar à participação e à capacitação dos profissionais, bem como a valorização destes nas entidades representativas de sua categoria. É nesse sentido, que surgem novas demandas como desafios para as entidades representativas da profissão, em particular o CRESS, como: atualização das informações do banco de dados; maior articulação do CRESS com os profissionais da área, e com os alunos da academia acerca dos eventos, cursos, informações.

Tendo em vista a compreensão de que o projeto ético-político profissional é uma construção histórica e, como tal, necessita de esforços no sentido de sua consolidação profissional e social no âmbito da luta pela hegemonia, uma das inquietações da nossa categoria profissional é como podemos vincular um projeto ético-político de uma profissão a um novo projeto societário que possibilite a emancipação humana, se há disparidade entre a realidade sócio político, cultural e econômica na nossa sociedade classista?

Ainda não existem respostas precisas para este questionamento, mas já há um processo de construção de idéias que respalda a importância do projeto ético-político profissional como instrumento de questionamento à lógica do capital.

A pesquisa sobre o “Ética em Movimento” realizada em Recife como já vimos, proporcionou o levantamento de alguns dados referentes à ação profissional do Assistente Social em diversos setores institucionais, possibilitando uma reflexão sobre o trabalho cotidiano destes profissionais e seu discurso sobre o Projeto ético-político da categoria.

Para a contestação de um projeto societário hegemônico é necessário que existam categorias profissionais voltadas para a defesa dos interesses das classes subalternas. Apesar da realidade determinar o exercício das profissões, estas não devem se conformar, mas se organizarem enquanto categorias. “A sociedade não é uma entidade de natureza teleológica, isto é, não têm objetivos e finalidades; ela tem apenas, uma existência em si, puramente factual (…)Mas, as ações humanas agem teleologicamente e sempre são orientadas para objetivos, metas e fins” (Netto: 2000, 93)

O projeto profissional, que é heterogêneo, apresenta no âmbito da categoria, projetos individuais e coletivos, que podem ser conservadores ou de ruptura com a ordem, sendo este último fundamentado na democracia e na perspectiva da universalização de direitos. Isto possibilita, aos profissionais, criarem alternativas para contribuir para a construção de uma nova ordem social, através da investigação da realidade e da proposição de caminhos que ultrapassem os serviços institucionais para uma resposta que possua significados mais humanos aos usuários, despertando-os para a realidade.

Sendo assim, vislumbramos a ética como mediação presente na intencionalidade profissional e no produto final da ação, o que supõe uma compreensão profunda acerca do significado dos valores éticos da sociedade e da profissão, de suas contradições e dinâmica própria, de sua relação com a política e com a teoria social, de sua inserção no projeto político profissional e nos projetos societários, de sua relação com a qualidade dos serviços prestados e com a direção social do trabalho profissional.

Como o projeto ético-político do Serviço Social é posicionado contra o projeto neoliberal, existem obstáculos na implementação desse projeto profissional e “é evidente que a manutenção e o aprofundamento desse projeto, em condições que parecem tão adversas, depende da vontade majoritária da categoria profissional, mas não dela: depende também do revigoramento do movimento democrático e popular” (Netto: 1999,107).

No entanto, apesar dos obstáculos, os (as) Assistentes Sociais, principalmente, não devem desistir da luta a favor de uma sociedade emancipada, mas sim dar continuidade à luta anti-capitalista, direcionando-a ao “( … ) combate (ético, teórico, político e prático-social ao neoliberalismo” (Netto: 1999, 107), objetivando a preservação e a concretização dos valores e princípios contidos no projeto ético-político da profissão.

1.3 Bibliografia

 

ABATH, Edistia Maria. Articulação entre fundamentos filosóficos e códigos de ética profissional em Serviço Social. In: MUSTAFÁ, Alexandra Monteiro (org.). Presença Ética. Recife, PE: UNIPRESS Gráfica e Editora do NE Ltda, 2001 p.17-32.

BARROCO, M. L. S, Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos, São Paulo: Cortez, 200l.

CFESS. Relatório do XXVIII Encontro Nacional CFESS/CRESS, 1999.

CHAUÍ, Marilena. Uma Filosofia da Liberdade. In: CULT- Revista Brasileira de Literatura – Ano III/Junho 2002, pg. 51 a 53.

MUSTAFÁ, Alexandra. Possíveis interpretações dos princípios éticos do Serviço Social a partir da análise das tendências éticas contemporâneas. In Presença Ética. Recife: UNIPRESS, 2001.

NETTO, José Paulo. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e Política. Brasília: UNB, Centro de Educação aberta continuada à distância, 2000.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Os desafios éticos e políticos da sociedade brasileira. In: Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1998, ano XIX, nº 56 p.23-33.

_________.  Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993 (Coleção Filosofia, 28).

_________. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. (Coleção Filosofia, 28).

PAIVA, B.A. e SALES, M.A. “A nova ética profissional: práxis e princípios”. In: BONETII, D.A. et aI. (orgs.). Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis, 4a edição. São Paulo: Cortez, 1997.

REIS, Marcelo Braz Moraes dos. Notas sobre o projeto Ético- Político do Serviço Social. In: Coletânea de Leis e Resoluções. Assistente Social: Ética e direitos. CRESS -7ª Região RJ – Rio de Janeiro Outubro/2001.


[1] Professora adjunta da USS/UFRJ e Doutora em Ciências Sociais

[2] Ricardo Antunes, Adeus ao Trabalho? Ensaios sobre metamorfoses e a entralidade do mundo trabalho. São Paulo: Cortez, 1955, p. 124.

[3] Slavoj Zizek. “Como Marx inventou o sintoma” in O Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p., 309.

[4] Idem, p. 310

[5] David Harvey, A Condição pós-moderna, São Paulo: Loyola, 1993, p. 140.

[6] Antunes, Idem, p,134

[7] James Petras, Armadilha Neoliberal, São Paulo: Editora Xamã, 1999, p,14.

[8] Antonio Gramsci. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1978.

[9]  Emílio Gennari. Senso Comum e Bom Senso. São Paulo:Editora Vergueiro, 1995,p.05.

[10] Maria AparecidaCassab. Jovens Pobres e o Futuro: a construção da Subjetividade na instabilidade e incerteza. Rio de Janeiro: lntertexto, 2001, p. 33.

[11] Karl Marx. O Capital: crítica da Economia política. São Paulo:Editora Abril, 1985,

p.148.

[12] Léon Rozitchner. Freud e o problema do Poder. São Paulo: Editora Escuta, 1989, p. 65.

[13] Lucien Sève. Marxrxisme et Théorie de la Personalité. Paris: Editions Sociales, 1974, p. 65.

[14] Joel Birman. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1999: Psicanálise Ciência e Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994; Subjetividade, contemporaneidade e educação in Cultura, linguagem e subjetividade no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP& A, 2000.

[15] Jurandir Freire Costa. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1984. fr

[16]  Eric Hobsbawn. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo in Novos Estudos Cebrap, São Paulo: n.43, novembro 1995, p. 22.

 

[17] Marilena Chauí. Subjetividades Contemporâneas: Comentários. São Paulo: Instituto

Sedes Sapientiae, ano 1, 1997, p.20.

[18] Antonio Gramsci. Os Intelectuais e a organização da Cultura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1982.

[19]  Vera Telles. “Pobreza e Cidadania: duas categorias antinômicas” in Mínimos de Cidadania. São Paulo: Programa de Estudos de Pós Graduação de Serviço Social n. 4, PUC, 1993.

[20] Antonio Gramsci. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1981, p. 23-24.

[21] Idem, p. 6.

[22] Prof. De filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/ Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Doutoranda no Programa de ética, política e políticas públicas na University of Essex/ Inglaterra.

[23] Nietzsche, Friedrich – Genealogia da Moral – Ed. Brasiliense p. 14

[24] Ibid p. 131

[25] Bobbio, Norberto – o Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo – p.96

[26] Ayn Rend – La Virtud Dei Egoismo – Plastygraf – P.38

[27] Ibid p. 111

[28] Assistente Social, mestranda em Serviço Social do Programa de pós-graduação/UFPE; membro do GEPE-UFPE.

[29] Os EUA representam 29% das emissões mundiais de carbono, o que significa um aumento de 18% entre os anos de 1990 a 2000. As emissões per capita dos Estados Unidos são as mais altas do mundo, cerca de cinco toneladas por habitante. Representa o dobro do segundo emissor, que é a China, cujas emissões apesar do acelerado aumento de produção caíram em cerca de 20% entre 1995 até hoje.

[30] Rachei Carson (1907-1964) nasceu na Pensilvânia/EUA e estudou biologia rnarinha, trabalhou como editora para o Us fish and Wildlife Service. A publicação do livro “Silent Spring” levou uma indústria química a denunciá-la como alarmista – acusação que ela sempre negou (Cf: Burnie: 1999).

[31] Relatório encomendado pelo Clube de Roma. Fundado em 1968, o Clube agregava trinta especialistas de diversas áreas cujo objetivo era discutir o futuro da humanidade. Esta entidade foi criada e financiada por grandes incorporações como a Fiat, Wolkswagen, Ford, Olivetti.

[32] Transformismo: categoria Gramsciana que assinala a capacidade que tem as classes dominantes de se apropriarem das reivindicações, categorias e expressões identificadas historicamente com a classe trabalhadora, dando uma direção social conforme os interesses dominantes. No caso do Desenvolvimento Sustentável, embora não seja um conceito identificado com a classe trabalhadora, o discurso critico do ambientalismo que mostrava a contradição entre crescimento econômico e preservação ambiental fora substituído por um conceito de “ecologização do mercado”.

[33] Enquanto os representantes oficiais se reuniam no espaço principal da cúpula, “as ONG’s e os movimentos sociais cumpriam uma movimentada agenda nos estandes armados na praia do Flamengo, estabelecendo uma nova base de articulação mundial. Destas reuniões resultaram dezenas de declarações de compromisso e tratados entre as ONG’s e movimentos sociais de todo o mundo” (Cf: http://www.ongbrasil.org.br).

[34] Cf: Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: Relatório da Delegação Brasileira. Brasília, 1993.

[35] Acordo internacional para a redução dos gases que contribuem para o efeito estufa. Na Cúpula de Johanesburgo a China e a Rússia ratificaram o protocolo, o Canadá ficou só na promessa e os EUA permaneceram na sua empáfia.

[36] Informações no site: wwf.org. br

[37] Cf: http://globonews.globo .corn/componentes/articles

[38] Com o uso sistemático e predatório dos combustíveis fósseis o uso de energia renovável é imprescindível para a produção viável e sustentável de energia. Alguns especialistas afirmam que se existirem pesquisas e investimentos a participação do consumo destas energias aumentará em 20%, podendo, ainda reduzir as emissões de dióxido de carbono em mais de um bilhão de toneladas por ano (Burnie: 1999).

* Professora do Departamento de Serviço Social da UFPE. Doutora em Filosofia pela Universidade Salesiana de Roma. Coordenadora do Grupo d’e Estudos e Pesquisa sobre Ética (GEPE) – UFPE.

[39] “De acordo com John Locke, mediante o contrato social, os indivíduos saem do estado de natureza e ingressam no estado civil, ou político. Cria-se, assim, uma autoridade superior, para a proteção dos direitos naturais fundamentais dos indivíduos – direito à vida, à liberdade e à propriedade, não renunciados. Os participantes só renunciam o direito de fazer justiça por si mesmos.” (Nedel, 2000: 29).

[40] “De acordo com Jean-Jacques Rousseau, o contrato social é ato coletivo de renúncia dos direitos naturais e de sua transferência à comunidade ou ao corpo político, constituído por todos. Cada um renuncia seus direitos e os transfere a si mesmo na qualidade de membro do todo social. Em outras palavras, todos põem em comum sua pessoa e seus bens sob a direção da vontade geral. Troca-se a liberdade natural pela civil, e o ilimitado direito a tudo pela propriedade do que se possui, Gera-se, assim, um corpo moral coletivo, a cidade, a república ou o estado e se constitui o soberano”. (Nedel, 2000: 29-30).

[41] Em Kant o noumeno é o objeto inteligível contraposto ao objeto da sensibilidade, “O objeto da sensibilidade é o sensível; aquilo que não contém nada que não possa ser conhecido pela inteligência é inteligível. O primeiro pelas escolas dos antigos era chamado fenômeno, o segundo noumeno” (Critica da razão pura in Enciclopédia Garzanti di Filosofia, 1993).

[42] Assistente Social do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC, Mestre em Serviço Social – UFPE e membro do GEPE.

[43] Professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, doutoranda em Serviço Social– UFPE e membro do GEPE.

[44] Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, doutoranda em Serviço Social – UFPE e membro do GEPE.

[45] Para Arendt, trabalho é o que Adam Smith considerava como o trabalho improdutivo de um criado doméstico, “ou seja, um trabalho que não deixa atrás de si uma marca durável ou valor (… )” (Magalhães, 1985:148).

[46] Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN, Mestra em Serviço Social pela UFPE e membro do GEPE.

[47] Ethos: termo grego que significa: caráter, modo de ser, costumes, conduta de vida. (Cf.

Fortes, 1998: 26)

[48] A alienação é um conceito amplo, de um modo geral se refere a “não apropriação, por parte dos indivíduos, da riqueza material e espiritual produzida socialmente”. Neste sentido, “os indivíduos não reconhecem na realidade social, a sua ação, não se reconhecem como sujeitos históricos.” (Barroco, 1999: 128)

[49] “… demandas são requisições técnico-operativas que, através do mercado de trabalho,  incorporam as exigências dos sujeitos demandantes, (…) elas comportam uma ‘teleologia’ dos requisitantes a respeito das modalidades de atendimento de suas necessidades…” (Mota, 1997:52)

[50] As reflexões aqui apresentadas são indicações do contexto de atuação profissional dos assistentes sociais em unidades de saúde, De onde parte é da nossa experiência de trabalho no Sistema Único de Saúde – SUS, e parte extraída de pesquisa realizada com assistentes sociais, no processo de construção da nossa dissertação de mestrado, na UFPE.

[51] A “questão social” é aqui compreendida dentro da definição colocada por Iamamoto (1997:13) como: “O conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade.

[52] Estamos reconhecendo que tais conhecimentos devem ser acrescidos aos já adquiridos na formação profissional.

[53] Assistente Social, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE, membro do GEPE (Grupo de estudos e pesquisa em Ética) e Conselheira do CRESS 14ª Região (RN).

[54] Com essas questões não pretendemos desconsiderar a dimensão teórico-metodológica e técnico operativa, uma vez que a competência profissional requer a qualificação em todas essas dimensões, mas tão somente realçar esse componente ético-político.

[55] A consciência moral é exercitada quando temos que decidir sobre algo, construindo argumentos éticos justificadores das nossas decisões, em que assumimos as conseqüências por nossas opções.

[56] A ética é o “estudo dos valores morais (as virtudes), da relação entre vontade e paixão, vontade e razão; finalidades e valores da ação moral; idéias de liberdade, responsabilidade, dever, obrigação, etc…” (Chauí, 1998:55).

[57] Nesse sentido, foi desenvolvido o “Projeto Ética em Movimento” pela gestão 1999/2002 do CFE55, em parceria com os CRE55, com o objetivo de não apenas divulgar o Código, mas explicitar as possibilidades desse documento estratégico, uma vez que o mesmo legitima valores, sendo “um campo de possibilidades que extrapolam os deveres e direitos legais nele assinalados”.Tal projeto compartilha da idéia que não de deve restringir os debates éticos ao código , visto que a ética estabelece uma relação fundamental entre ° projeto ético-político profissional e os projetos societários.

[58] “… os elementos éticos de um projeto profissional não se limitam a normatizações morais e/ou prescrições de direitos e deveres, mas envolvem ainda as escolhas teóricas, ideológicas e políticas das categorias e dos profissionais – por isto mesmo, a contemporânea designação dos projetos profissionais como projetos ético-políticos revela toda a sua razão de ser: uma indicação ética só adquire efetividade histórico-concreta quando se combina com uma direção político-profissional” (Netto, 1999: 98-99).

[59] Sendo o trabalho uma atividade do sujeito, ao realizar-se, aciona não só o acervo de conhecimentos, mas a herança social cultural acumulada, com suas marcas de classe, de gênero, etnia, assim como do processo de socialização vivido ao longo da história de vida, atualizando valores, preconceitos e sentimentos que aí foram sendo moldados (Iamamoto, 1998: 103-104).

[60] “A palavra ethos é definida por Chauí (1998:340) da seguinte forma: “em grego, existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal ‘e’: uma vogal breve, chamada ‘epsilon’, e uma vogal longa, chamada ‘eta’. Ethos, escrita com a vogal longa significa costume; porém escrita com a vogal breve, significa caráter, índole natural, temperamento, conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Neste segundo sentido, ethos se refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e vícios cada um é capaz de praticar. Referem-se, portanto, ao senso moral e à consciência ética individual”.

[61] Ver Relatório do I Encontro Nacional de Delegadas latadas em Delegacias de Defesa da Mulher. Brasília-DF: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1986.

[62] Pesquisa promovida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher-CNDM e Secretaria Nacional de Segurança Pública – SNSP.

[63] Segundo a clássica definição de Scott (1993: 16), “O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder. Além do que, ele é um meio complexo entre diversas formas de interação humana de decodificar o sentido e de compreender as relações”.

[64] Para Saffioti, a primeira escuta junto a vitima não deve ser realizada por policiais e na Delegacia da Mulher, mas por Assistentes Sociais e Psicólogos em local próximo à Delegacia para se dar o encaminhamento correto. É imprescindível também uma rede de serviços para apoiar a mulher. Ver Saffioti (1999)

[65] Trata-se de um estudo em nível de Mestrado sobre o discurso e a prática de profissionais (policiais e Assistentes Sociais) nas três Delegacias da Mulher do Rio de Janeiro, no período de 1988 a 1989.

[66] Baseada na perspectiva teórica funcionalista, a família desestruturada é aquela que não se enquadra dentro de um modelo considerado correto e equilibrado, ou seja, daquela família nuclear burguesa. (CALDERÓN & GUIMARÃES, 1994:25).

[67] “Estruturou-se a partir de uma ética assentada na crítica ao domínio patriarcal e em uma razão androcêntrica de humanidade, que deixou de fora metade desta – as mulheres – e que construiu um modelo de feminino fabricado pelo androcentrismo em nome da natureza e da razão” (Bandeira & Siqueira, 19S17 In: Bandeira, 2000:17).

* Alunas do 9° período do Curso de Serviço Social da UFPE e membros do GEPE

[68] Coordenadores gerais: Profª. Maria Alexandra Monteiro Mustafá e Profª. Edistia Maria Abath, e coordenadores de subgrupos em sala de aula: Cyntia Raquel, Marina Gondim, Nicoly Neves e Rauliana Sales.

[69] Na primeira fase da pesquisa documental foi realizada visita ao CRESS que teve o objetivo de levantar a alocação de todos os profissionais de Serviço Social por área de atuação cadastrados no CRESS.

 

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Presença Ética-2003-Ano 3-Vol.3

Apresentação


 

Com este terceiro número da Presença Ética, damos continuidade à reflexão sobre a temática “ética, política e emancipação humana”. Sabemos que o debate sobre ética ganha, nos últimos anos, relevância internacional, confirmada pela realização de vários eventos, tais como o Seminário Internacional sobre ética e direitos humanos, ocorrido no Rio de Janeiro, que contou com a participação de intelectuais das mais diversas áreas do conhecimento.

O aprofundamento da discussão sobre ética nos faz tomar consciência da amplitude de questões que emergem no processo de desenvolvimento da sociedade capitalista e da necessidade que se torna, cada vez mais evidente, no sentido de contribuir para um processo de subversão dos valores que dão sustentabilidade à lógica do capital.

Tal postura implica na constatação de que se torna ingênuo pensar numa superação da ordem do capital separando as dimensões objetivas e subjetivas da realidade. Importa considerar a dimensão de totalidade que permite uma análise da realidade concreta, do ponto de vista econômico, político e social e, dentro deles, a ética se constitui como elemento de transversalidade que perpassa todas as dimensões da atuação do homem no mundo.

Nesse sentido, compete aos estudiosos da questão ética, envidar esforços no processo de produção de conhecimento sobre as contradições éticas da realidade e oferecer subsídios para a construção de estratégias políticas que, em última instância, constituam-se como elementos de elaboração de uma cultura hegemônica de enfrentamento ao capital.

Vale salientar, portanto, que o objetivo mais amplo desta revista é contribuir com o processo de produção de conhecimento na área de Serviço Social, que se constitui como profissão que emerge no âmbito das contradições do modo de produção capitalista, tendo como objeto de atuação a questão social. Neste sentido, ressalte-se a contribuição da Professora Ana Elisabete Mota, ao refletir sobre as Dimensões da Prática Profissional, contextualizando as possíveis atribuições da profissão, bem como os questionamentos daí resultantes, numa perspectiva de busca de enfrentamento da questão social na atualidade e seus desafios éticos.

Nesta perspectiva, deve-se levar em consideração o significado do pluralismo e a necessidade do respeito à diversidade, não apenas no interior da categoria profissional, mas, sobretudo, como necessidade posta na contemporaneidade, para que se torne possível a convivência entre os homens e entre diferentes culturas. Tal temática é abordada pela Professora Lúcia Barroco que destaca, no seu artigo, a importância da compreensão da diversidade nos seus múltiplos aspectos, enquanto condição objetiva para o respeito à pluralidade e às diferenças, no sentido específico de uma postura de tolerância como requisito básico para a mútua convivência numa sociedade de profundos contrastes.

A perspectiva de relação entre singularidade-universalidade nos remete, necessariamente, a uma análise sobre a cultura política brasileira no intuito de resgatar as possibilidades de implementação das categorias/princípios constituintes do código de ética profissional e do projeto ético-politico do Serviço Social. Destaca-se, assim, a relevância de uma luta permanente pela manutenção e avanço da democracia, na sociedade brasileira, entendida como valor universal, tema tratado pela Professora Edistia Abath, que examina a configuração da Democracia no contexto da globalização.

Convém salientar que esse número da revista tem o privilegio de ser lançado na comemoração dos dez anos do Código de Ética profissional do Serviço Social fato que, por si só, nos coloca a imensidade e diversidade de questões éticas que perpassam, na atualidade, o desempenho profissional do Serviço Social. O resgate histórico do processo de elaboração e implementação do Código de Ética é tema do artigo da Professora Sâmya Rodrigues que busca estabelecer a conexão entre as dimensões teológica e deontológica da ética, a partir da relação entre código de ética e projeto político-profissional.

Como se sabe, a construção de um projeto ético-politico é fruto de um processo profundo de amadurecimento da categoria, o que reflete um compromisso com as lutas sociais, no sentido da emancipação humana e com o enfrentamento da questão social que se agrava no Brasil e no mundo. Neste contexto, a Professora Alexandra Mustafá busca, no seu artigo, resgatar os fundamentos filosóficos desse projeto ético-politico-profissional, suscitando questionamentos emergentes nesse processo de elaboração coletiva, cujos desdobramentos repercutem na formação e no exercício profissional.

Estes fundamentos suscitam, portanto, o tratamento de questões que perpassam a análise crítica sobre a lógica instrumental e suas implicações no formalismo e na própria concepção de direito, analisados aqui pela autora Cláudia Gomes. Seu artigo reforça a perspectiva contida no projeto ético-político do Serviço Social ao criticar algumas concepções hoje bastante referendadas sobre a ética, sobretudo aquelas derivadas do pensamento Kantiano, expressas no formalismo do tipo utilitário.

A Professora Silvana Mara contextualiza e apresenta elementos sobre a nova conjuntura dos movimentos sociais, no contexto mais amplo das lutas históricas da classe trabalhadora. A autora reflete sobre a necessidade de reconhecimento e garantia de direitos à liberdade de orientação sexual, tendo em vista a legitimação de tais direitos numa perspectiva crítica ao tradicionalismo que predomina enquanto valor ainda arraigado nas sociedades contemporâneas.

O artigo da Professora Marieta Koike ressalta os rebatimentos da lógica neoliberal no âmbito do ensino superior e as implicações éticas daí decorrentes. Busca apreender as novas e recorrentes demandas que a sociedade brasileira apresenta à Universidade, tendo em vista oferecer subsídios à discussão sobre a formação profissional no contexto do capitalismo.

O artigo de Miriam Inácio trata, da violência contra mulheres procurando desnaturalizar esta manifestação de poder praticada contra mulheres, assentada nas relações de gênero dominantes. A autora analisa a violência de gênero numa perspectiva de totalidade, percebendo uma relação com as questões de classe e etnia. E afirma que qualquer alternativa de emancipação feminina exige consolidar “um feminismo socialista”, comprometido com a superação dos processos e relações sociais que limitam o exercício da sociabilidade.

Mantendo o compromisso do GEPE, em estimular a produção de alunos (as) de iniciação cientifica do curso de graduação em Serviço Social, a revista Presença Ética abre mais uma vez um espaço para esses jovens pesquisadores. O artigo das alunas de graduação, Gabriella Araújo, Gisely Couto e Maria Rosane Martins faz uma reflexão da antieticidade da realidade em que vivem gerações de crianças e adolescentes no Brasil. Elas reconhecem os avanços jurídicos alcançados com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, como uma “conquista ética” enfatizando a necessidade do Estado colocar em prática Políticas Sociais que garantam a efetivação de direitos pautados pelos princípios da justiça e da equidade.

Com esse número da revista acreditamos reforçar a contribuição ao debate da ética, considerando que todos somos sujeitos históricos e, portanto, responsáveis tanto pela crítica contundente, quanto pela redefinição da análise histórica.

Agradecemos mais uma vez à coordenação da pós-graduação em Serviço Social da UFPE, em especial à Professora Ana Elisabete Mota, no seu apoio à essa iniciativa que se materializou graças ao aporte financeiro desta pós-graduação. Agradecemos, também, aos (às) colaboradores (as); aos membros do conselho editorial e aos que contribuíram com seus artigos. Esperamos consolidar essas e novas parcerias nas próximas edições.

 

Comissão Editorial

 


As dimensões da prática profissional **


                                       

 

                                Ana Elizabete Mota**

 

Sabemos que nossa profissão é furto de um conjunto de contradições, presentes no desenvolvimento histórico da sociedade capitalista. Tal conjunto relaciona-se com as expressões da “questão social” e vincula-se diretamente com mecanismos: sócio-políticos e institucionais requeridos para o seu enfrentamento. Estes mecanismos, na sociedade burguesa madura, são predominantemente acionados na esfera pública, quer seja através da ação do Estado, quer seja através de iniciativas dos sujeitos sociais.

No primeiro caso (ação do Estado), o cenário é formado pelas Políticas Públicas, particularmente as denominadas sociais, e por outros meios que regulam situações sociais, e por outros meios que regulam situações e relações sociais, como é o caso dos direitos constitucionais, das leis que regulamentam as condições de trabalho, dos estatutos formadores de sujeitos de direitos (o caso do ECA, por exemplo) ou ainda, dos mecanismos de controle social. No segundo (sujeitos sociais), estão situadas as iniciativas da denominada sociedade civil. Estamos tratando aqui de um ambiente atravessado/ determinado pela existência de interesses e posições de classe, reveladores de relações/ posições de confronto, conflito e heterogeneidade política. Em ambas situações, o que está em jogo é a tensão entre as necessidades do capital e as do trabalho, cuja natureza antagônica e contraditória é originária do modo desigual como estas classes participam do processo de produção e distribuição da riqueza socialmente produzida.

No plano histórico, o Serviço Social participa deste processo por força de determinações sociais muito precisas. Vejamos: constitui-se como uma profissão que tem a particularidade de intervir em situações reveladoras das profundas desigualdades geradas pelo próprio capitalismo, mas que, contraditoriamente, por força das pressões e dos confrontos daqueles que são espoliados, o capital é obrigado a administrá-las para manter a sua dominação de classe. Vale lembrar que assim o faz, através de um conjunto de mediações de ordem econômica, política, ideológica e dependendo das condições objetivas existentes, quais sejam: a força organizativa das classes subalternas, o ambiente político-democrático, a ampliação do Estado, etc.

No plano prático operativo, aquelas determinações anteriormente apontadas, adquirem materialidade na própria constituição da profissão que passa a ter uma utilidade social marcada pela sua capacidade de dar respostas ao conjunto das demandas sociais que lhe são postas. Assim, ao longo do seu desenvolvimento histórico, adquiriu a característica de ser uma profissão de natureza interventiva, possuindo uma determinada instrumentalidade, qual seja a de conhecer, explicar, propor e implementar iniciativas voltadas ao enfrentamento das desigualdades sociais, que, repito, são inerentes à constituição da sociedade capitalista.

Segundo Yolanda Guerra, essa instrumentalidade da profissão é sócio-histórica e pode ser apontada em dois níveis:

a)      A instrumentalidade face ao projeto burguês que indica o fato da profissão pode ser convertida num instrumento a serviço do projeto reformista da burguesia, qual seja o de reproduzir as relações sociais capitalistas.

b)      A instrumentalidade das respostas profissionais que se expressa nas funções que desempenha na implementação de políticas sociais; no horizonte do exercício profissional vinculado ao cotidiano das classes vulnerabilizadas, interferindo no contexto social e nas condições objetivas e subjetivas de vida dos sujeitos, marcado pelo cotidiano e pelas necessidades imediatas.

Isto significa dizer que o Serviço Social vincula-se com as práticas sociais que ora dão visibilidade às desigualdades sociais existentes, ora requerem meios de atendimento das necessidades delas derivadas, ou ainda, formulam, propõem e operam ações voltadas para o trato e/ou superação de situações e conjunturas que afetam as condições de vida e de trabalho daqueles que são sujeitos da desigualdade social.

De igual forma, também significa reconhecer as diversas dimensões presentes na prática profissional do Serviço Social, tais quais: a dimensão política, a dimensão ética e a dimensão técnico-operativa da profissão. Estas dimensões possuem uma unidade, cujos elos que a sustentam são tanto de natureza teórica, vinculada aos fundamentos que a profissão abraça, quanto ídeo-culturais, reveladores da visão de mundo dos sujeitos profissionais. Assim, enquanto a dimensão política da prática encontra-se imbricada nos objetivos e finalidades das ações, principalmente nas possibilidades de interferir nas relações e situações geradoras das desigualdades e nos mecanismos institucionais para elas voltados; a dimensão ética reclama por princípios e valores humanos, políticos e civilizatórios; e a dimensão prático-operativa consiste na capacidade de articular objetivamente os meios disponíveis e os instrumentos de trabalho para materializar os objetivos com base nos valores.

Por isso, penso que a chave para desvendar as tendências do Serviço Social nesse início de milênio é o conhecimento da própria realidade, posto que nela estão presentes os processos sociais sobre os quais a profissão intervém. Em termos gerais, significa apreender os processos societários em curso e os modos e meios através dos quais eles afetam o conjunto da vida social, em cada realidade. Estou defendendo a idéia de que as tendências da profissão dependem da realidade objetiva e da capacidade que tenhamos de decodificá-la criticamente, abrindo frentes de intervenção social e propondo iniciativas que incidam sobre os perversos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais. Aqui estamos pensando nos processos que respondem por transformações na esfera do trabalho, da ação das classes sociais, do Estado, da cultura e da ideologia.

Diria ainda que, em função da natureza da ação profissional, o Serviço Social é instado a fazer recorrências e propostas que tensionem os mecanismos de reprodução das desigualdades sociais, materializadas (estas últimas) na exclusão econômica, política, social e cultural e no “desmonte” a que a sociedade brasileira vem sendo submetida em matéria de direitos sociais e de políticas publicas, por exemplo. Nesta direção talvez estejam em curso duas tendências básicas no exercício profissional: a da naturalização da ordem vigente, via incorporação do discurso e das práticas que “mistificam publicamente” o combate à pobreza através do neo-solidarismo, da regressão das políticas públicas em prol da criação de novos nichos de mercado e do fim do trabalho socialmente protegido em função do “empreendedorismo” individual, para falar somente em coisas básicas; a outra posição, consiste no tato crítico e qualificado das “exigências da modernidade”, pautado num conjunto de princípios éticos e políticos presentes no ideário da construção de uma nova sociedade. Esta segunda posição, longe de qualquer idealismo romântico vem impondo aos profissionais a necessidade de flexibilizar, rever, propor e criar novos modos e meios de intervenção que estejam organicamente articulados ao atual movimento da sociedade. Movimento este que se encontra eivado de desafios e dificuldades derivadas do que anteriormente chamei de mistificação pública do tratamento dispensado às desigualdades sociais no Brasil deste final de século. Aqui penso numa idéia gramsciana para partilhar as angustias profissionais dos que querem construir uma nova ordem: é preciso não ter medo de ousar porque a firmeza dos princípios determina a flexibilidade das estratégias.

 

Quais as principais mudanças observadas na profissão nos últimos anos?  

Muitas têm sido as mudanças observadas. O primeiro quesito diz respeito às profundas mudanças no mercado de trabalho. Não acho que o mercado de trabalho seja o único determinante das mudanças, mas é um indicador legitimo e necessário para verificar a legitimação social da profissão, isto é, o conjunto das exigências e demandas reveladoras da utilidade social do Serviço Social. Também apontam as condições de trabalho dos profissionais e as competências que estão sendo exigidas do profissional. Neste ambiente, noto algumas mudanças significativas, dentre elas, a migração dos postos de trabalho do setor público para as organizações não governamentais, das empresas para as fundações empresariais, assim como a emergência dos chamados serviços voluntários que passam a requerer alguma qualificação técnica na elaboração de projetos, planos de trabalhos, etc. Estes são apenas alguns sinais mais evidentes. Eles mostram apenas a superfície das mudanças e requerem uma análise mais acurada da dinâmica social que lhes é subjacente. Já em relação às condições do trabalho profissional, penso que os Assistentes Sociais como a maioria dos trabalhadores brasileiros, passam por grandes dificuldades, seja na condição de servidores públicos, seja na condição de trabalhadores precários, sem segurança no trabalho como é o caso das ONGs que contratam profissionais por projeto, seja nos chamados trabalhos temporários, como é o caso dos professores substitutos, ou mesmo em algumas áreas como ocorreu em Pernambuco na Secretaria da Justiça. Estas condições de trabalho, por vezes, são instrumentos de desqualificação profissional porque o profissional não tem condições de fazer proposições, está ali como um mero executor de um projeto, sabe da vulnerabilidade da sua condição profissional, etc. Isso para não falar dos baixos salários que inviabilizam o acesso a livros, revistas, cursos e outras atividades necessárias à sua atualização. No âmbito da formação profissional, em sentido ampliado, também estamos observando sinais de mudanças que se vinculam a esta conjuntura do “mundo do trabalho” dos Assistentes Sociais. Há uma pressão muito grande para que a nossa formação deixe de ser crítica e generalista para adequar-se à cultura pragmática e efêmera da pós-modernidade. O saber técnico especializado – necessário a qualquer atividade – está se restringindo ao “saber-fazer”, à formação de competências especificas e conjunturalmente necessárias para quem nos contrata. Nada tenho contra formar especialistas; a minha questão é não perder a perspectiva da totalidade, é permitir que sejamos bons e argutos críticos da realidade. Acho que os Assistentes Sociais têm obrigação de ter opinião e posição sobre o que ocorre no nosso ambiente. Ainda hoje estava pensando: diante do escândalo das subvenções na Assembléia Legislativa, nenhum de nós escreveu no jornal ou deu qualquer depoimento sobre assistencialismo, clientelismo, assistência, etc. Isso nos qualificaria como trabalhadores, intelectuais e profissionais. Precisamos publicizar nossos pontos de vista, pensar e aproveitar seriamente o potencial que temos para reproduzir massa crítica, explorar nossa experiência. Estamos, ora procurando o que não temos e perdendo o espaço que conquistamos nos anos 80; ora reféns da passivização dessa ordem que quer desmontar nossos princípios e valores profissionais e sociais. Neste sentido penso que estamos num momento decisivo: ou mobilizamos nossas forças para evitar que esta profissão se transforme num mero exercício técnico-aplicado, ou enfrentamos o desafio de sermos trabalhadores sociais com capacidade de intervir qualificadamente nos mecanismos de enfrentamento e superação das desigualdades sociais no país. É preciso ousar intelectual e politicamente com os meios de que dispomos. O CRESS é um deles.

 


Referências Bibliográficas

GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1995.

Ética, direitos humanos e diversidade *


                                      

                               

Maria Lúcia Silva Barroco**

Diversidade e direito à diferença

A diversidade é um tema que envolve profissionais, pesquisadores e militantes políticos nos debates que se realizam no campo dos direitos humanos. Nesse pequeno ensaio, sem nenhuma pretensão de aprofundar uma temática tão complexa, nos propomos a pensá-la como objeto de reflexão ética.

Como componente da realidade social, a diversidade está presente nas diferentes culturas, raças, etnias, gerações, formas de vida, escolhas, valores, concepções de mundo, crenças, representações simbólicas, enfim, nas particularidades do conjunto de expressões, capacidades e necessidades humanas historicamente desenvolvidas. Assim, é elemento constitutivo do gênero humano e afirmação de suas peculiaridades naturais e sócio-culturais.

As identidades que unem determinados grupos sociais, diferenciando-os dos outros, não deveriam resultar em relações de exclusão, desigualdade, discriminações e preconceitos. Quando isso ocorre é porque suas diferenças não são aceitas socialmente e, neste caso, estamos entrando no campo das questões de ordem ética e política, espaço da luta pelo reconhecimento do direito à diferença, uma das dimensões dos direitos humanos.

Em torno da problemática da discriminação e do preconceito, articulam-se determinados valores como a tolerância e a alteridade. Tais valores adquirem uma dimensão ético-política mais abrangente, pois implicam na liberdade e na equidade.

Tolerância e alteridade, mais do que valores, são mediações estabelecidas nas relações entre os homens, donde sua historicidade. Podemos constatar, recorrendo à história, que a defesa da tolerância pertence às conquistas da sociedade moderna; perpassa pela reivindicação da tolerância religiosa, com Locke, pela tolerância política, com Voltaire e os ilustrados, no século XVIII e por Stuart Mill e Bentham, no século XIX (Vázquez: 1999).

Costuma-se definir tolerância, em geral, como uma relação social que supõe a existência de alguma diferença aceita como um direito: o direito de ser diferente.


* Texto elaborado para a pesquisa “Ética e direitos humanos: unidade e diversidade do Fórum Social Mundial” que integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos (NEPEDH) do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social PUC-SP e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre ética do Programa de Pós-graduação em Serviço Social (GEPE) da UFPE.                                                    ** Coordenadora do NEPEDH.

Alguns autores tratam de dois tipos de tolerância: a positiva e a negativa (Exteberria: 2001). A positiva, quando a diferença nos afeta de modo que não possamos ficar indiferentes a ela (Vázquez, 1999); a negativa, quando não a aceitamos, mas a “toleramos” com indiferença.

Por outro lado, Jacquard chama a atenção para não confundirmos respeito com tolerância uma vez que: “A tolerância é uma atitude muito ambígua (Para isso, existem casas…, dizia Claudel). Tolerar é julgar-se em condições de dominar e de julgar, isto é, é ter de si mesmo um conceito o bastante positivo para aceitar o outro com todos os seus defeitos” (Jacquard, 1998:04).

Jacquard está propondo substituir a tolerância pela alteridade: “É necessário tomar um rumo completamente diferente e tomar consciência da contribuição dos outros, que se torna tanto mais rica quanto maior for a diferença em relação consigo mesmo” (Idem, 04).

A alteridade, como o respeito ao outro (que é diferente), complementa a fundamentação pertinente à defesa da diversidade como direito. “A valorização da alteridade é também uma crítica ao individualismo burguês, ou seja, à idéia de que respeitar o outro é entender que “o limite da nossa liberdade acaba onde começa a do outro”, portanto, uma liberdade “sem o outro”.

A tolerância positiva, assim como a alteridade, implica na liberdade e na equidade porque exige, como vimos, uma aceitação consciente do diferente; uma aceitação que vê o outro como sujeito livre e que respeita a sua decisão embora ela não seja compartilhada. Não existe indiferença, nem isolamento (como na liberdade liberal do tipo “cada um na sua”, o que representa uma total indiferença), portanto, a relação social não é rompida, existe uma reciprocidade mediada pela diferença, pela aceitação e pela alteridade.

Até aqui falamos da diversidade como valor positivo, donde sua relação com a alteridade, a liberdade, a equidade e a tolerância como direito à diferença. No entanto, a ética não trata apenas do “bem”, ou do que no campo dos valores entendemos por valores positivos. A negação de todos esses valores, isto é, a intolerância, o desrespeito ao outro, a defesa da desigualdade e da não liberdade são também temas da reflexão ética, uma vez que se trata de compreender que o movimento real entre a afirmação e a negação dos valores é um movimento muito mais complexo do que parece.

Na intolerância, também ocorre uma relação social em que um dos sujeitos (ou um grupo, uma raça, etc) é diferente ou faz algo diferente e isso nos atinge. Não ficamos indiferentes, porém nossa reação é oposta à da tolerância positiva; aqui, diante das diferenças, assumimos atitudes destrutivas, fanáticas, racistas. A diferença é negada; mais do que isso: buscamos destruí-la, excluir a identidade do outro, através da afirmação da nossa tomada como a única válida (Vasquez, 1999).

Historicamente, a intolerância percorre a trajetória da humanidade, destacando-se a religiosa e a racial como dois grandes marcos da opressão e injustiça vinculados à questão da diversidade e aos direitos humanos. Também sabemos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que foi elaborada após a II Guerra Mundial, teve como uma de suas finalidades tentar evitar que se repetissem atrocidades a exemplo do Nazismo. Entretanto, mesmo que a partir deste marco muito já se tenha avançado em termos político-jurídicos internacionais, a história da intolerância continua a ser escrita, em todos o mundo.

Na prática, o que podemos constatar, sem dúvida, é que os mecanismos de denúncia de violações aos direitos humanos, a organização crescente dos movimentos sociais, com destaque para os de mulheres, negros e homossexuais, o uso da tecnologia virtual e o fortalecimento de movimentos “globais” anticapitalistas, como os do Fórum Social Mundial, têm contribuído para um enfrentamento mais dinâmico, no sentido de sua visibilidade e agilidade social no enfrentamento das questões que estamos analisando.

 

Uma questão ética e política: a tolerância tem limites?

Destacamos, anteriormente, que a discussão sobre a diversidade não é simples. Tentaremos traçar novas linhas de sua complexidade através da polêmica que envolve a relação entre tolerância e intolerância sob o ponto de vista da ética e da política, no âmbito da defesa dos direitos humanos.

Assinalamos que a tolerância (respeito à diferença) é um valor positivo quando promove o desenvolvimento de capacidades e vínculos essenciais do homem (como a alteridade, que é sinônimo de reciprocidade e um vínculo de sociabilidade, e a liberdade que é o valor ético-político essencial). Por outro lado, tomamos a intolerância como um desvalor, por negar aquelas mediações. Não podemos esquecer que tais relações e vínculos – aqui tratados abstratamente – são sociais e historicamente construídos.

Teoricamente, adotamos a seguinte medida de valor para considerarmos uma ação eticamente positiva:

São de valor positivo as relações, os produtos, as ações, as idéias sociais que fornecem aos homens maiores possibilidades de objetivação, que integram sua sociabilidade, que configuram mais universalmente sua consciência e que aumentam sua liberdade social. Consideramos tudo aquilo que impede ou obstaculiza esses processos como negativo, ainda que a maior parte da sociedade empreste-lhe um valor positivo (Heller, 1972:78).

Nesse sentido, as ações que estariam impedindo a objetivação da liberdade, da sociabilidade, da consciência e universalidade deveriam ser toleradas? Quando está em discussão a diversidade cultural, trata-se de indagar sobre a abrangência e validade do particular e do universal em termos dos valores éticos e das decisões e implicações políticas que permeiam as diversas práticas culturais da humanidade, ou seja, perguntamos se é possível e mesmo desejável sob o ponto de vista ético-político que sejamos tolerantes de forma absoluta.

Historicamente, no campo da antropologia cultural, encontramos posicionamentos que defendem o ponto de vista do chamado relativismo cultural, que baseado nos princípios da alteridade e da tolerância privilegiam o respeito à indiferença; à particularidade.

Para Diniz (2001):

O reconhecimento da existência do humano no plural, da diversidade cultural da humanidade, fez com que a perspectiva do relativismo cultural – como uma ferramenta básica da antropologia – se consolidasse. O problema não parece ser, no entanto, o relativismo cultural como uma perspectiva metodológica de apreensão da realidade, mas o relativismo como uma ideologia que justifica as diferenças em termos culturais, ou seja, que assume as premissas culturais como verdadeiras (Idem: 60).

Assim, Débora Diniz chama a atenção para a gênese desse movimento: a recusa da dominação imperialista, o questionamento acerca dos limites dos padrões universais. Como ela mesma afirma, o relativismo cultural pergunta:

Sobre quem teria a autoridade do tribunal de julgamento da diversidade, ou seja, de quem é a voz do tribunal acima das contingências culturais? Em outras palavras, quem vai ditar a verdade para a humanidade sobre o que seja ou não um padrão de cultura válido? Quem vai determinar a validade ou a legitimidade de uma crença? (idem).

As questões mais polêmicas, no âmbito desta discussão, referem-se a práticas culturais que representam – para os movimentos de direitos humanos – e para parte da humanidade, atos de violência inadmissíveis. Podemos citar como exemplos de práticas culturais: o genocídio, o etnocídio, o racismo e várias práticas culturais relativas à discriminação contra à mulher, dentre elas a da mutilação sexual. Isso sem contar a lista interminável de violações que consta dos documentos de direitos humanos e que não se restringe a práticas culturais, tais como o trabalho escravo, a tortura, o terrorismo de estado, a guerra, a fome, a prostituição infantil, etc.

Por isso, é importante salientar que embora os exemplos a respeito das práticas culturais de violação aos direitos humanos acabem recaindo sobre os países não ocidentais (como é o exemplo das mulheres nos países mulçumanos), isso não significa afirmar que a civilização ocidental seja um exemplo de não violação. A medida é dada pelas conquistas da humanidade, em termos genéricos e históricos, levando em conta o que a humanidade e cada segmento específico já conseguiu avançar em termos de conquistas dessas questões, sempre tendo por medida a liberdade, a sociabilidade, a universalidade, isto é, os atributos e capacidades que ampliam as possibilidades do homem e que estão objetivados em documentos, leis, declarações, em âmbito nacional e internacional, enquanto produto de lutas por direitos.

Acompanhamos, recentemente, através da mídia, o caso de uma africana condenada por leis muçulmanas à morte por lapidação1, por um crime de adultério, apesar de estar separada do marido ao ter concebido sua filha. Para a opinião pública mundial, tais práticas não deveriam mais existir; porém sabemos que esta é apenas uma dentre inúmeras questões que envolvem, interesses políticos, religiosos, culturais, mas também comprometem ativistas dos direitos humanos e estudiosos a se posicionarem frente a ela.

Perguntamos se em nome do respeito à diferença devemos concordar com essa condenação; ou, então, se devemos nos omitir.

Segundo Combesque (19998),

Em vinte países africanos e também em certas regiões da Ásia e do Médio Oriente, mais de 102 milhões de mulheres são vitimas de mutilações sexuais. Todos os anos a excisão e/a infibulação são praticadas em cerca de dois milhões de adolescentes (Idem: 114).

As conseqüências da mutilação não se resumem à perda do prazer,

“As conseqüências destes atos bárbaros na sua saúde dão muito graves e multiplos, por vezes mortais, durante ou após a ‘operação’, realizada como auxílio de uma lâmina de barba, de uma agulha ou linha, sem anestesia…” (Idem)

Diniz (2001), que pesquisa a questão da mutilação genital feminina; afirma que a prática é utilizada em 83 países e justificada sob as mais diferentes formas. “Na Etiópia, por exemplo, 98% das mulheres são mutiladas pelo sistema de mutilação faraônica […] que extrai toda a genitália feminina” (Idem: 59). Segundo ela, as diferenças no trato da questão já aparecem na qualificação dada ao ato de mutilação: para os antropólogos é um ritual; para os movimentos de mulheres, um ato de violência. Mas embora com qualificações diferentes, a questão que se coloca, diz ela, é a mesma: “quais valores culturais justificam tal ato?” (Idem).

 


1 Trata-se de Amina, condenada à morte, com apedrejamento, na Nigéria, divulgado amplamente pela Anistia Internacional.

O que podemos observar é que a qualificação da prática (ritual ou ato de violência) interfere inclusive na caracterização da violação, ou seja, podemos ou devemos julgar um ato de violência contra as mulheres, mas julgar um ritual já é algo muito mais ameno, menos caracterizado como objeto de julgamento ético-político.

Ainda para Diniz,

A cirurgia de mutilação feminina é um dos grandes ícones de uma geração de antropólogos que vem passando os limites da cultura, da tortura e dos valores universais. O curioso é que a grande maioria dos antropólogos procura antes justificar a mutilação da mesma forma que as culturas o fazem, do que sair à procura de mecanismos de julgamento para a diversidade cultural (2001: 60).

Observamos a imbricação entre essa discussão e a ética, uma vez que o que está em pauta são as ações julgadas ou não a partir de valores ético-morais com implicações políticas, pois o não julgamento não significa uma ausência de valores, mas sim uma concepção de neutralidade ética e política, uma vez que não contribui para o avanço da autonomia das mulheres, para o fortalecimento de sua emancipação. O eixo da discussão posta aponta para a indagação acerca da validade universal dos valores e normas culturais relativas a direitos. Como vimos, para as correntes do relativismo cultural a resposta é negativa.

Na base das teorias que defendem o relativismo cultural também observamos a presença de suportes ético-filosóficos como o relativismo moral que defende a existência de vários códigos morais na sociedade; cada qual com seu valor relativo e as tendências do chamado relativismo ético; correntes que se aproximam do irracionalismo, defendendo a idéia de que “não é possível chegar a um acordo racional universal na discussão dos princípios éticos, e, portanto, à impossibilidade de discernir, entre juízos morais em conflito, qual é o correto” (Etxberria, 2002: 256).

 

Resgatando o caráter universal da ética

As questões já assinaladas recolocam a questão inicialmente proposta: devemos tolerar tudo? Qual é o limite da tolerância? Ao colocar um limite estaríamos necessariamente caindo no pólo oposto – o da intolerância?

Não temos todas as respostas, apenas nos propomos a ensaiar algumas reflexões, partindo de alguns supostos buscados na ética, de acordo com o referencial que tem seus fundamentos na ontologia social de Marx.

A ética, entendida como uma ação prática consciente, que deriva de uma escolha racional entre alternativas e orienta-se por valores que buscam objetivar algo que se considera “valoroso”, “bom”, “justo”, contêm algumas mediações essenciais: a razão, as alternativas, a consciência, o projeto que queremos realizar, os valores éticos, a responsabilidade em face das implicações objetivas da ação para os outros homens, para a sociedade. A questão da responsabilidade é, pois, central na ação ética, uma vez que ela dá sentido à sociabilidade e à liberdade inerente às escolhas2.

Ontologicamente considerada, a ética é também uma atividade que permite ao indivíduo sair de sua singularidade para estabelecer uma conexão consciente com o humano genérico; logo, é uma atividade universalizante, mesmo sendo realizada por um indivíduo particular. Nesse sentido, a ética se põe como mediação entre todas as esferas sociais, inclusive da esfera moral, campo institucionalizado de normas e deveres orientadores do comportamento dos indivíduos sociais e campo propício à reprodução de valores e deveres assimilados espontaneamente pela tradição, pela repetição, pelo hábito, ou seja, de forma acrítica, levando à reprodução da alienação no campo do comportamento ético-moral.

A ética é uma capacidade humana fundada na liberdade de escolha, mas a autonomia implica na racionalidade crítica capaz de ultrapassar o nível do que é repetido espontaneamente para recriar a vida em patamares cada vez mais criativos e livres. A ética tem um caráter universalizante porque sua razão de ser é exatamente a de estabelecer a conexão entre a singularidade e a genericidade do homem.

Para Marx, a liberdade consiste na participação dos indivíduos sociais na riqueza humano-genérica construída historicamente: “a humanidade será livre quando todo homem particular possa participar conscientemente na realização da essência do gênero humano e realizar os valores genéricos em sua própria vida, em todos os seus aspectos” (Marx, segundo Heller, 1977: 217).

 

 

 

 

 

 

 

 


2 Em nossa sociedade, nem todas as escolhas deveriam ser julgadas moralmente; muitas se referem a opções pessoais cujo resultado não está impedindo a manifestação das capacidades humanas. São escolhas, como por exemplo, a orientação sexual, o modo de se vestir ou de se comportar, ou seja, questões que só são tidas como morais pela presença do preconceito, típico do moralismo.

Por riqueza humana, Marx concebe a universalidade das necessidades e capacidades, o domínio do homem sobre a natureza, a explicitação absoluta de suas faculdades criativas. Em suas palavras3: “Uma explicitação na qual o homem não se reproduz numa dimensão determinada, mas produz sua própria totalidade(…) Na qual não busca conservar-se como algo que deveio, mas que se põe no movimento absoluto do devir…” (Marx, 1971, I, 372).

Pelo exposto, podemos considerar que a diversidade, tomada como a explicitação dos “valores humano-genéricos em todos os seus aspectos”, como a expressão da manifestação da criatividade humana, da multiplicidade de capacidades e possibilidades do ser social é, como afirmamos inicialmente algo valoroso porque é elemento de explicitação do próprio homem, como ser humano-genérico, rico em, necessidades e formas de satisfação.

Ao mesmo tempo, a existência concreta de relações mediadas tanto pela tolerância como pela intolerância vem nos mostrar que no processo de desenvolvimento do homem – marcado pela existência da alienação, que coincide com o surgimento da sociedade de classes – ocorrem, simultaneamente, o desenvolvimento de conquistas do gênero humano na direção de sua emancipação e a sua negação, por parte dos indivíduos sociais, grupos e extratos sociais.

De acordo com esses pressupostos, manifestações culturais que representam atos de violência que, em termos das conquistas humano-genéricas emancipatórias já foram negadas, não podem ser toleradas, inclusive porque representam formas de alienação , cuja superação significa a apropriação de conquistas já efetuadas em termos do desenvolvimento humano genérico e significa, também, em termos da liberdade, a superação, a ruptura com os obstáculos e impedimentos que se colocam como limites à plena manifestação dos indivíduos sociais.

Isso posto, entendemos que o desenvolvimento da história no horizonte da emancipação humana encontra na relação entre as particularidade que constituem as diversas culturas e modos de ser humanos e a universalidade de suas conquistas na direção da liberdade, a possibilidade de intercambio gerador da riqueza humana historicamente construída.

 


 3”Em todas as formas, ela [ a riqueza representada pelo valor ] se apresenta sob a forma objetiva, quer se trate de uma coisa ou de uma relação mediatizada por uma coisa, que se encontra fora do indivíduo e casualmente a seu lado[…] Mas, in fact, uma vez superada a limitada forma burguesa, o que é a riqueza se não a universalidade dos carecimentos, das capacidades, das fruições, das forças produtivas, etc., dos indivíduos, criada no intercâmbio universal? O que é a riqueza se não o pleno desenvolvimento do domínio do homem sobre as forças da natureza, tanto sobre as chamadas da natureza, quanto sobre as da sua própria natureza? O que é a riqueza se não a explicitação absoluta de suas faculdades criativas, sem outro pressuposto além do desenvolvimento histórico anterior, que torna finalidade em si mesma essa totalidade do desenvolvimento, ou seja, do desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tais, não avaliadas segundo um metro já dado? ( Marx, 1971, I, 372)

E a ética, pelo seu caráter universalizante e valorativo, pode fornecer uma medida para o julgamento de valor em face de alternativas que se referem à diversidade.

Dessa forma, tanto a absolutização do particular como do universal, sem levar em conta sua historicidade e, como tal, a presença de relações contraditoriamente marcadas pela alienação e por possibilidades de sua superação levará a soluções abstratas e unilaterais.

Vimos que para o relativismo ético não é possível, diante de vários códigos morais em conflito, chegar a um acordo racional, o que significa deixar de atribuir ao sujeito ético o uso da razão, a capacidade de escolha e a responsabilidade pelas escolhas, que, na verdade, deixa de ser um sujeito com autonomia, fundamento ontológico da capacidade ética do ser social. Ao mesmo tempo, nega-se a possibilidade de consensos, princípio político democrático produzido pelo confronto entre diferentes. No limite, caímos no niilismo ético-político, pois se tudo é relativo nada tem valor e se não é possível consensos também deixa de ter sentido o debate plural.

Assinalamos, também, que a crítica do relativismo cultural fundamenta-se basicamente na negação do imperialismo cultural ocidental e na indagação em face da seguinte questão: quem teria a responsabilidade de julgar a diversidade? Essa questão já implica afirmar que qualquer cultura que se dispuser a julgar terá um ponto de vista particular.

Se refletirmos sobre o significado ideológico destes questionamentos, vemos que eles têm sua razão de ser uma vez que, de fato, a cultura dos direitos humanos que representa a base dos documentos internacionais e que servem de referência para as violações, é um produto histórico da civilização ocidental; portanto, ideologicamente marcada por uma determinada forma de sociedade, de cultura e de valores. Entretanto, a questão é muito mais complexa, pois sua negação, em nome da recusa à dominação imperialista, tem seus desdobramentos, com implicações éticas e políticas que podem produzir um resultado objetivo oposto ao desejado pela sua crítica.

Nos parece que o enfrentamento dessa problemática não se resolve pelo relativismo, pelo já exposto, mas o inverso – a defesa do universal – também implica em muitas mediações. Por um lado, não podemos aceitar, a priori, que as Declarações de Direitos Humanos, cujos fundamentos correspondam a uma determinada cultura (ocidental, cristã, liberal, capitalista), sejam tomadas como um modelo ético0político perfeito. Sua validade sempre deverá ser mediada pelo nível de incorporação das diferentes culturas e de uma construção que estabeleça mediações entre o particular e o humano genérico, através do debate dos movimentos mundialmente articulados e representativos de todas as diversidades existentes na vida social e tendo por horizonte a emancipação humana, o que supõe a superação desse modelo.

No âmbito da defesa dos direitos, a mediação entre o particular e o universal deve ser buscada pela via democrática, através do debate plural que comporte a diversidade, mas que tenha um objetivo comum: preservar as particularidades, elegendo alguns princípios universais que garantam um consenso em torno de valores éticos políticos.

Esse universal – tendo por parâmetros as conquistas emancipatórias – seria então o limite entre o tolerável e o intolerável, o limite entre o que fere e anula as identidades particulares, ou seja, os valores e princípios que hoje são utilizados para julgar as violações contra os direitos humanos e outros que forem criados pelos homens, pois para o humano, a medida de valor é o próprio homem.

Por isso, a questão do pluralismo, assim como a da diversidade, não significa ausência de conflitos e interesses, mas sim o posicionamento diante deles, a possibilidade de todos se manifestarem, a responsabilidade ética de tomar uma posição diante do que não concordamos e a condição política de lutar pela hegemonia do projeto que defendemos.

Nesse sentido, nosso Código de ética é bem claro quando, em seus princípios afirma que os assistentes sociais elegem como princípios fundamentais, a liberdade, a democracia, a equidade, a justiça social, o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito e de discriminação por questões de classe social, gênero, etnia, religião, respeito à diversidade, à discussão das diferenças e a garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais democráticas existentes…

De forma explícita, nosso Código indica uma concepção de diversidade e de tolerância, cujo limite é colocado em torno do campo democrático e da negação daqueles valores cujas ações e manifestações produzam o racismo, o preconceito, a discriminação, enfim, a negação dos valores considerados positivos.

Esse posicionamento, que vem sendo conquistado em várias dimensões do Serviço Social brasileiro, há pelo menos três décadas, evidencia um amadurecimento teórico – metodológico e ético-político que – se por um lado precisa ser constantemente realimentado para não se perder – por outro, nos coloca como interlocutores privilegiados no campo da defesa dos direitos, em suas várias configurações.

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo, Cortez, 2001.

CFESS. Código de Ética Profissional do Assistente Social, CFESS, Brasília, 1993.

COMBESQUE, Marie Agnès. Introdução aos direitos do homem. Portugal, Lisboa, Terramar, 1998.

DINIZ, Débora. Direitos Universais, valores culturais. In Novaes, Regiva (Org.), Direitos Humanos: temas e perspectivas, Rio de Janeiro, Mauad, 2001.

ETXBERRIA, Xabier. Etica de la diferencia. Espanha, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001.

HELLER, Agnes. O quotidiano e a história. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1972.

______________. Sociologia de la vida cotidiana. Espanha, Barcelona, Península, 1977.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Entre la realidad e la utopia: ensayos sobre política, moral y socialismo. México, Fondo de Cultura Econômica, 1999.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Democracia em tempos de globalização


                                   

Edistia Maria Abath*

A constituição da ordem mundial, nos dias de hoje, remete a complexas relações entre o que se convencionou chamar de principais Países do mundo e, como tais se legitimaram os Estados Unidos, bloco – G7- se fortalecem e constituem uma hegemonia configurada por ações de caráter expansionista e por que não dizer recolonizadora, frente aos demais países do mundo? Nesse sentido, impõe-se a tarefa de compreensão dos supramencionados processos em curso, com a finalidade de contribuir para o debate sobre questões teórico-práticas dessas manifestações conjunturais.

Na atualidade, diversas configurações políticas, são chamadas de democracia, embora, ao serem analisadas, mesmo sob o mero prisma da etimologia da palavra, não resistem a questionamentos amplos e profundos, sobre as formas que imprimem àquelas estruturas que chamam de democracia.

Held destaca o fato de que,

Sob a epiderme do triunfo da democracia, surge um aparente paradoxo: ao mesmo tempo em que o “governo do povo” ganha novos defensores, a própria eficácia de democracia, como forma nacional de organização política, pode ser colocada em dúvida. As nações proclamam-se democráticas, no momento exato em que as mudanças, no âmbito da ordem internacional comprometem a possibilidade de um Estado-nação democrático, independente (Held, 1991: 91).

Constata-se, aqui, um novo aspecto a ser considerado, tendo em vista as premissas subjacentes à doutrina da democracia – tanto em sua versão liberal, como na chamada “radical”.

As democracias podem ser tratadas, essencialmente, como unidades auto-suficientes; e as democracias são, claramente, separadas umas das outras. Ademais as mudanças, no âmbito de uma democracia, dizem respeito às estruturas internas e à dinâmica das sociedades democráticas nacionais; o que a política expressa, em última analise, é a interação de forças, operando no plano do Estado-nação (Idem).

 

 


 * Professora da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE e pesquisadora do GEPE/UFPE. E-mail: edistia@uol.com.br

A democracia liberal, no dizer de Held, provocou um enorme crescimento das burocracias públicas, congestionando o espaço da iniciativa privada e do exercício da responsabilidade individual. Nessa perspectiva, observou-se a preocupação da esquerda como crescimento da congruência entre os representantes políticos e os cidadãos ordinários, tendo em vista a responsabilidade política e democrática do Estado. A esquerda, não se alinhou à idéia de que o Estado é uma autoridade independente e deve manter seu poder circunscrito, em relação à cidadania – proposição que corresponde à auto-imagem ou à ideologia do Estado Moderno.

Segundo Mcpherson(1985) e Patewrman (1970), o Estado se encontra, inexoravelmente, comprometido com a manutenção e reprodução das desigualdades da vida cotidiana. Em diversas formas de democracia participativa e em concepções republicanas de cidadania, na busca de maior democratização do Estado e da Sociedade Civil, a ênfase recai na obrigação de levar o processo político a uma maior responsabilidade com grupos e indivíduos e numa maior transparência e sensibilidade aos desejos e necessidades do povo.

É preciso, porém, além de assinalar os elementos de continuidade na formação e estrutura do Estado e da sociedade modernos, considerar os elementos, na sua forma e dinâmica atual, quando se tem uma ordem internacional que compreende a emergência de um conjunto complexo de regras, sobretudo econômicas, mesmo para aqueles de maior relevância, no cenário político. Pode-se destacar que essas normas não permitem o controle individual em nenhum Estado, nem, também, a expansão de redes transnacionais de comunicação sobre as quais os Estados, individualmente, têm pouca ou nenhuma influencia. De acordo com Held, é necessário, também, considerar:

A intensificação da diplomacia multilateral e a interação transgovernamental, que pode opor contrapesos e limitar a latitude de ação dos estados mais poderosos; o desenvolvimento de uma ordem militar global e a edificação de meios de guerra total como características estáveis do mundo contemporâneo que podem reduzir o espectro de políticas a disposição dos governos e seus cidadãos (Idem).

Por meio desses elementos, considera-se que os processos atuais de decisão democrática devem ser vistos no contexto de uma sociedade multinacional, multilógica e internacional e no cenário de uma série de Instituições, já existentes ou emergentes, em nível regional ou global e nas áreas políticas, econômicas e culturais:

A expansão das conexões intergovernamentais e transnacionais contudo, a era do Estado-nação de modo algum terminou. Ainda que o Estado-nação territorial tenha declinado, é preciso observar que esse é um processo desigual e em particular, restrito ao poder e ao alcance dos Estados-nação dominantes do Ocidente e do Leste. A sociedade global européia alcançou seu ponto de máxima influencia na virada do século XX, e a hegemonia americana caracterizou as décadas do pós guerra (…) se o sistema global se configura hoje por mudanças significativas, isso deve ser entendido menos como o fim da era dos Estado-nação que como um desafio à era dos Estados hegemônicos (Idem: 92).

Isso constitui um desafio, pela imposição de limites e restrições ao Estado-nação, que terá as possibilidades de tornar uma sociedade democrática soberana diferenciada. Held diz que a soberania é erodida, apenas, quando deslocada por uma autoridade superior ou independente que reduz o âmbito legitimo de decisão do Estado nacional. O autor ressalta que soberania diz respeito à autoridade política:

No seio de uma comunidade que detém o direito incontestado de definir o sistema de normas, regulamentos e políticas num dado território, e de governar de acordo com esse direito, da capacidade real do Estado de agir independentemente na articulação e busca de objetivos políticos domésticos e internacionais… a autonomia refere-se à capacidade do Estado-Nação agir independentemente das restrições internacionais e transnacionais e de alcançar objetivos quando estes tenham fixados (Idem: 94).

Nesse sentido é que se pode indaga: será que a soberania se mantém, quando a autonomia foi reduzida? Como fica a democracia, diante dessas injunções da realidade?

Algumas “disjuntivas” são apontadas no estudo do autor já citado, no tocante à democracia, tendo em vista os mecanismos, desenvolvidos pelo processo de globalização, ou seja: “há uma disjuntiva entre autoridade formal do Estado e o sistema vigente de produção, distribuição e comércio que limita de varias maneiras o poder ou âmbito de ação das autoridades políticas nacionais (Held, 1989: 13).

Entre essas disjuntivas, destacam-se:

  • a economia mundial que compreende a internacionalização do que é produzido ou seja, seu planejamento é realizado, tendo, como referencia a economia mundial e as operações financeiras, que, devido ao avanço da informática, passaram a ter mobilidade em relação aos diversos tipos de moeda, estoques e ações, podendo, desse modo se adequar às operações como todo tipo de organizações financeiras e comerciais;
  • o enfraquecimento das fronteiras, provocado pelo progresso tecnológico das comunicações e transporte, torna mais vulneráveis e sensíveis os mercados; (anteriormente sem essa aproximação, esse limite era preservado permitia a administração de políticas econômicas e nacionais independentes);
  • A interconexão das economias do mundo contribui para a dificuldade de aplicação das políticas econômicas e sociais, pois estabelece um padrão de prioridade, geralmente sob a ótica do Mercado.

Outras disjuntivas são, ainda, apontadas por Held1, segundo as quais são estruturadas novas formas de sociabilidade, ou seja, de pressão para implementação de políticas mundiais. Dentro do conjunto dessas proposições, pode-se destacar:

O desenvolvimento do direito internacional submeteu indivíduos, governos e organizações não governamentais a novos sistemas de regulação legal. O direito internacional reconheceu poderes e limitações, direitos e deveres que transcendem a Estados-nação, e que, mesmo não sendo garantidos por instituições dotadas de poder coercitivo, têm conseqüências de grande alcance (Held, 1991: 173).

O autor chama a atenção para o fato de que as regras, as quais visavam proteger a autonomia dos Governos, em julgamentos, no que concerne à sua política externa e interna e restringir a ação dos tribunais de cada País a ações em seu próprio território, preservando-se, assim, a soberania das diversas nações, vêm sendo, cada vez mais, questionadas, indicando forte tensão entre soberania e Direito Internacional. Outra disjuntiva para a qual o autor chama a atenção é: “O sistema global de Estados, caracterizado pela existência de grandes potências e blocos de poder, que às vezes debilita a autoridade r a integridade do Estado (Idem: 176).

Através desse conjunto de aspectos, observa-se que a Ordem Internacional está mudando e, inexoravelmente, também o papel do Estado. Há bastante tempo, um complexo global de interconexões vem se difundindo, porém, atualmente, pode-se identificar uma intensa propagação da internacionalização de atividades domesticas e uma concentração dos processos decisórios, em nível internacional. A esse respeito, McGrew e Held afirmam:

O Estado transformou-se numa arena fragmentada de formulação de decisões políticas, permeada por redes transnacionais (governamentais e não governamentais) e por órgãos e forças internos. Do mesmo modo, a vasta penetração das forças transnacionais na sociedade civil alterou sua forma e sua dinâmica… Criaram-se novas formas de política multilateral e global, que envolvem governos, organizações intergovernamentais (OIGs) e uma vasta gama de grupos de

 


 1 Vasta gama de organização e regimes internacionais estabelecida para administrar setores inteiros da atividade transnacional (comercio, os oceanos, o espaço e assim por diante). O crescimento do número dessas novas formas de associação política reflete a rápida expansão das ligações transnacionais.

pressão transnacionais e organizações não governamentais internacionais… Houve um aumento explosivo do número de regimes internacionais, como o regime de não-proliferação nuclear (Held, 2001: 31 -32).

 

Observa-se, ainda, uma intensa rede de atividades nos e entre os principais foros internacionais, formuladores de política, as quais abrangem as reuniões de cúpula da ONU, do G7, do FMI, da Organização Mundial do Comércio (OMC), da União Européia, da Cooperação Econômica Asiática no Pacífico (CEAP), do Fórum Regional da Associação de Nações do Sudeste Asiático, de reuniões para o desenvolvimento da Área Livre de Comércio das Américas (ALCA) e Mercado do Cone Sul (MERCOSUL).Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a globalização revela em uma magnitude crescente, o aceleramento e o aprofundamento do impacto dos fluxos e padrões inter-regionais de interação social.

Um outro aspecto a destacar é que o debate sobre a globalização se difundiu paralelamente à expansão do projeto neoliberal. O consenso, de Washington, acerca da desregulamentação, privatização, programas de ajuste estrutural (Paes) e limitação do Governo provocaram a emergência de muitas questões, nos principais países do mundo, ligados às condições de vida do seu povo e à organização estrutural de produção, emprego e renda. Embora não se possa atribuir as responsabilidades dos aspectos citados à globalização, uma vez que se tem claro que o processo globalista resulta de forças múltiplas, do qual fazem parte , tanto os elementos econômicos, políticos e tecnológicos, além do fatores característicos de uma determinada realidade, tem-se, como claro, que o referido processo provocou um conceito de transformação global que alterou todos os princípios de ordenação da vida social, em nível mundial, sugerindo questionamentos sobre a nova configuração do Estado Moderno, sobretudo, em relação aos aspectos da: soberania, Estado-nação, autonomia, igualdade, liberdade e outros. Tendo em vista o desenvolvimento dos processos, ora citados, o espaço e o sentido de democracia devem ser reconhecidos:

É essencial dar-se conta de que pelo menos as conseqüências centrais de globalização: em primeiro lugar, da maneira pela qual os processos de interconexão econômica política legal e militar, entre outras, estão modificando por cima a natureza do Estado Soberano; em segundo lugar, da maneira pela qual os nacionalismos locais e regionais estão erodindo os Estados-nação por baixo; e em terceiro lugar, da maneira pela qual a interconexão global cria cadeias de decisões políticas e resultados interligados entre os Estados e seus cidadãos que alteram a natureza e a dinâmica dos próprios sistemas políticos nacionais. A democracia tem de acertar contas com esses três desenvolvimentos e suas implicações para os centros de poder nacionais e internacionais (Held, 1991: 179).

O aspecto referido acima, já ressaltado, não pode deixar de ser analisado no tocante à expansão da proposta de Estado neoliberal, que vem erodindo princípios, antes consagrados pela democracia, tais como a igualdade, a liberdade e a autonomia, de acordo com o receituário, que o caracteriza.

Para pensadores, como Friedman, o financiamento do gasto público, em programas sociais, provocou as seguintes distorções: a ampliação do déficit público, a inflação, a redução da poupança privada, o desestímulo ao trabalho e à concorrência, com a conseguinte diminuição da produtividade, e até mesmo a destruição da família, a falta de motivação para os estudos, a formação de gangues e a criminalização da sociedade. A ação do Estado, no campo social, deve se ater a programas assistenciais: auxílio à pobreza, de forma irregular, assistemática, para não provocar distorções no Mercado.

Observa-se, no entanto, que a fragmentação do agir ou do papel  do Estado gerou impactos negativos, sobre a integridade dos sistemas de proteção social, introduzindo rupturas, entre os que são empregados e gozam de proteção e os que não são empregados e, provavelmente, não o serão, precariamente, protegidos. A renda mínima, baseada no argumento progressista, ou seja, como uma nova forma de conceber a distribuição da riqueza social, ou como uma nova forma de solidariedade social, baseia-se na mudança de concepção de Justiça Social. De um ideário de justiça cumulativa – preconizando que se dê a cada um o equivalente ao que contribuiu para criar, desloca-se para uma justiça (re) distributiva, entendendo estar assegurado, a cada um, o direito de participar da riqueza geral, seja qual for a contribuição que deu para gerar a riqueza social.

A descentralização, a focalização e a privatização foram implantadas como forma de atendimento a esses segmentos menos favorecidos. A descentralização é concebida como modo de aumentar a eficiência do gasto, já que aproxima problemas e gestão. Busca-se incrementar a interação em nível local dos recursos públicos e dos não governamentais, para o financiamento das atividades sociais. A focalização, por sua vez, significa o direcionamento do gasto social a programas e a públicos-alvos específicos, seletivamente escolhidos pela sua maior necessidade e urgência. Justifica-se a partir da visão de Friedman, que o Estado só deve intervir residualmente e no campo da assistência e que em geral não são mais necessitados aqueles que recebem o benefício. A privatização expressa-se como o deslocamento da produção de bens e serviços públicos para o setor privado lucrativo. Considera-se uma resposta de alívio à crise fiscal, racionaliza os recursos. Propõe também o deslocamento da produção e/ ou distribuição de bens e serviços públicos para o setor privado não-lucrativo composto por associações de filantropia e organizações comunitárias.

  1. a transferência (incluindo a venda) para a propriedade privada de estabelecimentos públicos;
  2. a cessação de programas públicos e o desengajamento do governo de algumas responsabilidades específicas (privatização implícita); reduções (em volume, capacidade, qualidade) de serviços publicamente produzidos, conduzindo a demanda para o setor privado (Draibe, 1993: 97).

O neoliberalismo não tem, em vista, razões pertinentes à justiça social. Suas justificativas voltam-se para questões do volume e, sobretudo, da eficácia do gasto social. A expansão do mencionado sistema vem afetando e, sobretudo, acirrando a questão social2, manifesta nos mais diversos aspectos da produção e reprodução da vida material e espiritual e provocando a desigualdade e a exclusão social. Nessa ótica, é que se questiona o sentido da democracia, na atualidade, quando se percebe que todos os valores, sobre os quais se balizou, desde a formação do Estado Moderno estão eqüidistantes ou esvaziados. Como compreender o sentido de tal categoria, na atual conjuntura? Como interpretar seu significado, frente às contradições da realidade e adotá-la, como Princípio, no exercício de uma determinada profissão?

Tomando, como referencia, as palavras de Chauí (2003), em analise sobre a realidade atual, em relação às diversas manifestações dos movimentos sociais, mais especificamente dos que vêm, há décadas, buscando realizar a reforma agrária:

O que está acontecendo no país, não é uma crise social, mas sim, pela primeira vez na história, o pleno funcionamento da democracia. É uma coisa espantosa e certamente deixa as pessoas desorientadas porque é uma experiência inédita. Contra a idéia liberal de que a democracia é o único regime da lei e da ordem da democracia é o único regime político no qual os conflitos são considerados o princípio do seu funcionamento… Na democracia graças ao trabalho do conflito, a democracia diz ao governo o que ela pensa, o que quer e como quer que seja feito (Chauí, folha de São Paulo: 03/08/2003).

 


 2 Questão social aprendida como conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem um raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantem-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade. (Iamamoto, 1998: 27)

Nesse entendimento, através da plena expansão do direito de reivindicar o acesso aos bens e serviços, necessários à sobrevivência e bem-estar, quem sabe pode se construir uma sociedade, com maiores possibilidades de interferir nos processos fundamentais da formação de uma sociedade emancipada? Retomando a questão sobre a performance da formação da democracia, na realidade atual, Bresser Pereira reflete, acerca dos conflitos, na atualidade, que vêm preocupando os setores conservadores, os quais priorizam a ordem, em relação à justiça. Os representantes dessa concepção exigem o respeito à lei, à propriedade e aos contratos bem como a repressão aos movimentos sociais. Em sua análise, tomando a essência, a natureza do pensamento autoritário, cujas bases atribui à doutrina liberal-clássica, oligárquica ou tecnocrática, indaga:

Serão as pressões sociais a melhor forma de obrigar o governo a pensar por conta própria e a tomar as decisões de interesse nacional? O pensamento autoritário seja ele de origem oligárquica, liberal clássica ou tecnocrática, dirá imediatamente que não. O pensamento oligárquico, porque é autoritário por definição; o pensamento liberal clássico, porque, para ele, a democracia representativa significa dar autonomia ao governo eleito para tomar decisões (que só poderão ser avaliadas pelos cidadãos nas próximas eleições); o pensamento tecnocrático, porque entende que a razão técnica deve sempre prevalecer. E o que diz o pensamento democrático? Afirma que o conflito social e o debate público são dois elementos constituintes das democracias modernas. Não existe democracia sem convivência com conflitos e sua solução através do compromisso ou da argumentação, ou de uma combinação de ambos. (…) A democracia é o regime do conflito social, da argumentação e do compromisso, mas é também o regime da lei e da ordem (Pereira, folha de São Paulo: 10/08/2003).

O autor, coerentemente à linha do seu pensamento, atribui um papel significativo à ordem, como imprescindível às democracias. Por outro lado, arroga o aguçamento das questões sociais, a forma da nossa organização social cujo modelo buscou, sempre, preservar um certo tipo de ordem, a qual, no decurso da história gerou tantas incongruências. Nesse sentido, configura-se o tensionamento, gerado entre os diversos segmentos da sociedade civil brasileira, na atualidade, diante da possibilidade de expressar e reivindicar direitos, há muito tempo, já definidos e até reconhecidos como tal. Isso caracteriza o embate, contextualizado pelo autor, acima referido, entre as diversas forças em conflito, que, há décadas, por que não dizer séculos, vêm se confrontando, pela manutenção de privilégios, que segmentam e dividem a nossa sociedade, em classes diferenciadas: de um lado, uma minoria que detém todo o poder, em detrimento dos direitos de grande maioria, que luta, por eles, ainda, que mínimos. Ressalte-se que a tese sobre a democracia analisada pelo autor, acima, indica a perspectiva, adotada por diversas correntes as quais têm um entendimento ligado a uma visão conservadora de democracia. Tais visões, em geral não admitiam conflitos, como forma de tentativa de solucionar as questões os impasses. Para o autor, só nas democracias modernas, os conflitos se estabelecem, como meio de reivindicação de direitos. Observa-se, entretanto, que em nossa sociedade, considerada, historicamente, uma sociedade moderna, diversos episódios, provocaram inflexões em seu processo de se construir como democracia. Em muitos desses episódios, a expressão de conflitos foi debelada pela força e pelo excesso de autoritarismo. Nesse sentido, acredita-se no confronto, dialeticamente, empreendido como meio de construção de um novo patamar de relações, através do qual se fortaleça o entendimento de que só a superação das desigualdades pode dar esperança à formação de uma sociedade democrática-emancipada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 3. ed.São Paulo: Ática, 1995.

______. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

CARIELLO, Rafael. Democracia é conflito, não ordem, diz Chauí. Folha de S.Paulo, São Paulo, 3 ago. 2003. Brasil, p. A10.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma questão de salário. Tradução Iraci D. Poleti. Petrópolis: Vozes, 1998.

DRAIBE, Sônia M. As políticas sociais e o neoliberalismo. Revista USP, São Paulo, n. 17.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 5. Ed. São Paulo: Loyola, 1992.

HELD, David. A democracia, o Estado nação e o sistema global. Tradução Régis de Castro Andrade. Lua Nova: revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 23, mar. 1991.

______. MCGREW, Anthony. Prós e contras da globalização. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.

IAMAMOTO, Marilda V. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 1998.

 

 

 

 

 

 

 

10 anos do Código de ética dos (as0 Assistentes Sociais: dimensão histórica, lutas e desafios


 

Sâmya Rodrigues Ramos *

Em 2003 o código de ética dos assistentes sociais comemorou uma década de aprovação, no entanto, inúmeros desafios ainda se colocam na perspectiva de materialização dos seus princípios ético-políticos no cotidiano profissional. Discutir os 10 anos do atual código de ética profissional pressupõe contextualizar aspectos do seu processo de elaboração, tendo como referencia as determinações sócio-políticas e o processo de renovação da profissão no Brasil.

  1. 1.  Os determinantes da conjuntura da década de 1990

Vivenciamos desde a década de 1970, e mais explicitamente nos anos de 1980/90, uma crise estrutural caracterizada pelo reordenamento do capital para recuperar seu ciclo reprodutivo. A ofensiva do capital, destina-se a

Reestruturar o padrão produtivo estruturado sobre o binômio taylorismo e fordismo, procurando, desse modo, repor os patamares de acumulação existentes no período anterior, especialmente no pós-45, utilizando-se de novos e velhos mecanismos de acumulação (Antunes, 1999: 36).

O cenário internacional, a partir do início dos anos de 1970, vivencia um quadro de crise estrutural do capital, o que leva o capital a utilizar vários mecanismos de reestruturação, com destaque para a expansão da acumulação no interior da esfera financeira (Ghesnais, 1996) e a substituição do padrão taylorista e fordista pela “acumulação flexível” (Harvey, 1992).

No âmbito dessa crise estrutural do capital, a social democracia e o socialismo real entraram em crise e expandiu-se fortemente, notadamente na década de 1990, o projeto neoliberal. Referindo-se à década de 1990, Chesnais afirma que;

o triunfo da “mercadorização”, isto é, daquilo que Marx chamava de “fetichismo da mercadoria”, é total, mais completo do que jamais foi em qualquer momento passado. O trabalho humano é, mais do que nunca, uma mercadoria, a qual ainda por cima teve seu valor venal desvalorizado pelo


* Professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN; Doutoranda do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e Pesquisadora do GEPE – UFPE. E-mail: samyarr@uol.com.br

“progresso técnico” e assistiu à capacidade de negociação de seus detentores diminuir cada vez mais diante das empresas ou dos indivíduos abastados, suscetíveis de comprar o seu uso.

As legislações em torno do emprego do trabalho assalariado, que haviam sido estabelecidas graças às grandes lutas sociais e às ameaças de revolução social, voaram pelos ares, e as ideologias neoliberais se impacientam de que ainda restem alguns cacos delas (Chesnais, 1996:42).

Essa conjuntura de mundialização do capital (Chesnais, 1996) revela as orientações ídeo-políticas do neoliberalismo que, dentre outras questões: enaltece o papel do mercado em detrimento da ação pública; enfraquece os Estados nacionais; deteriora as condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora; reconhece como sujeito tão somente o cidadão-consumidor; difunde um novo tipo de individualismo; dissemina a ideologia do neosolidarismo e da filantropia empresarial nas respostas às múltiplas expressões da questão social.

Para entender o surgimento da perspectiva neoliberal, é importante salientar que é só a partir de meados do século passado que o capitalismo vive a sua fase liberal por excelência. Hobsbawm (1982) chamou esse período áureo do liberalismo compreendido entre 1848 e 1875, de “a era do capital”. Deste período até as primeiras décadas deste século, o liberalismo torna-se, segundo Teixeira (1998), o credo do capitalismo, mediação obrigatória para o desenvolvimento da sociabilidade sob o capital.

Essa fase áurea chega ao seu fim com a grande depressão, ocorrida no final dos anos vinte e início da década de trinta. Para superar esta grande crise do capital, entra em cena o modelo social-democrático de desenvolvimento que irá viver seu apogeu no período compreendido entre a Segunda Guerra Mundial até meados da década de setenta.

Harvey (1994) indica algumas  características do capitalismo no período de 1945/1973, quais sejam: manutenção de taxas estáveis de crescimento econômico nos países capitalistas avançados de massa; manifestação de um surto de expansões internacionalistas; ameaças remotas de guerras intercapitalistas.

Para que este modelo de desenvolvimento obtivesse êxito, foi necessário efetivar compromissos entre os diversos sujeitos envolvidos naquele processo de reestruturação capitalista. O Estado Keynesiano teve que assumir novos papéis. Nesse sentido, o capital e o trabalho assumem novas funções relacionadas aos processos de produção para garantir a lucratividade. As organizações sindicais, por exemplo, foram sendo, cada vez mais “convencidas” para “trocar ganhos reais de salários pela cooperação na disciplinação dos trabalhadores, de acordo como sistema fordista de produção” (Harvey, 1994:129).

A partir da década de 1970, este modelo econômico e social entrou em colapso – expressão de uma crise orgânica do processo de acumulação capitalista. O esgotamento desta forma de organização da economia capitalista, fez emergir uma nova resposta teórico-sócio-política para enfrentar esta crise: o neoliberalismo.

Retomando a tese básica da economia liberal desde Adam Smith1,


1 Analisando as idéias do liberalismo, Teixeira (1998:209) argumenta que o pensamento de Adam Smith entende a sociedade capitalista como uma “sociedade na qual o mercado deverá ser a instância suprema e intranscendível da vida humana”.

a proposta neoliberal, defende que o mercado é a instância perfeita para resolver os problemas econômicos, argumentando que o que falta é implementá-lo em termos totais. O desempenho máximo do mercado é designado com a categoria de equilíbrio, conseguido

Quando todos os consumidores podem gastar seus rendimentos segundo suas preferências, quando as empresas vendem todos os seus produtos ou serviços, recuperando pelo menos os custos e quando todos os fatores oferecidos no mercado são usados na produção destes produtos (Oliveira, 1995:60).

A perspectiva neoliberal conclui que o mercado possui uma tendência imanente ao equilíbrio e que duas condições são essenciais para permitir uma aproximação com essa tendência: a propriedade privada e a liberdade de contrato. Quanto mais são asseguradas essas condições, mais se caminha para o equilíbrio.

Nesta concepção, portanto, o mercado é reconhecido como solução para o problema econômico de base, como mecanismo único de coordenação das atividades econômicas de uma sociedade moderna.

Em vários balanços realizados sobre as conseqüências da implantação do neoliberalismo, constata-se que há diversos indícios do fracasso econômico deste modelo na América Latina, que se expressam, sobretudo, nas seguintes questões: desemprego, aumento da pobreza e pauperização das classes médias, colapso das economias regionais, incontável déficit fiscal, avassalador aumento da dívida externa, alienação da quase totalidade do patrimônio público via privatizações (Boron, 1999).

Antunes (1999) sinaliza as conseqüências mais importantes dessas transformações ocorridas no processo de produção para o mundo do trabalho. São elas: diminuição do operariado fabril típico do fordismo; aumento acentuado das inúmeras formas de precarização do trabalho; aumento expressivo do trabalho feminino no interior da classe trabalhadora; enorme expansão dos assalariados médios, especialmente no “setor de serviços”; exclusão dos trabalhadores jovens e dos trabalhadores “velhos” do mercado de trabalho; intensificação e superexploração do trabalho; ocorrência de um processo de desemprego estrutural.

Por outro lado, a perspectiva neoliberal obteve uma grande vitória no terreno ideológico e moral, na medida em que disseminou seus desvalores2 individualistas, competitivos, egoístas, alardeando a falsa idéia de que não existe outra alternativa em termos de projeto societário. O fim da história e o pensamento único são expressões desse fetiche que convenceu amplos segmentos, inclusive no universo do pensamento de esquerda em nível mundial.

É nesse contexto da década de 1990, que se desenvolve a materialização do projeto profissional de ruptura, no âmbito do processo de renovação do Serviço Social brasileiro.

  1. 2.  O processo de renovação do Serviço Social brasileiro e a construção do projeto profissional de ruptura

Na trajetória histórica da profissão no Brasil, podem ser identificados diversos projetos profissionais que a categoria profissional tem procurado construir. Silva e Silva (1995) sinaliza a existência de três grupos de respostas que configuram os projetos profissionais que alcançaram certa hegemonia em determinados contextos históricos: o processo de institucionalização, marcado pelo esforço de profissionalização da assistência social; a construção da vertente modernizadora, que teve como marco o Movimento de Reconceituação do Serviço Social no Brasil e o desenvolvimento do projeto profissional de ruptura nas décadas de 1980/90.

Netto, ao analisar o processo de renovação do Serviço Social, resgata a trajetória de disputas e polemicas no interior da categoria profissional, só possíveis de se expressarem no período pós-ditadura.                                                                                         Segundo este autor,

(…) é inconteste que o Serviço Social no Brasil, até a primeira metade da década de sessenta, não apresentava polêmicas de relevo, mostrava uma relativa homogeneidade nas suas projeções interventivas, sugeria uma grande unidade nas suas propostas profissionais, sinalizava uma formal assepsia de participação político-partidária, carecia de uma elaboração teórica significativa e plasmava-se numa categoria profissional onde parecia imperar, sem disputas de vulto, uma consensual direção interventiva e cívica. A ruptura com este cenário tem suas bases na laicização do Serviço Social, que as condições


2 Utilizamos a distinção feita por Agnes Heller entre valor e desvalor, segundo a qual “pode-se considerar valor tudo aquilo que, em qualquer das esferas e em relação com a situação de cada momento, contribua para o enriquecimento daqueles componentes essenciais; e pode-se considerar desvalor tudo o que direta ou indiretamente rebaixe ou inverta o nível alcançado no desenvolvimento de um determinado componente” (Heller, 1989:45). Os componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a objetivação), a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade.

novas postas à formação e ao exercício profissionais pela autocracia burguesa conduziram ao ponto culminante; são constitutivas desta laicização a diferenciação da categoria profissional em todos os seus níveis e a consequente disputa pela hegemonia do processo profissional em todas as suas instâncias (projeto de formação, paradigmas de intervenção, órgãos de representação etc.) (Netto, 1991: 128).

Do ponto de vista de Netto (1991), tal laicização é um dos elementos constitutivos da renovação do Serviço Social e assim como os demais, tais como a emergência da produção teórica, só puderam ocorrer graças ao desenvolvimento das relações capitalistas durante a “modernização conservadora”. Nesse sentido, a crítica ao conservadorismo foi a primeira condição para a construção do novo projeto profissional. Embora, na segunda metade dos anos 1960, já tenhamos, através do Movimento de Reconceituação, questionamentos às tendências conservadoras na profissão, é somente na transição dos anos 70 aos 80, que a recusa e a crítica destas tendências se viabilizaram.

Netto (1991), ao analisar o processo de renovação do Serviço Social brasileiro, sob a autocracia burguesa, sinaliza três direções: a perspectiva modernizadora, a reatualização do conservadorismo e a intenção de ruptura. A perspectiva renovadora, que imprimiu significativa influencia ao processo de construção do projeto ético-político profissional, foi a intenção de ruptura. Assim,

(…) é precisamente na perspectiva da intenção de ruptura que se plasmam as conotações inerentes a um exercício profissional (e suas representações) compatível com a modernidade: o reconhecimento dos projetos societários diferenciados das classes e dos parceiros sociais, a compreensão da dinâmica entre classes/sociedade civil/Estado, a laicização do desempenho profissional, a assunção da condição mercantilizada dos serviços prestados pelo profissional etc. (Netto, 1991: 305).

Neste sentido,

A ruptura coma herança conservadora expressa-se como uma procura, uma luta por alcançar novas bases de legitimidade de ação profissional do Assistente Social, que, reconhecendo as contradições sociais  presentes nas condições do exercício profissional, busca colocar-se, objetivamente, a serviço dos interesses dos usuários, isto é, dos setores dominados da sociedade (Iamamoto, 1994: 31).

Afinal, a construção de uma nova direção social, expressa na profissão, não constitui um movimento endógeno ao âmbito profissional, mas integra uma dimensão mais ampla – a sociedade.

Em relação ao projeto profissional do Serviço Social é, sobretudo, na primeira metade da década de 1990, que se verifica, no interior da profissão, a conquista da hegemonia do novo projeto ético-político profissional, materializada, principalmente, através do crescente envolvimento de segmentos cada vez maiores da categoria nos eventos profissionais promovidos pelas entidades representativas, e no fato deste projeto profissional vincular-se a um projeto societário antagônico ao das classes dominantes. Nesse processo, é fundamental a articulação com segmentos do movimento democrático e popular nas suas lutas contra o projeto neoliberal (Netto, 1999).

Nesta perspectiva, a manutenção e o aprofundamento do projeto ético-político profissional dependem, cotidianamente, da organização da categoria e também do revigoramento do movimento democrático e popular. Afinal,

A vitalidade desse projeto encontra-se estreitamente relacionada à capacidade de adequá-lo aos novos desafios conjunturais, reconhecendo as tendências e contra-tendências dos processos sociais, de modo que torne possível a qualificação do exercício e da formação profissionais na concretização dos rumos perseguidos (Iamamoto, 1999:113/114).

  1. 3.  O Código de ética de 1993 como expressão do projeto profissional

O projeto profissional do Serviço Social tem, na literatura recente, recebido a denominação de projeto ético-político. Em relação à dimensão ética, é somente na década de1990 que esta passa a ser reconhecida explicitamente como componente fundamental do projeto profissional que, nos últimos vinte anos, tem construído hegemonia no Serviço Social. Tal reconhecimento se dá a partir, sobretudo, de dois aspectos. Em primeiro lugar, do contexto sócio-histórico, no início da década de 1990, que, em face da corrupção exacerbada, abre espaço para as reflexões em torno das possibilidades da ética na política. O ponto alto desse momento é formação de movimentos pela ética na política e, logo em seguida, a aprovação, pela primeira vez na história do país, do impeachment do então Presidente da República. Nesta perspectiva, a ética profissional “se vincula aos projetos sócio-políticos em sua luta pela hegemonia, o que aponta para a sua conexão com a práxis política e para a moralidade profissional em suas dimensões individual, cívica e profissional” (Barroco, 1996:216). O segundo aspecto refere-se aos debates, em nível nacional, sobre a aprovação em 1993, do novo código de ética profissional.

A renovação do debate ético – profissional, no âmbito da construção do projeto profissional de ruptura, se configura no contexto da década de 1980, na medida em que ocorre a explicitação da ruptura com o Serviço Social tradicional. Isto ocorre em sintonia com o amadurecimento do pensamento crítico, da reflexão marxista e pela revitalização da organização política profissional, dentre outros aspectos. O Código de 1986 constitui-se numa das grandes expressões deste processo de ruptura com o tradicionalismo profissional, presente nos Códigos anteriores (1947, 1965 e 1975) que, fundamentados nas concepções filosóficas neotomista e funcionalista, defendiam uma ética da neutralidade e valores abstratos.

Estes códigos representaram a hegemonia do tradicionalismo ético no Brasil em consonância com vários códigos internacionais. O processo de erosão de bases de legitimação do Serviço Social tradicional se coloca como um fenômeno internacional na década de 1960. Neste período, o Serviço Social se move entre diversas propostas que sinalizam perspectivas modernizadoras, reatualizadoras do conservadorismo e as rupturas. Uma questão que merece destaque é que os códigos de ética latino-americanos3 ainda não expressavam, no final da década de 1970, os pressupostos das vertentes críticas da reconceituação, ou seja, os fundamentos filosóficos do ethos tradicional não foram criticados/superados neste contexto (Barroco, 2001).

Em termos nacionais, o tradicionalismo ético também permanece até a década de 1970. No código de 1947 prevalece a perspectiva do pensamento católico tradicional, que defende, dentre comportamentos e a aceitação passiva da autoridade institucional. O código de 1965 se diferencia do anterior, pois defende uma perspectiva liberal articulada à concepção neotomista. Já o código de 1975, reafirma o conservadorismo tradicional ao fundamentar-se no personalismo e na defesa, dentre outros postulados, do bem comum e da justiça social.

A vigência do tradicionalismo ético – profissional no Brasil prevalece até a aprovação do Código de 1986; que contribui, portanto, para o desenho de uma nova moral profissional, fazendo emergir a necessidade quanto ao aprofundamento da questão ética na profissão.

O código de 1986, apesar da sua inconteste importância para a renovação profissional, apresentava limitações tanto do ponto de vista filosófico como no âmbito operacional. Barroco (2001) afirma que o problema deste código não é o compromisso com as classes trabalhadoras, tomado como princípio de um projeto profissional articulado a um projeto de sociedade, mas a forma como este é explicitado no âmbito de um código de ética profissional e a sua abordagem sobre o pensamento de Marx. A forma como esse compromisso foi exposto, expressa; uma concepção ética mecanicista, que deriva imediatamente a moral da produção econômica e dos interesses de classe; uma ausência da mediação dos valores próprios à ética; um comprometimento com uma classe, como se esta, a priori, fosse detentora dos valores positivos; uma visão idealista e desvinculada da questão da alienação.

 

 


3 Barroco aborda os códigos de ética dos seguintes países do continente americano: Costa Rica, Chile, Peru, Porto Rico, Colômbia, México, Brasil e Panamá.

Esta autora, cuja tese de doutorado4 foi um marco na reflexão ética profissional da década de 1990, adverte para existência de uma defasagem em relação à teorização ética nos marcos dos avanços da vertente de ruptura nos anos de 1980. Do seu ponto de vista:

A reflexão teórica marxista forneceu as bases para uma compreensão crítica do significado da profissão, desvelando sua dimensão político-ideológica, mas não a desvendou em seus fundamentos do conservadorismo e sua configuração na profissão, o que não se desdobrou numa reflexão ética específica. A prática política construiu, objetivamente, uma ética de ruptura, mas não ofereceu uma sustentação teórica que contribuísse para uma compreensão de seus fundamentos (Barroco, 2001: 177).

Nesta perspectiva, a organização política profissional, ao sinalizar aspectos de uma ética da ruptura na década de 1980, se antecipou à necessária e indispensável produção teórica nesta área que só viria acontecer nos anos de 1990, como resultado de diversos fatores, com destaque para o intenso debate coletivo para reformular o código em 1993; a consolidação da pós-graduação e da pesquisa no Serviço Social brasileiro e o amadurecimento da vertente marxista.

Este amadurecimento teórico-político no debate profissional, especialmente pelo percurso às fontes marxianas e pela aproximação com o pensamento gramsciano, levou à superação do mecanicismo, moralismo e voluntarismo ético-moral, simplificações encontradas anteriormente na produção teórica desta área.

O código de 1986, além de trazer tais limites filosóficos, apresenta, também, dificuldades para ser operacionalizado no cotidiano profissional, dada sua fragilidade enquanto instrumento normativo, ao apresentar artigos abstratos e ambíguos.

Nesta mesma direção, Silva (1996) ao analisar os limites deste código,

Acrescenta alguns desafios para o seu processo de reformulação, dentre os quais, destaca-se a necessidade de problematizar a relação ética-moral-política; ampliar os conceitos de classe e instituição; ampliar a concepção de ser social para além da classe, considerando suas inserções de raça, gênero; incluir aspectos com a relação à crítica das práticas de discriminação.

A revisão do código de 1986 se processou na perspectiva de manter suas conquistas e superar as suas insuficiências. Assim,


4 Intitulada “Ontologia social e reflexão ética” foi defendida em 1996 no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUC-SP. Posteriormente em 2001 publicou o livro “Serviço Social e Ética: fundamentos ontológicos”.

 

(…) teve como pressuposto a consolidação do projeto profissional nele evidenciado, numa perspectiva superadora, ou seja, de garantir suas conquistas e ao mesmo tempo superar suas debilidades (…). Nesse sentido, o recurso à ontologia social permitiu decodificar eticamente o compromisso com as classes trabalhadoras apontando para sua especificidade no espaço de um Código de Ética: o compromisso com valores referidos à conquista da liberdade (Barroco, 1996:284)

No processo de produção do novo Código de Ética, duas preocupações foram norteadoras, a saber:

Torná-lo um instrumento efetivo no processo de amadurecimento político da categoria bem como um aliado na mobilização e qualificação dos assistentes sociais diante dos enormes desafios e demandas da sociedade brasileira. Urge transformá-lo num mecanismo concreto de defesa da qualidade dos serviços profissionais que desempenhamos; – e, complementarmente, havia que constituí-lo como um mecanismo eficaz de defesa no nosso exercício profissional, por meio da garantia da legalidade de seus preceitos, fornecendo respaldo jurídico à profissão (Paiva e Sales, 1996:180).

  1. 4.  Considerações finais

Enquanto expressão do debate ético – profissional, o código de ética de 1993 mantém uma nítida relação com o projeto profissional e com a organização da categoria. Um determinante que tem sido fundamental para a manutenção da hegemonia desse projeto, é o nível de organização política da categoria profissional. Esta organização se constitui como força impulsionadora na materialização das projeções coletivas, construídas ao longo das duas últimas décadas.

A organização política teve uma importância significativa no processo de elaboração do atual código de ética profissional, tendo as entidades representativas da categoria do papel preponderante na coordenação/dinamização do debate coletivo, notadamente em fóruns realizados no início da década de 1990, com destaques para: Seminário Nacional de Ética (1991), 7º CBAS (1992), XII ENESS (1992) e XX Encontro Nacional CFESS/CRESS (1992). Nota-se, mais uma vez, a decisiva participação dos segmentos que compõem a categoria profissional nas discussões sobre os rumos da profissão.

Em relação ao processo de discussão para a aprovação do Código de Ética de 1993, ressalte-se a publicação, pelo CFESS, do livro Serviço Social e Ética: convite a uma nova práxis, que trouxe reflexões relevantes que contribuíram para o amadurecimento do debate ético profissional. Este livro constitui-se um marco na publicação sobre a temática da ética no Serviço Social, demonstrando, dentre outros fatores, a inclusão de questões que até então não eram levadas em consideração no debate profissional.

Dentre os avanços obtidos nesses 10 anos de materialização do Código de ética dos (as) assistentes sociais, a significativa intervenção do CFESS em diversas frentes, tais como: a atuação da Comissão de Ética e Direitos Humanos, a realização do Projeto Ética em movimento5, a inserção no âmbito das políticas sociais. Além dessas atividades, coordenadas pelo CFESS, ressalte-se: o debate ético no processo de construção das diretrizes Curriculares aprovadas em 1996; o aumento de pesquisas e publicações sobre a temática da ética e dos direitos humanos6 e o surgimento e a articulação de grupos de pesquisa sobre ética em Serviço Social, tais como o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Ética e Direitos Humanos – NEPEDH da PUC-SP e o grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética- GEPE da UFPE7.

Apesar desses inegáveis avanços, o Serviço Social brasileiro se depara com inúmeros desafios no âmbito da intervenção ética, dentre os quais destaco:

  • problematizar e debater os conflitos morais decorrentes de diferenças entre os diversos projetos individuais x projetos profissionais x projetos societários presentes na profissão;
  • conhecer e utilizar sistematicamente o código de ética no cotidiano profissional;
  • contribuir para aprofundar/fortalecer o debate da ética na sociedade brasileira, imprimindo visibilidade à reflexão ética nas diversas dimensões da vida social;
  • multiplicar o conhecimento e as possibilidades de utilização sistemática do código de ética no Âmbito da categoria profissional;

 

 


5 O projeto Ética em movimento foi criado pela gestão do CFESS 1999/2002 e aprovado no XXVIII Encontro nacional CFESS/CRESS. Este projeto foi gestado com o objetivo de contribuir para o avanço do debate ético, tendo como eixos de ação os seguintes: capacitação, denúncias, visibilidade social da ética profissional, fortalecimento da interlocução com organismos internacionais e nacionais de defesa dos direitos humanos e sociais. No eixo da capacitação estão sendo realizados, desde 2000, cursos de capacitação ética para conselheiros e assistentes sociais, em todos os estados brasileiros.                                  6 Nos anos seguintes outras publicações sobre esta temática somaram-se a esta, tais como: o livro “Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos”; a revista “Presença Ética”, editada anualmente desde 2000 pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética, GEPE-UFPE; além do nº5 da revista Temporalis – periódico semestral da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social- ABEPSS, cujo tema foi “Ética, política e direitos humanos” e dos três livros publicados pelo CFESS no projeto Ética em movimento, quais sejam: “Ética e sociedade”, “Ética e práxis profissional” e “Ética e instrumentos processuais”.                                                                                                                                                             7 Estes dois grupos estão realizando conjuntamente o projeto integrado de pesquisa aprovado pelo CNPQ em 2003, cujo título é “Ética e Direitos Humanos: unidade e diversidade do Fórum Social Mundial”.

  • disseminar a importância do posicionamento ético do(a) profissional frente aos conflitos cotidianos postos no ambiente de trabalho, favorecendo a compreensão das contradições que se apresentam nas estratégias e na construção de alianças com outros sujeitos profissionais e sociais8;
  • promover uma capacitação continuada sobre a reflexão ética nos diferentes locais de trabalho;
  • ampliar a participação e envolvimento dos(as) assistentes sociais em espaços coletivos de discussão da dimensão ética profissional;
  • promover uma intensa capacitação docente para a materialização do debate ético no cotidiano das Unidades de ensino;
  • aprofundar, nos ambientes profissionais, estudos e reflexões sobre as diferentes formas de opressão relacionadas às dimensões: gênero, raça, orientação sexual, dentre outras;
  • realizar pesquisas com o objetivo de aprofundar a análise teórica sobre os princípios éticos-políticos sinalizados no código, qualificando melhor, os termos do debate, o horizonte e os limites das lutas por democracia, cidadania, justiça social e sua articulação contraditória com um projeto de emancipação humana;
  • intensificar as articulações com outros segmentos coletivos na perspectiva da luta anticapitalista.

Tais desafios requisitam uma profunda atuação teórico-política, no universo das unidades de ensino, dos locais de trabalho, das entidades organizativas da categoria profissional. Esta atuação será bem sucedida quanto mais estiver conectada às lutas e mobilizações desenvolvidas pela classe trabalhadora, na perspectiva da crítica radical à sociabilidade do capital.

 

 

 

 

 

 


8 Sousa(2002) reflete esse e outros desafios no seu artigo “A ética e o trabalho cotidiano do assistente social”, publicado na revista Presença Ética nº2.

 

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Reflexões sobre o Projeto Ético-Político Profissional do Serviço Social *


 

Alexandra Monteiro Mustafá**

A ética, enquanto disciplina que reflete filosoficamente sobre o agir do homem no mundo, pode ser entendida como ética teleológica, ou como ética deontológica. No primeiro caso, importa considerar os fins que se quer alcançar – o telos da ação. No segundo caso, busca-se seguir normas que regulem o agir humano.

A primeira tendência citada tem suas origens na filosofia aristotélica, onde os fins eram vistos como o bem ultimo a ser alcançado pelo indivíduo e pela coletividade – o fim que se basta a si mesmo – a felicidade. Vale considerar que, para Aristóteles, o telos da felicidade destinava-se ao homem virtuoso, exigia a contemplação do bem, assim como a posse de bens materiais que possibilitassem o atendimento das necessidades vitais para uma vida digna.

A segunda tendência encontra seu marco fundamental no início da modernidade, com Hobbes, que preconizou a necessidade da passagem de um estado de natureza para um estado social através de um pacto, ou o contrato, entre súditos e soberano, cabendo a este último estabelecer as leis a serem obedecidas pelos primeiros, tendo em vista a criação de um Estado autoritário, capaz de assegurar a paz e a sobrevivência dos homens, visando, em última instância, a preservação da espécie.

Historicamente, a discussão que perpassa entre os dois tipos de ética refere-se à temática do bem, entendido como consideração dos princípios últimos que fundamentam a ação, e a temática da justiça, entendida como conjunto de regras que podem oportunizar uma melhor vida entre os homens.

O debate continua acirrado até os nossos dias, existindo aqueles que defendem uma discussão pautada nos princípios últimos que, para alguns significa o resgate da metafísica e, para outros, representa a retomada da ontologia. Para os defensores da ética deontológica, o dilema se coloca entre a opção por um consenso de intersecção que elege, dentre as principais teorias do bem já existentes, aquela que melhor se aproxima da “melhor vida para o homem” ou, a negação dos princípios últimos (por já estarem previamente definidos) e o estabelecimento de novas normas que possam assegurar a justiça e a democracia.

 


* Palestra apresentada no Seminário Internacional sobre Ética e Direitos Humanos, realizado na UFRJ, no Rio de Janeiro, em novembro de 2003.                                                                                                                                ** Professora do Departamento de Serviço Social da UFPE. Doutora em filosofia. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética (GEPE) – UFPE. E-mail – alexandramustafa@aol.com

 

A ética teleológica nos parece aquela que melhor representa a idéia de que o homem é o sujeito da história (considerando as condições objetivas que determinam esta história), ao mesmo tempo em que suscita a discussão sobre os princípios e os fins últimos da existência humana, e considerando também os determinantes que fundamentam o agir humano e o agir das sociedades contemporâneas.

O próprio Marx, na sua ontologia social, definiu o home como ser teológico: o ser que pensa o seu trabalho, projeta a sua atividade laborativa antes de confeccioná-la. A sua célebre frase de que “o pior arquiteto é melhor do que a melhor abelha” abre espaço para uma discussão fecunda sobre a dimensão teológica do homem. Com efeito, é através do trabalho que o homem transforma a natureza e constrói suas relações sociais e é nesta sociabilidade que ele pode formular projetos sociais coletivos e individuais. É através do trabalho que o homem se objetiva no mundo e pode desenvolver suas potencialidades. O trabalho é a dimensão concreta da capacidade de realização humana, pois o homem é um ser de possibilidades ainda não dadas.

Entretanto, vivemos numa sociedade que nega a dimensão teleológica do homem. Se tomarmos como ponto de reflexão o mundo do trabalho, vamos encontrar um intenso processo de alienação em que a liberdade de realizar é podada pelos ditames do modo de produção que sufoca a criatividade humana e o completa a obedecer a regras, a normas de comportamento, a determinações da máquina – o homem é robotizado para se enquadrar na nova ordem do capital.

Daí a necessidade ética de por, na ordem do dia, o debate sobre a superação do capital. Debate este que objetiva a “humanização” do homem, especialmente na sua atividade fundante que é o trabalho. A reflexão ética aponta para um novo tipo de sociedade em que a atividade do trabalho seja empreendida como forma de realização humana, onde o trabalho não seja explorado e alienado e o prazer seja visto não na lógica utilitarista – como condição da natureza humana, contrário à dor, e como parâmetro do atendimento das necessidades da maioria – mas como telos subjetivo e objetivo da humanidade.

Vale ressaltar, entretanto, que, devido ao avanço das civilizações, não é possível desvincular a ética teleológica daquela deontológica. Com efeito, o direito subjetivo precisa ser objetivado através de normas, sem perder de vista que estas normas são históricas e mutáveis. Faz-se necessário refletir se os princípios da “melhor vida para os homens” está sendo levado em consideração e quais estão sendo desrespeitados para que se altere o conjunto de normas que regula o comportamento social. Daí a mutabilidade inevitável das normas. Daí a necessidade de elaboração de novos direitos tais quais os direitos chamados de terceira geração como direitos ecológicos e das minorias (mulheres, homossexuais, negros, indígenas, etc.) Não que estes direitos não fossem necessários de serem regulamentados anteriormente, mas as condições históricas não permitiam a sua legitimação.

Dada a indissolubilidade entre a ética teleológica e a deontológica, os princípios devem necessariamente ser objetivados sob a forma de códigos, normas, leis e práticas para se fazerem cumprir pelos membros da sociedade. A ênfase na ética teleológica, em detrimento da deontológica, nos faria cair no abstracionismo, na elucidação de valores universais, sem o devido acompanhamento das condições objetivas que fizessem vales tais princípios.

É neste sentido que se coloca a proposta do projeto ético-político do serviço social e o código de ética de 1993. Com efeito, o projeto-político aponta para uma nova ordem social – princípio este preconizado também no código de ética de 1993 – e, com isto, indica a necessidade de se rever os princípios em que se fundamenta a atual ordem social.

Sem sombra de dúvidas, o capitalismo, desde suas origens, se pauta no princípio da exploração do homem pelo homem, preconizando assim um processo avassalador de desumanização. A vitória do capital representa o avanço da lógica instrumental, pautada no princípio da denominação, da transformação do homem em mercadoria, objeto descartável que pode ser jogado fora quando não se presta aos interesses do sistema.

Diante dessa realidade concreta, cabe à ética fazer a crítica do modo de produção capitalista e suscitar a discussão sobre a nova ordem societária que tenha como telos a felicidade, a humanização e a emancipação do ser social. Isto não é uma abstração, nem tampouco uma tarefa fácil de ser implementada: a ética de vê buscar subsídios nas demais ciências para realizar sua crítica e para fazer valer seus princípios. Daí porque nos currículos de serviço social, a ética, além de ocupar seu espaço enquanto disciplina, constitui-se também como temática transversal que perpassa todas as demais disciplinas, sendo o fio condutor da reflexão crítica e propositiva para o exercício profissional e para a produção de conhecimento sobre a realidade.

O projeto ético-político do serviço social não se propõe, portanto, a ser um projeto redentor. A profissão de serviço social, ou melhor, os profissionais de serviço social têm uma direção social que lhes fornece a consciência do caráter contraditório que caracteriza a profissão, na sua interconexão entre o capital e o trabalho, bem como da impossibilidade de alcançar o telos de uma nova ordem social sem a conexão com um projeto societário que aglutine os interesses da classe trabalhadora.

Este projeto societário é, na verdade, o projeto de uma nova ordem social – daí a sua dimensão política. Não se pode alcançar tal projeto sem passar pela articulação com os demais setores da sociedade, o que explica que o projeto profissional é também político. Neste nível da discussão, vale ressaltar que, apesar de historicamente, a política ter-se caracterizado como aspecto de dominação, isto não faz parte de sua essência. A política é a forma de organização que assumem as sociedades na sua dinâmica histórica; o que implica em dois aspectos bastante significativos: primeiro – que a superação da atual ordem societária requer uma articulação e uma profunda leitura da conjuntura política, e segundo – ninguém pode prever que a nova ordem social não necessite de uma organização política.

Sendo assim, o adjetivo “político” não pode ser desprezado, nem menosprezado na configuração do projeto ético profissional. Trata-se de ver as coisas como elas são, Istoé, na sua dimensão rela e não utópica… Faz-se necessário, entretanto, algumas considerações sobre o que acabamos de expor. Em primeiro lugar, fazer referencia à política não significa dar prioridade à política em detrimento da dimensão antes de tudo, a consideração, a análise aprofundada dos componentes econômicos do modo de produção capitalista – enquanto as condições objetivas não forem dadas, não se dará a transformação. Mas, cabe lembrar, que a objetividade não se dá senão em sintonia com a subjetividade. Neste sentido, desejar e almejar uma nova forma de organização social é tão necessário quanto as condições objetivas. Este “desejo” requer e implica a socialização de valores como a liberdade, a igualdade e a justiça – bases fundamentais para uma nova ordem societária. O que torna possível falar em emancipação humana, em nova ordem societária. É a simbiose entre objetividade – subjetividade; ética – política – economia.

Um outro elemento a considerar é a articulação com os demais setores da sociedade. Uma única profissão não pode se arvorar a tarefa de transformar a sociedade. Daí a necessidade de o serviço social estar em sintonia com os anseios populares, com os movimentos sociais, com as representações da sociedade civil – e tudo isto é política. Vale lembrar que todo o avanço implementado desde os anos 80, no que se refere ao código de ética, proposta curricular e desempenho profissional, deve-se à intrínseca articulação com os segmentos mais progressistas da sociedade e, em alguns casos, com o pioneirismo do serviço social na defesa incansável dos interesses da classe trabalhadora.

O caráter ético-político do projeto profissional do serviço social consolida uma hegemonia no interior da profissão e é reflexo de uma adesão de classe, no sentido que busca estabelecer alianças com setores progressistas que se empenham na luta pela amplificação dos direitos sociais, tendo em vista um projeto mais amplo de sociedade. Não se pode negar, portanto, que o caráter revolucionário não esteja imbricado nesta postura de mediação política. Na realidade, lidar com a questão social, dentro dos moldes do modo de produção capitalista, significa estabelecer um processo de conquista que se efetua e se desdobra em duas faces: a imediaticidade da ação e sua projeção futura. O grande desafio é não perder de vista esta dupla dimensão unitária.

E é exatamente dentro dessa tensão que foi elaborado o código de ética profissional de 1993. Com efeito, após as conquistas democráticas da Constituição de 1988, tornou-se urgente assegurar e lutar para ampliar os direitos sociais como forma de implementar um processo de avanço no âmbito da consolidação das políticas sociais. Se através destas políticas não se alcança um modelo de sociedade emancipada, não se pode deixar de entrever aí um processo de mediação, no marco das condições atuais do exercício profissional, desde que se tenha clareza dos limites e do alcance do projeto profissional.

Como foi dito anteriormente, o código se insere na dimensão deontológica da ética e o ético-político-profissional, constitui sua dimensão teleológica. Por isso mesmo, vale ressaltar que o próprio código de 1993 contém em si, uma dimensão teleológica, quando, antes de apresentar as normas que devem regular o exercício profissional, reúne alguns princípios fundamentais que norteiam tais normas e apontam para o telos de uma sociedade emancipada – tal como previsto no projeto ético-político da profissão. Os princípios indicam um claro compromisso político com a classe trabalhadora, apontando na direção da ruptura com a ordem burguesa e se revelam como fundamento filosófico do agir profissional, denotando o avanço no campo teórico e de reprodução de conhecimento alcançado pela profissão.

Se o código de 1986 rompia com o tradicionalismo, com o personalismo cristão e com princípios abstratos e neutros – característicos do neotomismo -; o código de 1993 preconiza uma apropriação teórica da produção marxiana, pautando-se na ontologia social de Marx e no seu projeto societário, o que se constitui como embasamento filosófico à leitura de realidade e atuação profissional.

Vale ressaltar, aqui, que a discussão sobre ética, tão evidenciado hoje no serviço social, acompanha uma tendência mundial ao resgate do debate sobre a ética face ao aumento da miséria, das injustiças sociais, da corrupção política, bem como do agravamento da distancia entre países pobres e países ricos. Ao mesmo tempo, o avanço da ciência, especialmente na área da biogenética, vem provocando polemicas as mais diversas sobre o futuro da humanidade e as condições de vida para as próximas gerações. A inserção da pauta dos direitos humanos, colocada na ordem do dia, tem suscitado a necessidade de eventos tais como os fóruns sociais mundiais, discussão no âmbito acadêmico, formação de comissões de ética, assim como o surgimento de grupos de estudos e pesquisas no interior das universidades, tomando como eixo central a reflexão sobre a ética. Diante de tal contexto, conclui-se que o direito à vida está ameaçado, bem como a sobrevivência da própria espécie humana e do próprio planeta. Os interesses econômicos dos países ricos estão acima de qualquer acordo pela paz mundial (observe-se o exemplo da guerra dos EUA contra o Iraque), bem como de acordos ambientalistas em defesa da preservação da natureza.

Isto demonstra que a discussão sobre a ética, no interior da profissão de serviço social, está em sintonia com um movimento internacional em defesa da vida e da “melhor vida para o ser humano”. No entanto, vale ressaltar que este movimento se coloca em oposição à lógica mundial da globalização do capital, visto que esta ameaça vem da própria contradição entre capital e vida. Neste sentido, a ética é discutida por setores progressistas, mas é, também, tema de setores liberais que, numa tentativa de justificação da ordem burguesa, vulgarizam e banalizam o próprio significado da ética.

Podemos citar como exemplo a teoria dos jogos, defendida por Hayeck. Segundo este pensador, a sociedade funciona como um jogo, onde há ganhadores e perdedores; o jogo tem suas regras e todos devem aceitá-las, não existindo, portanto, a possibilidade de os perdedores se rebelarem contra os vencedores. Do nosso ponto de vista, esta é uma ética que preconiza desvalores, mas, para os liberais, trata-se de legitimar a lógica do capital.

Podemos afirmar, seguramente, que não existe um consenso no debate ético mundial: constata-se uma tendência genelarizada de resgatar o pensamento de Kant, o personalismo comunitário de Jacques Maritain (neotomismo), o pensamento de Aristóteles (neoaristotelismo). Com efeito, autores como John Rawls e Jürgen Habermas, por exemplo, apesar das diferenças entre as suas abordagens, discutem a ética numa perspectiva neokantiana, buscando definir valores universais e normas procedimentais que regulamentem os princípios da justiça e dos direitos humanos. Rawls busca teorizar sobre um novo contrato social baseado na “autonomia” (defesa de interesses universais), identificando o estado da natureza com uma situação originária, em que todos estão inconscientes quanto à sua condição social através daquilo que ele chamou de: véu da ignorância. E nesta condição, seriam capazes de definir princípios de justiça para se alcançar um nível de equidade que, respeitando o princípio da diferença, atribui vantagens para todos, contudo, sem prejuízo para os mais avantajados.

A teoria habermasiana, por sua vez, apresenta a ética do discurso, ou da comunicação, buscando estabelecer normas que regulamentem a forma de argumentação numa ordem democrática. Trata-se da busca do consenso, sem levar em consideração o conflito de interesses inerente ao conflito de classes, próprio do modo de produção capitalista.

O comunitarismo, defendido por MacIntyre, resgata a vida virtuosa da polis e preconiza uma possibilidade de vida ética entre os que compõem uma mesma comunidade. Com efeito, seu livro “Além da virtude” é uma tentativa de salvar a cultura a partir do resgate da vida virtuosa de pequenos grupos.

Rorty, por sua vez, enaltece o discurso da solidariedade, mas o transforma numa forma mesquinha de ser solidário: para ele, a solidariedade só é possível entre pessoas pertinentes ao mesmo grupo cultural, que comunguem da mesma língua e da mesma nacionalidade. Enquanto defensor do pós-modernismo, Rorty defende o radical nacionalismo e os interesses das grandes potências, amortecendo a luta por direitos humanos universais e por uma solidariedade entre os povos, em suma: Rorty não tem perspectiva do ser humano genérico.

Esta rápida abordagem sobre o debate ético mundial nos possibilita constatar que não raras vezes, nele encontram-se verdadeiras deturpações do significado da ética. No debate ético mundial o que muitas vezes predomina são normas que possam dar sustentação ao capital, em detrimento de princípios que questionem a lógica da exploração. Por motivos de tal gênero, é que consideramos que tais abordagens não merecem ser chamadas de “teorias éticas”. É mais adequado chamá-las de teorias “antiéticas” que se camuflam em valores como solidariedade, justiça, equidade tendo como objetivo mais profícuo legitimar a ordem burguesa.

Diante deste quadro internacional, vemos que o Brasil não foge a estas influências. Aqui também, o pós-modernismo invade, por meio de pura retórica, todas as áreas do conhecimento e da cultura nacional e a defesa de princípios verdadeiramente éticos torna-se cada vez mais difícil. No entanto, alguns setores resistem a esta influência neoliberal e conseguem formular um pensamento livre do pós-modernismo e de suas tendências nefastas. Entre estes segmentos, encontra-se o serviço social. Neste sentido, tanto o projeto ético-político do serviço social, quanto o código de ética de 1993, ao serem coerentes com a perspectiva marxiana, assumem uma postura revolucionária face ao caos instalado pelo capitalismo. Ele dá uma direção social à profissão, pautada nos ideais de emancipação humana, constituindo-se num protagonismo que desafia a realidade concreta e pretende transformá-la, numa perspectiva realista.

Tal perspectiva encontra eco na leitura de realidade que serve como fundamento para a identificação dos princípios que dão sustentabilidade ao novo código de ética. Numa conjuntura adversa, marcada pelo neoliberalismo, busca-se redefinir o conceito de liberdade, entendida não como valor liberal, burguês, mas como ponto de partida e condição sine qua non para a relaização do homem como sujeito histórico e como ser capaz de auto-reprodução. A liberdade significa não apenas a capacidade de decidir e fazer escolhas individuais e coletivas, mas também a condição concreta de exercer o trabalho sem amarras da exploração e da alienação – o que só será possível em outro modo de organização social e não sob a égide do capital. Para isto, não basta ao serviço social restringir-se ao campo das políticas sociais que minimizam o desemprego e a miséria, mas buscar compreender criticamente as condições de trabalho que reproduzem as relações sociais que caracterizam a sociedade contemporânea. De um ponto de vista ético, a definição de mínimos sociais – herança do utilitarismo – não contempla o princípio da justiça social, nem tampouco da democracia que pressupõe uma “socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida” (Código de Ética de 1993).

No entanto, é fundamental reconhecer a ambiguidade no fato do lócus de atuação do profissional de serviço social ser a política social, mais especificamente, a política de assistência. Como lidar, então, com esta contradição? O código de 1993 prevê dois princípios que parecem responder a esta interrogação: “posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática” e “compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional”. Na atualidade, os programas e políticas sócias são cada vez mais focalizados e seletivos, mesmo aqueles que tinham a universalização como proposta inicial.

O assistente social, assim como qualquer outro profissional ou trabalhador, seja individualmente ou como categoria, não tem força política para assegurar a universalidade. Apenas à classe social cabe este papel. Mas o assistente social pode posicionar-se a favor desta universalização e somar com outros segmentos sociais, numa perspectiva de classe, sendo assim, protagonista de uma ideologia enfocada em princípios éticos.

Na realidade, tais princípios parecem inserir-se na ótica da promoção de um Estado de Bem Estar Social, mais do que de uma sociedade emancipada. No entanto, entre o real e o possível, existe muito caminho a ser percorrido e é da competência ética fazer análise crítica do existente e oferecer subsídios que apontem para o devir. Optar por uma nova ordem social, exige uma atuação crítica e competente que favoreça o desmonte da realidade objetiva adversa e sinalize os princípios para uma nova ordem social. Trata-se de conquistar espaço dentro dos limites impostos pela lógica neoliberal e pela dinâmica do capital, enquanto esta for hegemônica. Tais elementos nos induzem a identificar no código de ética de 1993 e no projeto ético político do serviço social sinais de uma proposta revolucionária, não evidenciada em outras profissões.

Seus princípios apontam para um compromisso com o aprimoramento intelectual, para possibilitar a competência profissional. E esta competência se revela, no cotidiano, na implementação de programas e políticas sociais. Compete ao profissional desvendar a lógica, os fundamentos e a direção de tais políticas e programas, produzir um acúmulo de conhecimentos sobre o seu significado e repassar, para o usuário, o serviço com boa qualidade e a concepção de direito nele contida. Na realidade, esta consciência do direito é ainda muito frágil na sociedade brasileira; nela vigora, ainda, o clientelismo e suas implicações mais desumanas de transformar o homem-sujeito no homem-mendigo, receptor de favores e das sobras dos mais abastados. É preciso, portanto, suscitar na sociedade um nível de indignação pelo agravamento da questão social, pelo empobrecimento da classe trabalhadora e pelo grau de miséria em que se encontram os considerados pela estatística como os que vivem abaixo do nível de pobreza. A indignação é o sentimento ético que reclama a justiça e faz emergir da indiferença e da naturalização da pobreza, a perspectiva da transformação, da crítica radical contra o antiético.

Vale ressaltar que o conhecimento produz indignação, na medida em que desvenda a realidade e revela seu lado mais perverso: a exploração e o individualismo – desencadeadores de um processo de má distribuição de renda que se revela como questão social, expressa na fome, na morte prematura, na miséria, na violência e na desumanização. Estes desvalores fazem parte da lógica do capital que se alimenta continuamente da exploração do homem pelo homem; e porque não dizer, transformando seres iguais em seres desiguais, já que dentro desta lógica, o explorado assume a condição de animal. Um animal adestrado, obediente, servo, mas útil e fundamental ao processo de acumulação. Ou ainda, um objeto descartável, porque não produz, não consome, não existe para o capital – o miserável, abandonado nas ruas, vítima de toda sorte de violência: é este é o usuário do serviço social. Como contribuir para reverter este quadro? Como se inserir num processo de transformação?

Hoje, o assistente social adquiriu consciência e conhecimento dos limites e possibilidades da profissão. O arcabouço teórico-metodológico e ético-político, acumulação nos últimos anos lhe dá segurança para compreender a realidade e intervir profissionalmente. Além disso, existe o sentimento de indignação que o impele a buscar os “porquês” e os “como”. Em outras palavras, busca-se o aprimoramento intelectual – ético – político que forneça os elementos necessários ao desvendamento da continuidade e um competente exercício profissional.

Com isto, podemos afirmar que a ética é um movente, um elemento desencadeador de um processo que se inicia com a indignação e se consolida na postura crítica e investigativa. Como se vê, a ética não é uma abstração, não é apenas um conjunto de regras; é, antes de tudo, um componente de luta social.

No que se refere ao projeto ético-político do serviço social, vale ressaltar ainda, que ele se gesta nas décadas de oitenta e noventa que foram décadas caracterizadas pelo processo de democratização do país e, por isto, o serviço social tende a ser protagonista de um processo que busca assegurar esta democracia como valor supremo da sociedade e das relações sociais. Apontando para o telos de uma sociedade emancipada, traz no seu bojo a necessidade de assegurar os direitos adquiridos e conquistados pela classe trabalhadora. Por combater as teorias neoliberais e pós-modernas, o projeto ético político do serviço social se embate contra o clientelismo, contra o assistencialismo, contra o conservadorismo e contra o tradicionalismo. E nada disso seria possível sem o esforço concreto das instâncias que representam a categoria profissional, como o CFESS, os CRESS’s, a ABEPSS, a ENESSO; nem também sem os segmentos progressistas no interior das universidades, no processo de formação profissional e produção de conhecimento, seja na graduação, seja nas pós-graduações. Trata-se de um protagonismo que se inicia com a “intenção de ruptura” e tem continuidade e rebatimento nas instâncias de representação da categoria que estiverem e estão presentes, de forma atuante, na defesa dos interesses dos trabalhadores, lutando lado a lado por mais conquistas sociais, pelo fim da exploração e da alienação, enfim, por uma sociedade emancipada.

Este é o verdadeiro compromisso ético da profissão e é, através dele, que pretendemos contribuir com a dimensão ético/política para um processo social que elimine a exploração do homem pelo homem e resgate os princípios da igualdade, da liberdade e da justiça social.

 

 

 

 

 

 

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A crítica ética do sistema vigente: uma abordagem a partir da racionalidade instrumental e do formalismo moral de tipo utilitário


 

Cláudia Maria Costa Gomes*

Introdução

A exclusão que se aprofunda radicalmente com o processo de globalização do capital no final do século XX e inícios do séc. XXI é um problema que afeta a realidade concreta de milhares de seres humanos, condição absoluta de apreciação da ética e das alternativas já presentes de libertação humana nesta experiência do processo de sociabilidade. O marco ou contexto desta ética é o processo de globalização do capitalismo, como processo de exclusão que afeta grandes minorias da humanidade e que se apresenta, sobretudo, como uma estratégia de enfretamento dos problemas que, paradoxalmente, solapa as bases do seu próprio sistema.

Este cenário se configura, na realidade, como uma profunda crise deste projeto societário, que se expressa em uma conjuntura histórica particular, capaz de revelar o movimento orgânico que estrutura a vida social.

Como efeito desta crise, verificamos hoje um amplo movimento de desagregação desse moderno processo civilizatório, onde a solução de conflitos na vida pública e na democracia ingressam numa frágil relação com o capitalismo, que se agrava com a desvairada corrida neoliberal, radicalizando ainda mais a ocorrência, a troca de mercadorias, a luta, a aquisição de propriedades e de poder, fazendo do cultivo à individualidade o valor supremo, como “fruto de um novo ethos social”, nos termos de Oliveira (1995:43)

Ora, na forma em que se encontra tal processo, os apelos éticos e morais dessa nova sociabilidade fracassam em sua responsabilidade porque destroem as pessoas tidas no sistema como “sujeitos livres”. O homem não é, pois, verdadeiro sujeito, mas como contribuiu Marx1 na sua crítica à sociedade mercantil-capitalista, é identificado, pura e simplesmente como coisa, mercadoria, alienado do próprio gênero humano; ou seja, um indivíduo isolado e egoísta, para o qual a sociabilidade ética é apenas um apêndice. Por essa razão;


 * Doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética – GEPE/UFPE. E-mail:claumarc@yahoo.com.br                                                                                                                          1 Foi exatamente a partir desta concepção do homem como indivíduo isolado que se articulou a ética da sociedade moderna, contra a qual Marx vai construir toda a sua crítica. Já nos Manuscritos econômico-filosóficos, considera a eticidade capitalista como a perda do homem. O capitalismo aliena o homem do homem, e isso tem consequências na relação do homem com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo.

A eticidade capitalista significa a inversão do homem em não-homem, já que os predicados atribuíveis ao hoemem (liberdade, propriedade) não são seus, mas sim do capital, o verdadeiro sujeito ontológico dessa configuração ética. (Oliveira, 1993:275).

Neste argumento, parece-nos implícita a identificação com aquilo que, no pensamento da Escola Crítica, corresponde ao que Adorno denomina de mundo administrado. Um mundo no qual, “a consciência das pessoas foi manipulada de tal forma que elas perderam a capacidade de pensar criticamente” (Adorno, 1995:16).

Consequentemente, a constituição de tal processo incide numa série de implicações no campo da ética, tornando na prática completamente inviável o exercício da máxima moralia no sentido Aristotélico. Para este filósofo, “a ética pressupõe um agir do homem em consonância com a natureza. Nesse agir, ele encontra o seu fim, o seu bem, a sua felicidade” (Palanca, 2001:49).

O atrofiamento do pensamento crítico, promovido nas modernas sociedades do mundo globalizado, resulta na predominância da instrumentalidade da razão – apoiada no progresso tecnológico e no hedonismo, característico do utilitarismo – inviabilizando a sua dimensão emancipatória.

Neste sentido, a superação da moralidade capitalista (fundamentado em um sistema formal de normas, juízos de valor e princípios) para uma eticidade alternativa significativa, pensando com Marx, a passagem para a constituição da sociabilidade onde “o homem é posto como sujeito verdadeiro2”.

Isto implica, portanto, um modelo alternativo de sociabilidade onde a liberdade humana, significa a produção de homens livremente socializados, regidos por um modo de produção comunitária, autotransparente, expressando o que denomina ‘reino da liberdade’. E se isto não for ética, a expressão teria perdido seu sentido.

 

A Razão Instrumental como expressão do Formalismo Moral

O conceito de razão se apresenta na história do pensamento ocidental sob diversos aspectos. A partir da filosofia grega, várias expressões foram usadas para determinar o sentido correto do termo como noção, conceito, idéia, pensamento, palavra, visão (inteligível), sentido e significação. No entanto, é na modernidade que o conceito ganha autonomia, rompendo com a querela da filosofia medieval entre fé e razão. Kant foi um dos pensadores modernos que enfrentou esta situação, convertendo a metafísica em crítica da razão. Para ele,


 2 Cf. K. Marx. Na crítica ao Programa de Gotha ver a problemática do “reino da necessidade” e do “reino da liberdade”, 1984, p. 88.

A razão é toda faculdade de conhecer superior, caso em que o racional se distingue do empírico. É a faculdade que proporciona os princípios do conhecimento a priori. A razão se distingue do entendimento; este é a faculdade das regras, isto é, a atividade mediante a qual se ordenam os dados da sensibilidade pelas categorias, enquanto aquela é a faculdade dos princípios, a atividade que unifica os conhecimentos do entendimento nas idéias. (FM., 1974: 2457)

Muitos são os significados da razão filosófica kantiana, mas o principal tem como endereço ser a faculdade que regula princípios orientadores que liberem a humanidade; eis a essência do ideal Iluminista. Segundo Horkheimer (1991:20), “o Iluminismo desde sempre seguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores”. A razão que calcula, que faz ciência, nos primórdios da modernidade, tinha como finalidade precípua libertar e emancipar o homem da ignorância, da irracionalidade e do despotismo da Idade Média. Kant vai não apenas ser influenciado por essa postura, como também legitimá-la, tematizando a razão como primado/princípio da liberdade e da autonomia do homem. Ao defender a Revolução Francesa, ele dirá: “vivemos uma época de esclarecimento, de emancipação, de libertação. A humanidade começa a sair de sua menoridade”. (ibid, p. 23).

No entanto, não obstante, a razão iluminista conter em sua gênese uma concepção emancipatória, foi sendo suprimida pela dimensão instrumental, imposta pelo domínio da burguesia emergente. A razão entra em crise na medida em que renuncia à busca pela racionalidade capitalista. O significado da razão, que deveria levantar questões fundamentais do sentido da existência humana, se reduziu a uma concepção meramente operatória, manipuladora das coisas e dos próprios homens.

Em termos de reflexão filosófica, a crítica da concepção moderna de racionalidade é empreendida pela Krtische Theorie, a partir das análises de Adorno e Horkheimer sobre os impactos da barbárie fascista e a monstruosidade da segunda guerra mundial, compartilhado com a crítica marxiana da economia política, a análise da transformação da razão emancipatória para a razão instrumental no capitalismo monopolizado. Ao se referir ao logos grego, Horkheimer dirá que: “A razão, em seu sentido pleno, era uma autêntica ‘potência espiritual’, uma instância suprema que dirigia a vida dos homens”. No Iluminismo, “a razão se autoliquidou enquanto meio de julgamento ético, moral e religioso” (1991:23)

Esta concepção instrumental da razão, que nasce com a ciência moderna e seu projeto de dominação da natureza, é um marco que cinde a subjetividade humana, transformando-a em objetividade coisal. Ora, o uso exato da razão, para assim, a ser condição fundamental de possibilidade de exploração, seja da natureza fora de nós ou da natureza em nós. Ao mencionar a origem da modernidade, Marx (1974:313) dirá que “pela primeira vez a natureza se transforma puramente em objeto para o homem, em coisa puramente útil; cessa de poder ser reconhecida como poder para si”.

Assim, numa perspectiva instrumental da razão, a natureza passa a ser concebida como instrumento do próprio homem, sendo validado como racional unicamente o esforço de autoconservação, perdendo a razão, a preocupação em definir as tarefas mais nobres da existência humana. De tal modo, é coerente a afirmação “que o crescente poder de razão instrumental equivale ao aumento das formas irracionais de dominação, seja da natureza ou do próprio homem” (Silva, 2001:61), expressa tão bem pelo imperialismo sem limites, voltado para um ideal de progresso, que ideologicamente explica, a insaciabilidade do homem e os comportamentos dela resultantes.

Na sociedade capitalista avançada, a reificação da produção material, a organização social e a ambição do homem, tornaram-se uma força cega, determinada pelo utilitarismo do mercado. Eis o que caracteriza, de maneira geral, a globalização; forma atualizada da dominação do liberalismo econômico.

Trata-se de uma disseminação em escala mundial da economia de mercado, transformado no principal mediador das relações sociais. Neste processo, vão sendo gestadas no âmbito da sociedade, um certo ethos, uma dada moral e um modo de ser cujos valores vão legitimando o projeto societário , imposto pela nova ordem do capital. A moral passa a ser constituída como elemento que funda, não apenas o agir humano, mas, sobretudo as normas, os juízos de valor, as leis, os sistemas de eticidades e a política de um modo geral. Conforme Barroco,

Na sociedade de classes, a moral cumpre uma função ideológica precisa: contribui para uma integração social viabilizadora de necessidades privadas, alheias e estranhas às capacidades de “subordinação das necessidades, desejos, aspirações particulares às exigências sociais” (Helle, 1975:133), ainda que não diretamente, mas através de mediações complexas, a moral é perpassada por interesses de classe e por necessidades de (re)produção das relações sociais que fundam um determinado modo de produzir material e espiritualmente a vida social. (2001:45).

Assim, a moral constituída aí está presente na própria aquisição-transmissão de valores, tacitamente carregados de significações direcionadas para um jogo de regras formalizado, onde que domina é aquele que estabelece os padrões de regras socialmente impostas por grupos detentores de hegemonia. Tal jogo também se naturaliza de maneira sutil, mas ostensiva, no campo da política, pelo jurídico-institucional e convenções morais na sociedade. Na cultura, esta moral constituída aparece sobremaneira na forma de várias vertentes éticas, que não obstante, se constituírem com vistas ao bem comum, à equidade social, ou ainda, o melhor para os indivíduos humanos, contraditoriamente têm reforçado a manutenção de um sistema iníquo.

Algumas correntes se destacam pela defesa de determinados princípios racionais, baseados em convicções, crenças e valores morais, visando ao estabelecimento da paz e da segurança universal entre os homens, graças a uma racionalização da vida, pretendendo instaurar uma concepção de político, calcado numa ordem de racionalidade ética e econômica de mercado. Destacaremos o utilitarismo como uma das principais vertentes do neocapitalismo.

 

A Racionalidade econômica na perspectiva do Utilitarismo 

Sondando os fundamentos desta racionalidade, uma das doutrinas que se destacou na modernidade e teve como representantes Stuart Mill (1806), Adam Smith (1723) e Jeremy Bentham (1748) foi o utilitarismo moral, de tipo liberal, que tem como princípio o individualismo, fundamentado numa concepção do agir humano a partir de sua própria experiência e razão, caracterizado pelo interesse no particular, no que tange às ações, o bom é útil para o maior número de pessoas, na medida em que o meu interesse pessoal está envolvido. Ela aponta também para o fato de a utilidade ter uma relação direta com a conseqüência da ação, ou seja, o ato será apropriado se conferir bons resultados. A liberdade, assim, se expressa pela felicidade na satisfação dos interesses particulares, realizados como resultado último. No campo político, o utilitarismo assume maior alcance na doutrina liberal. Para Ramos, “Sua base está na primazia do indivíduo e dos seus direitos subjetivos; a política e o Estado são derivações da questão básica dos direitos individuais. O poder político não possui autonomia, ele participa da própria lógica dos interesses individuais” (1995:108).

Assim, a discussão sobre o Estado e suas políticas se dá no sentido de limitar o poder deste, assumindo uma forma negativa em face à positividade da natureza (individual) humana. No campo técnico-científico, a tendência do econômico em anular conflitos é tremenda. A objetividade de que goza a racionalidade científica é técnica, substitui controvérsias ocorridas em vários graus ideológicos, anulando conflitos, produzindo uma espécie de neutralização, pela aceitação de soluções técnicas, das ações efetivamente políticas.

A face ideológica resultante dessa racionalidade da doutrina moral hegemônica constituída no político, culmina no ideal das ações ético-políticas, que devem pairar acima dos conflitos existentes na base real da vida, visando ao consenso de grupos majoritários, estabelecendo a felicidade e a paz, no sentido de dar estabilidade social em pleno surgimento do caos. Como afirma Vásquez,

Por não considerar as condições histórico-sociais nas quais deve ser aplicado o se princípio, o utilitarismo esquece que, nas sociedades baseadas na exploração do homem pelo homem, a felicidade não pode ser separada da infelicidade que a torna possível. (1997:143)

 

Desse modo, tal perspectiva não consegue ir além de uma visão de mundo calcado num ideal infinito; o progresso3 O movimento que caracteriza este processo consiste na superação da própria finitude do indivíduo, onde o absoluto é o termo. Neste sentido, esse ideal projeta os indivíduos para a acumulação infinita da produção e riqueza, a maximização do lucro e da propriedade, concebidos em última instância como o bem-estar e a felicidade.

Ora, para se tornar válida e aceita sua visão de mundo, o liberalismo também se utiliza de um discurso de tipo formal4, abstrato e racional-instrumental, que se expressa através de um procedimento institucionalizado de argumentação, fundado sobre regras políticas. Seu caráter nuclear se baseia na ética de tipo formal-discursiva, operando um deslocamento da finalidade última da política, que é a decisão para o campo discursivo.

Esta outra característica da ética liberal encontra-se respaldada nas visões de alguns pensadores contemporâneos, que não obstante, elaborem todo um leque de teorias distintas acerca da relação ético-política, confluem malgrado, suas boas intenções, para uma ratificação da força avassaladora do liberalismo econômico. Os mais representativos são Jürgen Habermas, com sua teoria Ética Comunicacional e Jonh Rawls5 com a Teoria da Justiça.

Estas teorias se fundamentam a partir da busca de princípios morais6, dotados de caráter universal (Istoé, válido para todos os casos) e concomitantemente formal (ou seja, que tal validade comece de uma dimensão pura, que anteceda a qualquer situação empírico-prática da vida humana, embora que deva servir para regular esta).

A partir de uma compreensão da função ideológica que cumprem estas teorias, no que pensem as propostas destas éticas em estabelecer parâmetros éticos para uma redefinição do modelo de justiça, de verdade, liberdade, apregoados pela tradição liberal – que vem atropelado os direitos às necessidades básicas da humanidade, pela sua voracidade econômica, defendendo a ilimitada liberdade de acumular riquezas e concentrar-expandir a miséria global – elas não sabem criticar o capitalismo; não sugerem uma eticidade pós-convencional crítica, como parecem propor, mas se atêm a uma pós-convencionalidade formal no interior da hegemonia da eticidade, da cultura e do sistema dominante, sem consciência explícita da sua cumplicidade.

 


 3 “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”. (Dialética do Esclarecimento, 1985:19). Através de uma análise da negatividade inerente ao movimento Iluminista europeu Adorno e Horkheimer desmascaram a pretensão pseudo-humanista do progresso total da humanidade.

4 Nas nossas reflexões, as críticas referidas à moral constituída se endereçam a dois eixos mais importantes na constituição da moral hegemônica: o utilitarismo e sobre este, o desdobramento das éticas formais.

Contudo, é preciso ter presente, que tal postura, torna em princípio, toda ética impossível, já que o pressuposto da ética é a ação consciente e livre do indivíduo a respeito das coisas, do mundo e de si mesmo, ao passo que aqui, a liberdade projeta-se para um mecanismo exterior, autômato, regido pela lógica do mercado, e este realiza uma outra contradição, que consiste na recusa da ética em suas relações.

Ora, esta moral constituída sobre a visão de mundo liberal, que instrumentaliza formalmente nosso mundo vivido, colocando toda a atividade política e as relações sociais no âmbito do discurso, radica com muito mais força e com uma nova versão na atualidade – o neoliberalismo – ignorando, cinicamente, os afetados-excluídos das mesas de negociação. Para Yasbek,

Esta regressão liberal ao impor-se como lógica do capitalismo atual, consolida a dissociação entre mercado e direitos, aprofunda a cisão entre o econômico e o social, separa a acumulação da produção, instala desregulações públicas, reitera a desigualdade e a diversificação, busca eliminar a referencia ao universal e constrói, uma forma despolitizada de abordagem da questão social (2001:38).

Ora, só a partir do exercício da razão ético-crítica é que podemos apontar a verdade deste sistema hegemônico, que se transfigura em sistema negativo, tão bem analisado pelo fetichismo de Marx, a dialética negativa de Adorno e Horkheimer, a inversão dos valores de Nietzsche, O princípio opressione de Dussel, entre tantos outros pensadores que lembram a razão moderna sua própria contradição, que se dá a partir de suas próprias vítimas, dominadas, oprimidas e excluídas, submersas na dor, na infelicidade, na fome, na pobreza e no analfabetismo.

Já em 1996, a Organização das Nações Unidas – ONU – declarava que a pobreza a nível mundial atingia uma média de 400 milhões de pessoas, sendo 1,5 bilhões desesperadamente pobres e mais de um bilhão sobrevivendo com uma renda diária abaixo de um dólar, inclusive nos países desenvolvidos. No Brasil, de acordo com o IPEA, em 1999, 60 milhões de brasileiros já se inseriam em condições de vida abaixo da linha da pobreza, recebendo oitenta reais por mês e dentre estes, 24 milhões sobrevivem abaixo da linha de indigência, com quarenta reais por mês. A concentração de renda e riqueza é extrema; 1% da população detém 13,8% da renda  total do país e os 50% mais pobres ficam com 13,5% sem contar que o salário mínimo é um dos mais baixos do mundo.

 


 5 Uma das principais obras de referencia de Rawls encontra-se traduzida para o português: “Uma teoria da Justiça”. Lisboa, Presença, 1993.

6 Na tradição filosófica é com Immanuel Kant (1724-1804) que se estabelecem as bases para uma elaboração das morais formais, acentuando o caráter racional da ação como único garante de atos genuinamente livres.

Marx (1997:144), ao criticar o modo concreto pelo qual o capitalismo nega a vida humana, vai dizer que “esta propriedade privada material, imediatamente sensível, é a expressão material e sensível da vida humana alienada”.

A crítica se origina, a partir da análise da dialética da produção e reprodução humana que se desenvolve, através e/ou pelo trabalho, e que no sistema capitalista é objetivado, transformando o trabalhador em objeto determinado num mundo objetivo. Ora, porque na sociedade capitalista os indivíduos são tidos como proprietários de objetos trocáveis, cada um é relacionado com o outro à medida que pode obter dele algo equivalente a seu produto. Desta forma, se do ponto de vista da ética,

O homem é fundamentalmente eticidade, ou seja, na própria terminologia de Marx, o conjunto das relações sociais, o reino da liberdade é a eticidade alternativa, pressuposta em todas as análises de O capital, como a totalidade que instaura o homem como sujeito ontológico, em contraposição à totalidade contraditória, conflitual, que é o modo de produção capitalista, fundado numa sociabilidade objetivamente mediada (Oliveira, 1993:277)

Assim, quando Marx realiza uma hermenêutica da negatividade do sistema capitalista, que aponta na sua forma mais preemente para a desrealização do trabalhador, o faz, a partir do exercício da razão ético-crítica utópica num nível material, colaborando para a construção do sujeito histórico, como coletivo anti-hegemônico de vítimas, capazes de criar uma nova validade para além do capital.

Portanto, a liberação do mundo vivido e de sua submissão aos ditames da autovalorização do capital, pressupõe a superação da moral por uma eticidade alternativa, que considere “a socialização plena da natureza humana, tendo como condição de possibilidade a socialização plena das relações humanas” (Idem: 281)

 

Considerações finais

Não obstante o enorme predomínio do capital financeiro globalizado, que impõe hegemonicamente todo seu poder, o mundo não pode ser induzido a esta única dimensão. Tal perspectiva é própria da concepção positivista, que instrumentaliza o mundo vivido e ideologicamente reduz o pensamento social.

Não é à toa que a ética utilitária conta sempre com uma economia distribucionista, cujo valor da mercadoria é excepcionalmente estabelecido pelo desejo ou preferências do comprador, negando sempre que o produto já foi produzido por um produtor (o operário), cuja sorte significa o cumprimento de necessidades, não só preferências que nunca poderão ser descobertas pelo utilitarismo.

Por isso, é preciso “ampliar a perspectiva, e pensar a sociedade e a cultura fora da prisão do mercado e do fetichismo tecnológico, imposto pelo neo-imperalismo realmente existente” (Castro, 2001:43). Negar as estruturas reais, que impedem a liberdade e a justiça a partir da crítica dialética dos problemas éticos.

Como tal crítica é o lado teórico, assim a subversão e a revolução do lado prático da base da ética da libertação. Ela é, em realidade, na prática, o imperativo categórico, de derrubar todas as condições, nas quais o homem é um ser rebaixado, escravizado, abandonado, desprezível. (…) Sem tal negação como crítica e como subversão, não existe justiça positiva, nem concreta nem abstrata (porque, como diz a boca do povo, o pelego não pode ser lavado sem que seja molhado) (Thielen, 1994:2014).

Assim, a crítica da sociedade é fundamentalmente ética, pelo fato de negar, abertamente a opressão, a destruição e a injustiça social. E o é também, porque transforma os sistemas de eticidades convencionais, ideológicas, numa forma de crítica teórica revolucionária e subversiva. Finalmente a crítica será ética se, na medida em que refletir a própria práxis ética, for capaz de mostrar os caminhos concretos para a emancipação da humanidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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O pensamento de esquerda e os limites da luta pela liberdade de orientação sexual*


 

 

Silvana Mara de Morais dos Santos**

Considerações Iniciais

Nas últimas décadas do século XX, seguindo o ritmo e as reivindicações dos múltiplos sujeitos coletivos que se formaram a partir das lutas e problemas postos pelos movimentos feminista, gay e lésbico, surgiram uma pluralidade de abordagens teóricas que cercaram o tema da sexualidade humana em suas diversas manifestações. Rompendo com o tratamento da sexualidade em sua dimensão estritamente biológica, vários estudos trouxeram, para o debate, enfoques que transitavam em torno do reconhecimento das identidades sexuais, dos direitos reprodutivos e, mais recentemente, dos direitos sexuais. A orientação sexual constitui-se numa dessas temáticas que compõem a questão da diversidade, termo que utilizaremos, aqui, como uma definição estratégica que designa um conjunto de reivindicações sócio-culturais: igualdade de gênero e racial; liberdade de orientação sexual, dentre outras. Nosso objetivo é analisar como as forças de esquerda intervêm para modificar os limites da liberdade de orientação sexual. Esta temática ganha visibilidade quando o assunto é a violação dos direitos humanos. Entre algumas conquistas e um universo amplo de tratamento sócio-político-jurídico desigual, os problemas se repõem e as soluções, até aqui, soam epidérmicas. Resta-nos interrogar: quais os limites impostos por esta ordem de material na resolução das questões no campo da diversidade, notadamente na efetivação da liberdade de orientação sexual?

 

A homofobia como prática sócio-cultural legitimada na sociabilidade vigente

Partimos de três pressupostos fundamentais. Primeiro, a sexualidade humana, aqui, é pensada de forma concreta a partir da constituição da individualidade, que assume características e expressões determinadas de acordo com a sociabilidade capitalista, uma forma inteiramente histórica e essencialmente limitada de organização da vida social.


 * Agradeço as contribuições das por Andréa Lima, Sâmya Rodrigues e Marylucia Mesquita que discutiram este artigo comigo.

** Professora do DESSO/UFRN, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE e pesquisadora do GEPE/UFPE. E-mail: sillmorais@uol.com.br

 

Essa limitação se explica em virtude da “produção de mercadorias – não importa sob que forma concreta – ser o momento fundamental desta ordem social” (Tonet, 1999:101) e não a satisfação das necessidades humanas. Temos, assim, como segundo pressuposto que uma das características da sociabilidade do capital é a sua indiferença às identidades culturais e às diferenças subjetivas dos indivíduos sociais submetidos ao seu sistema de exploração. O terceiro aspecto refere-se ao fato de que, em nossa reflexão, as questões no âmbito da sexualidade humana não se constituem expressões superficiais ou periféricas da vida, mas representam uma dimensão profundamente significativa das relações humanas e do desenvolvimento da individualidade.

A individualidade constitui-se um complexo social parcial1 e, como tal, é indissociável da totalidade da vida social. Dessa afirmação não resulta nenhuma apreensão mecânica entre a totalidade e os complexos sociais parciais, pois mediante o desenvolvimento da formação social, os complexos particulares se tornam cada vez mais mediados, contraditórios e enriquecidos com dilemas e desafios postos de modo permanente. Isso implica que a individualidade possui movimento e demandas próprias, embora, do ponto de vista ontológico, prevaleça, em sua configuração, as determinações oriundas do lugar e da função que ocupa na totalidade social.

Nessa perspectiva compreender a sexualidade, como uma dimensão da individualidade, não significa admitir que esta possa ser pensada como uma espécie de essência, própria de um sujeito singular que vive isolado e independente das relações sociais. Ao contrário disso, o processo de individuação é uma construção social que revela o modo como os homens e mulheres produzem seus meios de vida e usufruem da riqueza socialmente produzida. De acordo com Palangana (1998:07),

o ser humano nasce como um membro da espécie igual aos demais e se distingue, quer dizer, desenvolve propriedades diferenciadas na práxis social. Para torna-se um indivíduo em particular há que se apropriar da cultura, do legado das gerações precedentes, fazendo-o seu.

Nessas condições, “a práxis social é o elo ontológico que articula de modo absolutamente necessário indivíduo e sociedade” (Lessa, 1995:82).

 


 1 “lukács denomina de complexo de complexos: as diferentes necessidades, cada vez mais humanas, postas pelo processo reprodutivo à sua continuidade, exigem o desenvolvimento de complexos sociais que, para cumprirem as funções que lhes são específicas, devem se desenvolver enquanto complexos distintos de processualidade social global. Quanto mais desenvolvia a formação social, maior a diferenciação entre esses complexos parciais e maior a autonomia de movimento e reprodução que exibem frente à totalidade social” (Lessa, 1995:72).

Na vivência da sexualidade, mulheres e homens expressam os conflitos da singularidade com tipos variados de dilemas, controles e critérios que orientam as escolhas individuais e as decisões afetivo-sexuais, ao tempo em que expressam, também, ainda que não de forma linear, as tendências históricas da generalidade humana2. Com isso, podemos afirmar que a realidade das relações afetivo-sexuais é construída historicamente, levando-se em consideração, dentre outras, as mediações da cultura e da afetividade não se constituindo, portanto, numa mera derivação biológica, nem algo estático, voltado, exclusivamente, para a reprodução da espécie e para o desenvolvimento imanente do indivíduo.

A vivência amorosa e a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo integram, praticamente, todas as sociedades, nas mais distintas épocas3. Resta, no entanto, identificar as razões sócio-históricas que fazem com que o capitalismo apesar de se apresentar, desde suas origens, como um projeto societário voltado para o reconhecimento dos indivíduos, na condição de sujeito de direitos, além de não absorver um conjunto de reivindicações de segmentos particulares que ficam destituídos do acesso a direito, não cumpre sua promessa de igualdade e liberdade, mesmo numa perspectiva formal, para todos os indivíduos sociais. Apresenta, ainda, enorme capacidade de utilizar, em benefício próprio, várias formas de opressão que atingem segmentos específicos da população. Exemplo disso é que o relacionamento entre indivíduos do sexo oposto se impõe como orientação aceita socialmente, enquanto qualquer envolvimento afetivo-sexual diferente da relação heterossexual é alvo de práticas discriminatórias. Temos que considerar, no entanto, que os problemas relacionados à discriminação e ao preconceito contra indivíduos que vivenciam relação homo-afetivo-sexual é anterior à sociabilidade do capital.

Pela metade do século XIV, a visão de sociedade quanto à identidade sexual era muito diferente da que existira no mundo antigo. Essa mudança radical foi produzida pelas autocracias combinadas da Igreja e do Estado, que se recusavam a admitir a bissexualidade. A sexualidade estava agora tocada pela divindade de Deus e tornou-se sagrada (as mulheres eram tão marginalizadas que sequer eram consideradas). Em termos práticos, qualquer expressão sexual fora do casamento (…) estavam contaminadas pelo demônio (Spencer, 1999:119).

 

 


 2 “A generalidade humana, por ser a portadora última das necessidades originárias da reprodução humana, por ser a expressão máxima do patamar de universidade efetivado pelo gênero a cada momento, exerce o momento predominante no desenvolvimento social global e, portanto, seu movimento é ontologicamente prioritário frente aos processos dos complexos parciais”(Lessa, 1995:72)

3 Para resgatar o modo como relação afetivo-sexual entre indivíduos do mesmo sexo era tratada nas sociedades antigas Cf. dentre outros, Spencer (1999).

A bissexualidade, que até então era tida como dimensão integrante da sexualidade humana, torna-se proibida. Foi nesse período, quando a prática bissexual ganhou status de perversão sexual, que se instituiu uma espécie de polaridade na prática sexual, dividindo-a entre práticas que deveriam ser estimuladas, ou seja, àquelas desenvolvidas entre indivíduos de sexo oposto e as que deveriam ser reprimidas, porquerealizadas entre indivíduos do mesmo sexo. Estava consolidada, assim, o que Spencer (1999) denominou como sendo a criação do Estado Homofóbico, ou mais precisamente, a formação da sociedade homofóbica4.

Dissemina-se, então, a naturalização de ações autoritárias e conservadoras voltadas para o controle social da sexualidade que, em nome do ideal “heterossexual”, procuram expurgar, com a utilização de formas extremamente violentas, a dimensão da bissexualidade da vida dos indivíduos. O resultado disso foi a institucionalização de práticas e valores no âmbito da família, da escola, enfim as relações sociais são impregnadas pela imposição da “heterossexualidade” como a única orientação sexual considerada legítima e saudável. Estavam decretadas, assim, as condições sócio-históricas quanto à impossibilidade dos indivíduos orientarem sua vida afetivo-sexual com liberdade de expressão e de acordo com o desejo e o sentimento.

Durante o século XIX, sucessivas gerações de médicos, na Europa e na América, dedicaram-se à busca da causa do que consideravam ser uma disfunção sexual. Até 1700 isto era tido como um pecado contra Deus e, portanto, uma falha moral e teológica. Tornou-se, a seguir, um crime social, contra o qual o Estado legislava. Agora estava por transformar-se numa inadequação médica e psicológica, que muito rapidamente poderia vir a ser uma doença mental. Esta passagem de pecado para crime, e daí para insanidade, foi provocada por mudanças sociais (Spencer, 1999:273)5.

 

 


 4 O termo homofobia designa um conjunto de práticas que limitam a vivencia afetivo-sexual dos indivíduos, restringindo, ainda mais, as possibilidades para a realização da liberdade humana. “Fobia é um sentimento ou reação externa de rejeição a algo de que não gostamos, sobre o qual não concordamos, que não aprovamos ou do qual temos medo” (Gonçalves, 2001:13). A fobia é o medo e rejeição a uma determinada situação, levados ao extremo. Existe um tipo de fobia que se desenvolve em relação às pessoas, ao jeito de ser e viver. Nestes casos, a fobia se manifesta em relação à sexualidade, mas também à religião, à raça, ao estilo de vestir e falar, entre tantos outros aspectos que configuram o modo de vida dos indivíduos em sua contidianeidade.

5 O poder da medicina, tal como ocorreu com a questão racial, intensificava-se e muito contribui na formação da homofobia. As teorias médicas contrárias ao livre exercício da sexualidade foram bem aceitas pelos segmentos dominantes da sociedade, que assimilaram e disseminaram a relação afetivo-sexual, entre indivíduos do mesmo sexo, como uma anomalia da natureza, uma doença, algo que deveria ser extirpado da vida humana.

 

No desenvolvimento histórico da sociabilidade humana, diferentes obstáculos sócio-culturais foram superados. Entender a relação específica entre cada uma das dimensões da diversidade e o sistema vigente remete à análise ontológica do direito e da política e à análise sócio-histórica, considerando as particularidades do desenvolvimento do capitalismo nos diferentes contextos e a função que assume determinadas ideologias. Obviamente, não faremos isto aqui. Observamos, no entanto, que a sociabilidade capitalista, ao se constituir numa forma de organização da vida social que se caracteriza pela subordinação de todos os valores humanos aos ditames da acumulação do capital e sua exigências de lucro, torna-se flexível, ora integrando, ora descartando a solução para as opressões particulares. O que é relevante ressaltar é que

toda a vida dos indivíduos, em todas as suas manifestações é, de algum modo, colocada sob a ótica do capital. Desde o trabalho propriamente dito, até as manifestações mais afastadas dele, como a religião, os valores morais e éticos, a afetividade e as relações pessoais. O que não significa (…) que os aspectos, em sua totalidade, estejam subsumidos ao capital. Se assim fosse, sequer os indivíduos poderiam existir como indivíduos. Esta afirmação significa, apenas, que nenhum aspecto da vida social e individual, hoje, deixa de ser perpassado pelos interesses do capital (Tonet, 1999:102).

Em nossa realidade, podemos afirmar que a homofobia está profundamente enraizada como prática sócio-cultural e ideológica legitimada. A homofobia está presente quando a vivencia afetivo-sexual diferente da heterossexualidade é considerada doença ou quando tomamos as diferenças de orientação sexual, entre as pessoas, como fonte de discriminação. Em maior ou menor grau de desenvolvimento, as práticas homofóbicas significam rejeição do outro que orienta sua vida afetivo-sexual desejando e amando indivíduos do seu mesmo sexo. Desse modo, fica estabelecido, no campo da convivência afetivo-sexual, uma separação radical entre práticas que são socialmente aceitas e estimuladas e aquelas que são condenáveis e proibidas6.

Em síntese, podemos afirmar que são características desse tipo de fobia toda ordem de violência física, emocional e psicológica cometida contra quem vivencia relação homo-afetivo-sexual. As práticas de violência que avançam pelas ruas, pelas casas e pelas instituições das pequenas e grandes cidades são realizadas pela política, pelo Estado, mas, também, por homens e mulheres comuns, no seu cotidiano. Das piadas preconceituosas, passando pela violência policial e avançando para a violação e/ou não reconhecimento dos direitos.


 6 Alguns historiadores discordam que esta separação tenha ocorrido no século XIV, argumentando que ela aconteceu mais tarde, no século XIX, quando passa a vigorar uma identidade sexual que se separa e se distingue da bissexualidade.

O clima hostil e violento contra os segmentos homossexuais se passa num ambiente de “normalidade” que expõe as contradições e os limites da igualdade e da liberdade nesta forma de sociedade.

 

As esquerdas e a questão da diversidade

As práticas individuais e coletivas em defesa da liberdade de orientação sexual estiveram presentes nas mais diferentes épocas. Passo a contextualizar, em linhas gerias, duas tendências que repercutem mais fortemente no pensamento das esquerdas nos dias atuais.

A partir da década de setenta e, principalmente, nos anos oitenta e noventa do século XX, o debate em torno da questão da sexualidade humana ganha novo destaque no ambiente político. Isto ocorre no contexto da crise de caráter estrutural da ordem do capital e das mudanças objetivas operacionalizadas para enfrentar esta crise; ao mesmo tempo é, também, a partir desse período que surge um conjunto de movimentos sociais (MS) com potencial contestatório dos valores sócio-culturais dominantes. De início, são as mulheres que, através do movimento feminista, conseguem apresentar, aos partidos políticos, suas reivindicações particulares, exigindo da esquerda uma redefinição do seu ideário político-cultural, até então centrado numa linguagem em práticas marcadas pela desigualdade de gênero. A idéia de que “a classe operária tem dois sexos” abriu o debate em torno da diversidade subjetiva da classe trabalhadora e da pertinência da esquerda assumir estas reflexões no seu campo teórico-político. Na esteira do movimento feminista, vieram, dentre outros, o movimento de negros e negras e o movimento pela liberdade de orientação sexual. Esse processo colocou em discussão o próprio conteúdo das lutas históricas da esquerda.

 

A entrada na política cultural era mais compatível com o anarquismo e com o liberalismo do que com o marxismo tradicional, levando a nova esquerda a se opor a atitudes e instituições tradicionais da classe trabalhadora. Ela abraçou novos movimentos sociais que eram eles mesmos agentes de fragmentação da política da velha esquerda. Na medida em que esta última era, na melhor das hipóteses, passiva, e, na pior, reacionária (no tratamento das questões de raça e de gênero, da diferença, e de problemas dos povos colonizados e das minorias reprimidas e das questões ecológicas e estéticas), algum tipo de mudança política da espécie proposta pela nova esquerda por certo se justificava. Mas, ao fazer esse movimento, a nova esquerda tendia a abandonar a sua fé tanto no proletariado como instrumento de mudança progressista como no materialismo histórico enquanto modo de análise (Harvey, 1999:319-320).

É nesse quadro histórico, de crise estrutural do capital, de decadência das sociedades pós-capitalistas e de crítica às estruturas históricas de organização política da classe trabalhadora, que se dá o fortalecimento do arcabouço teórico-político-cultural da pós-modernidade. O anúncio do fim da centralidade do trabalho na vida social e todas as conseqüências que advém daí, destacando-se, entre estas, a centralidade da política na vida social e o cancelamento das classes sociais, têm direcionado a análise e as estratégias de luta de boa parte da esquerda em nível mundial e nacional. No tratamento teórico-político dispensado às questões da diversidade, notadamente no campo da orientação sexual, este novo tipo de esquerda, denominado de “esquerda democrática” procura se diferenciar da “esquerda tradicional”7. Com o objetivo apenas de ilustrar esse debate, considerando os limites deste artigo, apresentaremos essas duas grandes tendências.

A primeira tendência, protagonizada pela “esquerda tradicional”, herdeira de uma tradição determinista, mostra-se solidária com as lutas de grupos específicos, mas, na sua ação política, considera desnecessário e sem relevância social definir estratégias voltadas ao enfrentamento dos problemas apresentados no campo da diversidade, que ficam subordinados, de forma mecânica, à superação da ordem do capital. Tal subordinação fez com que o debate em torno dessa questão da orientação sexual, por exemplo, não ganhasse nenhum tipo de destaque no horizonte das estratégias de intervenção partidária. A “esquerda tradicional”, ao admitir que as reivindicações sócio-culturais atravessam a luta como um todo, acaba por cometer uma espécie de desqualificação das demandas específicas, com o argumento de que a classe trabalhadora não pode se fragmentar nem se dividir. Reitera-se, desse modo, uma concepção restrita na articulação entre classe e cultura e entre indivíduo e gênero humano. Além disso, as reivindicações particulares no campo da diversidade são entendidas, equivocadamente, como uma questão “das minorias”. O equívoco consiste em desconsiderar que as demandas postas por esses segmentos, que são identificados como “minorias”, dizem respeito ao modo de organização da vida social e, portanto, seu enfrentamento vincula-se ao processo de desenvolvimento da sociabilidade e do gênero humano, não se constituindo questões de interesse apenas de determinados indivíduos, uma suposta “minoria”. Isso posto, podemos afirmar que a “esquerda tradicional”, pressionada pelos movimentos sociais e por militantes que vivenciam, em sua singularidade, algum tipo de opressão específica, admite a gravidade de múltiplas formas de opressão, no entanto, não agrega essa reivindicações à sua plataforma de luta.

A segunda tendência revela-se através da “esquerda democrática”, que opera uma mudança significativa em relação ao tratamento dado pela “esquerda tradicional”, posto que há o reconhecimento quanto a relevância social e política de estabelecer, em seu ideário e no seu campo de atuação, estratégias de enfrentamento das questões que denotam a opressão em suas particularidades, seja em relação ao gênero, à raça, à orientação sexual, dentre outras.


 7 O termo esquerda tradicional se refere aos segmentos que se identificavam com os postulados do marxismo-leninismo e com a orientação dada aos partidos comunistas em nível internacional.

Esse reconhecimento não ocorreu de forma espontânea e imediata, mas num processo complexo de interação e disputa política, entre diferentes sujeitos individuais e coletivos que tensionaram a estrutura e os membros partidários para que acolhessem e valorizassem a agenda dos movimentos sociais e de outros diferentes segmentos sociais. Essa agenda tem sido trabalhada, no âmbito da “esquerda democrática”, a partir de um conjunto de iniciativas políticas que dão visibilidade social às formas de opressão particulares. Integra essas iniciativas, a defesa de que os sujeitos, protagonistas das reivindicações específicas, devem se auto-organizar para que possam ser reconhecidos como sujeitos demandatários de direitos. Isto denota a diferença do tratamento secundário e invisível que essas questões recebem na perspectiva da “esquerda tradicional”.

Do ponto de vista da “esquerda democrática”, as reivindicações, quanto à questão da orientação sexual, devem ser incluídas no campo e no horizonte da luta pelos direitos humanos. À luta pelos direitos civis, políticos e sociais deve-se acrescentar os direitos sexuais, raciais, dentre outros. Assim, vislumbra-se que compete ao Estado, através do aparato jurídico-político, a resolução da desigualdade entre os indivíduos. Verificamos, desse modo, que a questão é remetida ao tratamento jurídico sem que se realize, no entanto, uma reflexão mais profunda sobre a desigualdade estrutural da sociedade capitalista e suas particularidades neste momento histórico de mundialização da economia em que o poder do capital define, conforme seus interesses de acumulação, a agenda social e política para o presente e o futuro da humanidade. Nos países de capitalismo periférico, a situação se agrava mediante o fato de que tem prevalecido, até aqui, uma integração subalterna à ordem mundial, com efetivação de uma agenda social contrária aos interesses da maioria da população. Segundo Sader (2000)8, “ se fosse definir sinteticamente a época em que vivemos, diria que se trata de uma época de expropriação de direitos. Do lado econômico, é uma época de desregulamentação e, do lado político e social, é uma época de regressão da civilização, de expropriação de direitos”.

O horizonte da luta proposta pela “esquerda democrática”, no campo da diversidade, consiste em alcançar os direitos já conquistados pela população branca, no caso das reivindicações raciais ou atingir os mesmos direitos dos heterossexuais, no caso dos homossexuais. A “esquerda democrática” orienta os grupos específicos a conquistarem o que compreende que outros grupos já possuem. Desse modo, chegaríamos à conquista da cidadania e liberdade plenas e, assim, supostamente, ao ápice da liberdade humana. A individualidade é, então, entendida sob o signo da fragmentação e de uma concepção de identidade que, ao reconhecer as diferenças entre os indivíduos, centra-se em referencias teórico-políticas que deixam intacta a exploração capitalista.

 


 8 Cf. Sader, Emir. Direitos humanos e subjetividade In: Psicologia, direitos humanos e sofrimento mental. Conselho Federal de Psicologia, 2000.

Os fenômenos se explicam em sua imediaticidade e as estratégias de enfretamento, adotadas pela “esquerda democrática”, não possibilitam a superação das formas de economicismo e reducionismo da “esquerda tradicional” e nem conseguem ampliar a luta anticapitalista. Ao contrário disso, verifica-se uma espécie de definição estratégica compulsiva para a aceitação da ordem social existente e suas possibilidades de aperfeiçoamento.

 

Para além da identidade de grupos específicos e da igualdade de oportunidades

A “esquerda democrática” implementou, ao longo das três últimas décadas, uma ampla revisão teórica dos conceitos, tais como socialismo, democracia, cidadania, revolução, dentre muitos outros. O ponto de partida de suas reflexões, que resultaram nesta revisão conceitual, foi, em linhas gerais, determinada pela crítica às sociedades pós-capitalistas que suprimiram, por completo, a liberdade humana e não efetivaram a socialização da política. Trata-se de uma crítica à postura da “esquerda tradicional”, que, até aproximadamente a década de 1940, divulgava amplamente a tese de que a democracia e cidadania eram valores burgueses e que deveriam ser superados tão logo fosse instituída a sociedade socialista.

Diversos fatos, contudo, vieram abalar essas convicções. Por outro lado, as conseqüências trágicas deste modo de pensar, nos países ditos socialistas. Todos tinham suprimido as liberdades democráticas e tinham se transformado em ditaduras brutais, tornando os homens menos livres e não mais livres como se supunha que aconteceria no socialismo. Por outro lado, nos países ocidentais, a sociedade capitalista tinha atingido um grau de complexidade muito grande, aí incluindo as instituições democráticas e os direitos do cidadão, de modo que seria impossível suprimi-los para substituí-los por uma ditadura, mesmo que essa fosse a da classe trabalhadora (Tonet, 2001:17).

Os fundamentos teóricos e as estratégias políticas desse tipo de esquerda instituíram uma perspectiva de politização da totalidade9. Isto significa que a propriedade é discutir e intervir exclusivamente no plano político, desconsiderando a totalidade da vida social e os pressupostos que fundam esta sociabilidade.

 


 9 As classes dominantes fazem, na sua trajetória histórica de intervenção na realidade, uma nítida distinção o discurso econômico e o discurso político como forma de estabelecer os procedimentos ideológicos de sua dominação. Assim, sob a égide do capitalismo, o indivíduo é destituído de suas determinações em nome da decomposição da totalidade em esferas particulares: a arena da política, da economia, da cultura etc.

É uma das maiores e mais sutis vitórias da situação (…) fazer precisamente a oposição propor e polemizar, viver exclusivamente o “político”, enquanto ela própria – a situação – retendo todos os comandos, realiza seu projeto global (Chasin, 19977:147).

Trata-se do enfrentamento da concepção determinista, legado dos postulados da II e III internacional e de uma série de interpretações teóricas e práticas que se formaram no último terço do século XIX, pela via da centralidade da política na vida social. Isto ocorre em detrimento da consideração da anatomia do social e implica no entendimento de que a política, a moral, o direito, a cultura, dentre outros complexos sociais parciais, podem ser apreendidos, exclusivamente, a partir de seu próprio movimento e do desenvolvimento da vontade humana. Os partidos políticos de esquerda, como é o caso do Partido dos trabalhadores, e outros movimentos sociais, que haviam participado de mobilizações contestatórias importantes, constituíram-se, em grande parte, nos países do ocidente, intermediações favoráveis ao conjunto da organização do modo de vida capitalista, ou como afirma Bihr (1988:11), estas forças de esquerda estão desempenhando muito bem “seu papel de força supletiva do capital”.

As armas teórico-políticas, com que se reveste a “esquerda democrática” para enfrentar as opressões particulares, se estruturam no apelo à população e ao Estado para o desenvolvimento da esfera pública com participação ativa da chamada “sociedade civil”. A conquista da cidadania aparece como substituto da crítica à sociabilidade capitalista. As categorias da identidade, da diversidade e da diferença são tidas como aglutinadoras e capazes de explicar o tempo presente e o indivíduo atual com as suas crises de sentido na vida. Fundamentadas na concepção de que a singularidade, o cotidiano e a pluralidade regem a história, a “esquerda democrática” revitaliza um conteúdo quase que puramente liberal, afastado do horizonte teórico de um projeto de emancipação humana, quando não em explícita oposição a este. Essa orientação traz, como conseqüência prática, o fato dos indivíduos sociais representativos de grupos específicos, como é o caso de homens e mulheres homossexuais, terem que remeter suas reivindicações ao terreno jurídico-político, como horizonte máximo para a realização da igualdade. Nesse sentido, acredita-se que é pela correlação de forças estabelecida, principalmente, no parlamento, que será possível fazer avançar seus direitos, num processo contínuo até conquistarem cidadania e liberdade plenas na vida social. A perspectiva é de que a aprovação da lei resulte na conquista do direito, que por sua vez, implica na conquista da cidadania, dos direitos humanos e da liberdade. Duas questões derivam dessa orientação dada pela “esquerda democrática”. Em primeiro lugar, igualdade formal e liberdade são entendidas como sinônimo e, em segundo lugar, ao invés de incluir as demandas sócio-culturais no universo de um projeto societário alternativo, as forças de esquerda tendem a se distanciar da elaboração desse projeto, fixando-se na luta por uma suposta igualdade de oportunidades para diferentes indivíduos e segmentos sociais. Observa-se, aqui, que não se trata de desvalorizar as lutas por direitos, mas de reconhecer a incapacidade do aparato jurídico-político para resolver opressões ideologicamente consolidadas. Afinal, os valores têm fundamentação objetivo-subjetiva.

Desse ponto de vista, na reconstituição de um projeto político alternativo à sociabilidade do capital é vital a inclusão das questões relacionadas à individualidade e à diversidade, que, no entanto, não podem ser explicadas a partir, exclusivamente, da identidade de grupos específicos, numa apologia à política da fragmentação, em que as questões, alem de serem descoladas da base material, são entendidas em sua dimensão estritamente singular e cotidiana, sem conexão com as conquistas e dilemas históricos do gênero humano. Extravia-se, assim, a relação dialética entre a individualidade e a forma societária vigente com seus avanços, contradições, ambigüidades e condições destrutivas. Essa ruptura entre o gênero humano e a singularidade; entre a política, o direito, a cultura e a totalidade da vida social tem sido a tônica das teorias pós-modernas que atestam e investem numa posição teórico-política centrada na narrativa do “Eu”, em que a concepção de identidade “torna-se uma celebração móvel” (Hall, 2003:13) que está fundada numa estrutura deslocada com pluralidades de centros de poder (Laclau, 1992) em contraposição às grandes narrativas e, notadamente, ao fato de que “os complexos sociais sempre funcionam com base em reciprocidade dialéticas” (Mészáros, 2002:269).

Tem sido neste ambiente teórico-político, deslocado da totalidade da vida social, que a “esquerda democrática” de modo hegemônico, elabora e estabelece sua estratégias. Uma das conseqüências dessa forma de pensar é a contraposição entre os interesses de classe e as questões da diversidade, como se a valorização de uma das dimensões, implicasse, necessariamente, na desvalorização da outra. Na perspectiva de criticar a “esquerda tradicional” que, simplificava, numa redoma economicista10, o entendimento da identidade de classe, da individualidade e da formação do sujeito revolucionário, a “esquerda democrática” tem contribuído para enfatizar o processo de formação de identidades de grupos específicos à medida que obstaculiza, de modo acentuado, a identidade de classe. Isso porque tem se configurado uma tendência de pensar os indivíduos a partir de demandas cada vez mais específicas. Essa concepção fragmentada do sujeito, que o aprisiona em sua dimensão singular, traz como conseqüência imediata o fato de que a esquerda passa a estruturar suas lutas, no horizonte do pensamento burguês, que instaura a cisão entre o ser genérico e o ser singular, fixando sua atenção para a imediaticidade da vida cotidiana, onde reinam os indivíduos entregues aos seus interesses particulares.

 


 10 No horizonte da “esquerda tradicional”, questões como a coragem, a disciplina e a solidariedade de classe pareciam encerrar o debate em torno da subjetividade. As determinações de gênero, etnia e orientação sexual, que tantas implicações trazem na formação do indivíduo, dando, inclusive, origem a vários dilemas da vida pessoal, não foram consideradas na constituição de um projeto societário alternativo. Formou-se, assim, uma identidade política do sujeito revolucionário, sem problematizar, em profundidade, determinações no campo sócio-cultural.

De outro modo, trata-se de recuperar os fundamentos teóricos para a compreensão da individualidade em sua relação dialética com a genericidade humana. A sociabilidade constitui a determinação central da individualidade por se tratar do conjunto de relações que os indivíduos desenvolvem entre si, à medida que produzem sua existência. Nesse sentido, as possibilidades de desenvolvimento estão circunscritas e delimitadas pela sociabilidade. Isto implica admitir que os indivíduos são, necessariamente, sociais e que suas ações e sentimentos não podem ser entendidos fora da vida social, de forma isolada e autônoma. A vida social constitui-se numa totalidade articulada das relações que os indivíduos estabelecem entre si. Há um caráter nitidamente social determinando a individualidade e isto faz com que o processo de individuação seja algo que acontece na dinâmica societária, configurando um processo extremamente complexo de determinações e contradições.Diante disso, pensar, do ponto de vista de classe, não significa destituir os indivíduos de sua individualidade, diferenças e diversidade.

A classe como “unidade na diversidade” é especificada, ela própria, pela autonomia dos indivíduos que a compõem. Pensá-la como matriz única a partir da qual se constituem os indivíduos como sua repetição ao nível micro é não entendê-la como produto da multiciplicidade desses indivíduos. A classe é, portanto, um coletivo de indivíduos. Coletivo que deve ser enriquecido pela história empírica desses indivíduos enquanto construtores da(s) racionalidade(s) social (ais) (Dias, 1996(b): 39).

Trata-se, pois, de um processo histórico de construção de uma “coletividade individualizada” que, sendo heterogênea e diversa na sua constituição, através do seu modo de ser, de viver e de aprender a realidade, busque homogeneizar sua intervenção, através da elaboração de um projeto societário que apanha a totalidade da vida social, distinguindo, do ponto de vista ontológico, o momento predominante da dominação burguesa e suas formas de alimentar ou desconsiderar variados tipos de opressão sócio-cultural. Vale enfatizar que, sob o controle do capital, o reconhecimento da diversidade sócio-cultural tem implicações sócio-jurídicas. No entanto, tais implicações são revestidas de um caráter formal e não podem se objetivar como resultado meramente da vontade humana ou do consenso intersubjetivo forjado, de modo político, entre as parte dos indivíduos e suas representações coletivas. Apostar nessa perspectiva de enfretamento é “desconhecer, por um lado, a força e o peso material das ideologias, e por outro, reduzir a luta hegemônica ao jogo iluminista do esclarecimento (…). Nenhuma Ciência destrói ideologia alguma. Enquanto a ideologia criticada tiver base social/material ela permanece” (Dias, 1996(b): 19).

 

Considerações Finais

A causa da igualdade das mulheres, dos segmentos afrodescendentes e homo-afetivo-sexuais, dentre outros segmentos específicos, tende, até aqui, a permanecer não-integrável à dinâmica societária atual, apesar de muitas conquistas históricas.

A promessa de oportunidades iguais “é utilizada como desvio mistificador pela ideologia dominante, permanecendo para os que aspiram a uma oportunidade tão impalpável como um sonho impossível, é grande a tentação de virar as costas para toda essa questão da igualdade e procurar vantagens relativas para porções mais ou menos limitadas de homens ou mulheres em posição ideológico oco da igualdade de oportunidades tenciona obter prometendo um avanço em direção a uma condição cuja realização está negando e ao mesmo tempo excluindo a possibilidade de uma ordem social equitativa” (Mészáros, 2002:301).

A impossibilidade objetiva para efetivação da igualdade substantiva e real nas microestruturas e no plano das relações interindividuais reside no fato histórico de que o sistema do capital não pode se manter sem reproduzir relações hierárquicas de poder entre os indivíduos sociais, inclusive “nas menores microestruturas ou microcosmos da reprodução e do consumo habitualmente teorizados sob o nome de família” (Mészáros, 2002:268). Embora as variedades existentes de hierarquia com potencial discriminatório expressas nas relações de gênero, nas relações raciais e no campo afetivo-sexual, não se constituam na causa original da desigualdade e do exercício de relações antagônicas do sistema de funcionamento do capital, neste momento histórico, elas estão emaranhadas numa rede de relacionamento dialéticos, profundamente afetados pelas características estruturais fundamentais de todo o complexo social.

Isto não significa que as lutas e iniciativas contra as formas de discriminação e preconceito, no tempo presente, não sejam necessárias e importantes. A questão está em discernir, do ponto de vista teórico-político, tanto as estratégias como o horizonte da luta. É preciso considerar que o paradigma hegemônico, em busca de sua legitimidade, vai se remodelando e, mediante as lutas dos movimentos sociais e demais organizações coletivas, incorpora algumas reivindicações postas pelos sujeitos coletivos que atuam no terreno da orientação sexual. Esse processo tem sido tenso e profundamente ambíguo, pois se, por um lado, identificamos algumas mudanças, que são importantes para o reconhecimento dos direitos e valorização dos diferentes segmentos, por outro lado, este processo é feito mediante a lógica mercantil, em que os sujeitos são respeitados, sobretudos, por sua condição de consumidor. Nossa constatação é que, mesmo depois de tantas décadas de lutas, ao invés da resolução, os problemas se repõem e as novas gerações são formadas num ambiente sócio-cultural que tende a ignorar ou tratar, em nível formal e superficial, as diferenças reais e subjetivas, presentes no modo de vida dos indivíduos. Isso porque as questões da diversidade só entram no circuito de atenção do capital quando podem ser reapropriadas para os propósitos do lucro e da mercantilização.

A família ocupa uma função ideológica de destaque no processo de reprodução social, à medida que, além de ter a responsabilidade na garantia das condições físicas e emocionais das futuras gerações, é no convívio familiar, onde primeiro ocorre a socialização dos valores que incidem na formação de homens e mulheres. Esses valores tendem a reproduzir, ainda que não de forma mecânica, os fundamentos básicos da sociabilidade do capital, em que os interesses particulares prevalecem face aos interesses da humanidade. Assim, a família, mesmo se constituindo, também, um núcleo afetivo, nesta sociabilidade, é atravessado pelas determinações mais gerais da produção material, não sendo, pois, um espaço independente e autônomo das relações sociais. Ao contrário, por seu intermédio, se repõe, de modo permanente, uma espécie de treinamento sócio-afetivo voltado para a produção de individualidades subalternas à lógica de convivência sócio-cultural, posta pelo projeto societário dominante.

As práticas afetivo-sexuais, desenvolvidas entre indivíduos do mesmo sexo, têm potencial questionador sobre essa estrutura familiar, afinal, por intermédio dessas práticas, entra em discussão o questionamento da relação afetivo-sexual ter como principal finalidade a reprodução da espécie, assim como podem ser questionados os valores machistas e a própria estrutura hierárquica e de posse entre homens e mulheres, instituídos pelo casamento monogâmico e pela dominação masculina, dentre outras questões. No entanto, para que esse potencial questionador se consolide e possa integrar as reflexões e estratégias no processo de elaboração de uma nova hegemonia, é necessário compreender que as mudanças nas instituições, como é o caso da família, por mais bem intencionados e profundas que possam parecer, não têm força para transformar o solo matrizador da formação sócio-econômica da sociedade. As iniciativas de mudanças sócio-culturais, quando postas isoladas da luta pela emancipação humana, acabam se constituindo em ações insuficientes e fragmentadas, desenvolvidas por alguns indivíduos que, apesar de todo o empenho, são derrotados na perspectiva de superar as diversas modalidades de opressão que incidem na forma da individualidade.

A sociabilidade vigente, em sua dinamicidade, absorve reivindicações, no campo da diversidade, submetendo-as, no entanto, ao controle do capital, longe, portanto, da valorização do gênero humano e de suas diferenças subjetivas. Não foi à toa que ao final do longo estudo sobre a história da orientação sexual, Spencer (1999:13) tenha sido levado a concluir que “nossas sociedades ocidentais têm se mostrado ultimamente mais homofóbicos do que nunca; não talvez na legislação, mas nas atitudes morais”.  

 

 

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Ética e educação: dois termos de uma mesma realidade*


 

Marieta Koike**

Com alegria por ter sido distinguida com o honroso convite para participar desse evento comemorativo da Semana dedicada aos assistentes sociais, quero consignar meus agradecimentos e render homenagens às entidades organizativas da categoria no Brasil. Refiro-me à ABEPSS, ao conjunto CFESS/CRESS e à UNESSO que, de maneira articulada e solidária, carregam a desafiadora tarefa de coordenar a construção do Projeto Ético0político que imprime direção aos processos da formação e do exercício profissionais no campo do Serviço Social em nosso país.

O fato de ser a última a falar me dá o privilégio de ir aprendendo, agregando, reformulando e, desse modo, fortalecendo minhas próprias idéias, no decorrer das apresentações de cada conferencista. Assim, os temas desenvolvidos, aparentemente díspares em suas especificidades, reforçaram a argumentação que irei desenvolver no debate que vamos aqui estabelecer.

Com isso, foi possível perceber que os temas tratados constituem aspectos de uma mesma realidade, forjada sob determinações sociais que configuram o processo contemporâneo da reprodução social, cuja determinação maior são as atuais condições da valorização do capital. O denominador comum articula e dá sentido a esta Mesa na qual se analisa a saúde, a assistência social, as questões da criança e do adolescente, previdência, ética e educação, refere-se ao caráter das estratégias necessárias para criar as condições que possam restabelecer os padrões de lucratividades do capital. Enredados em seus próprios limites, potencializados pela extensão e durabilidade de uma das mais complexas crises experimentadas pelo capitalismo, os desdobramentos do fenômeno ampliam as necessidades da produção e realização do valor, única forma do capital combater sua imanente tendência de queda da taxa de lucro.

A necessidade de superar ou moderar os efeitos daquela tendência instaura um movimento de contra-tendências no qual, tudo o que pode representar obstáculo à restauração do lucro, deverá ser destruído/recriado ou simplesmente remodelado/atualizado, em função do estabelecimento de outros padrões de sociabilidade e de acumulação capitalista. Mecanismos e práticas sociais consolidados no embate das classes sociais, assegurados pela ideologia e pelo aparato estatal, perdem organicidade, transformam-se e se recriam no movimento desencadeado no enfrentamento da crise contemporânea do capital.


 * A autora preservou a forma da apresentação feita por ocasião do evento comemorativo ao Dia do Assistente Social, realizado na Universidade Federal de Pernambuco, em 15-5-2003.

**Professora do Departamento de Serviço Social da UFPE.

Assim, o que foi construído como coisa pública, no período compreendido entre a crise de 30 e esta que se inicia nos anos 70, conquistado como direito coletivo, patrimônio das classes trabalhadoras, encontra-se, presentemente, em radical processo de re-configuração ou mera supressão. A sociedade vive um momento em que se redefinem as condições da reprodução social sob as quais o trabalho se reestrutura, emergindo em condições de maior subalternidade e conseqüente precarização.

Avalizado e amparado pela ideologia neoliberal que legitima a reforma do Estado destinada, prioritariamente, a ceder o espaço público ao privado e firmar a primazia do mercado, o capital lança mão de tudo o que pode ser mobilizado para produzir taxas adequadas de lucratividade.

Os pressupostos apenas citados indicam o fio condutor da análise das questões que este seminário enfeixa como Situação das Políticas Públicas no Brasil. Passemos aos aspectos que me foram designados: ética e educação, que possuem entre si uma íntima relação no processo da reprodução social.

Não se pode pensar em educação sem uma recorrência à dimensão ética dessa prática social. Do mesmo modo, não dá para falar da ética sem a dimensão educativo-pedagógica que esta implica. Homens e mulheres, como sujeitos de sua autocriação, não nascem humanamente, socialmente, completos. Eles permanecem no mundo como seres em formação e, como tais, são um permanente devir com o próprio mundo. Em tal processo o trabalho tem a centralidade, pela preeminência no ato originário do ser social. E ainda, nesse processo de autocriação do homem pelo trabalho, isto é, de conquista da humanização do ser social, a educação e a ética tornam-se componentes essenciais da construção coletiva e universal que é a História.

Como nos ensina o grande e sempre atual filosofo que formulou a matriz teórica capaz de desvendar os mistérios da sociedade capitalista, sob este modo de organização social, ainda vivemos a pré-história da humanidade. Por isto é preciso especificar qual ética e qual educação falamos para que se entenda que nem a ética, nem a educação, surgiram com o capitalismo e nem com ele irão desaparecer. A educação e a ética como dimensões da práxis humana, são constitutivas do processo da reprodução social e, desse modo, sofrem transformações historicamente determinadas.

Em seus diferentes momentos históricos, a sociedade teve necessidade de uma conduta moral que, por sua vez, supõe uma prática socializadora, organicamente vinculada às relações sociais de produção vigentes. O problema, portanto, não estaria em desenvolver argumentos acerca dessa necessária relação entre ética e educação, nas diferentes formas históricas de organização social, mas temos um desafio contemporâneo que é compreender-lhes o significado, isto é, o tipo de relação que as vincula e as tendências que tal relação assume, no atual momento do capitalismo.

Inicio pela análise da educação e, para ser mais direta, da educação superior e da instituição que a realiza – a universidade. Que ensino, que pesquisa, que extensão, que formação acadêmica estão sendo produzidas? O que o capital em crise está requerendo da universidade? Qual ethos presente na concepção e nas práticas educativas efetivadas pela universidade nesse momento de reorganização do capital para fazer frente aos seus inelimináveis e agora, ainda mais, exacerbados antagonismos? Tenho como referencia o Brasil pós anos 90, na perspectiva da forma subordinada de sua inserção na mundialização do capital.

A universidade, em diferentes países, vive a redefinição de suas relações com a sociedade, o que significa dizer que a própria sociedade se re-configura. A educação superior, de forma generalidade, desloca-se, cada vez mais, do âmbito do Estado para o terreno dos negócios privados transita, a passos largos, do campo dos direitos coletivos para o setor de serviços transacionados como qualquer outra mercadoria.

Como fenômeno, essas transformações na educação e na universidade, têm registro em países centrais e periféricos, de todos os continentes, sendo vasta a literatura que dá conta do problema. O foco das análises nessas diferentes realidades é a crescente mercantilização do ensino e da pesquisa, na universidade. Autores franceses, denunciam A morte da República das Letras por um visível Naufrágio da Universidade. Na Inglaterra, Itália, Estados Unidos, encontram-se movimentos críticos e de resistência aos vínculos, cada vez mais estreitos, observados entre as atividades acadêmicas e os interesses mercantis. Nesse último país, a questão é considerada uma autêntica “vampirização mercantil”.

Na América Latina, segundo dados do Banco Mundial, o Brasil é o único país a não ter completado o processo de privatização do ensino superior público, realizado pelo Chile, durante o golpe militar. Contudo, tal processo se encontra aqui em estágio bastante avançado. O censo realizado pelo MEC, em 2000, demonstrava que 85% das instituições de ensino superior, existentes no país, eram privadas. Em 2001, um milhão e duzentos mil novos alunos ingressaram na educação superior, dos quais, 92% foram para o ensino privado e somente 8% para as instituições públicas. No ano de 2002, esse número alcançou o teto de três milhões de estudantes e desses, mais de dois milhões foram para instituições privadas. O mesmo ano registra, pela primeira vez no Brasil, que das 20 maiores universidades em número de alunos, as duas primeiras posições passam a ser ocupadas por universidades privadas (UNIP e Estácio de Sá). Até 2001, esses lugares eram da USP e da UFRJ, respectivamente. Nesses últimos oitos anos, o negócio da educação superior é o que mais se tem expandido no país, sendo autorizadas pelo Conselho Nacional de Educação. E se o ensino superior transforma-se numa mercadoria, a universidade torna-se a empresa que vende esse serviço que mundialmente se afigura um dos mais promissores, em função da garantida lucratividade.

O negócio da educação superior, tornou-se um dos ramos mais disputados nos mercados internacional e nacional, movimentando uma imensa soma de dinheiro alimentada por dois vetores: o dos investimentos que o setor recebe e que variam entre 5% e 7% do PIB dos países desenvolvidos e, entre 3% e 4% nos países em desenvolvimento; o da venda dos serviços educacionais pelos quais as camadas mais pobres da população devem pagar para ter acesso. E apesar dos índices de inadimplência e ociosidade se revelarem elevadíssimos, no Brasil as empresas da educação já encontraram meios de se defender, articulando-se com o capital financeiro. Existem bancos especializados em oferecer serviços ao setor da educação privada, nos diferentes níveis – infantil, fundamental, médio e superior. Dentre esses serviços, destacam-se: o crédito educativo aos estudantes que não podem financiar sua própria formação e os empréstimos aos empresários da educação para investimento nas suas organizações, mediante a transferência da cobrança das mensalidades ao banco que realiza o empréstimo que, desta forma, tem a sólida garantia da remuneração do seu capital.

Quando a OMC foi criada, em 1955, como uma espécie de governo do mercado mundial, um dos primeiros itens da agenda negociada com os 140 países signatários (e o Brasil é um deles), foi precisamente a educação. Na OMC existem propostas de 4 países (EEUU, Japão, Austrália e Nova Zelândia) para comercializar livremente, serviços de ensino a todos os níveis, em qualquer país. Na pauta de exportação daqueles países, a educação figura como um dos itens principais. A comercialização deve ser feita como qualquer outra mercadoria: à base de join venture, franschaising, acordos, parcerias e, diretamente, abrindo sucursais e, mesmo, virtualmente, como educação à distância, oferta já bastante comum nas páginas de anúncios dos jornais de grande circulação no país. Como todos sabem, a função da OMC é, precisamente, derrubar todo e qualquer tipo de barreira que impeça a livre circulação das mercadorias, e, dentre estas, a educação.

Para o Banco Mundial e o FMI, o ajuste estrutural dos países periféricos coloca a privatização do conjunto das políticas sociais públicas, como finalidade prioritária. No caso do Brasil, em diferentes governos, tem se verificado não só o acatamento dessas diretrizes, como tem sido notório o adesismo governamental na sua efetivação. Assim, os mecanismos do processo de privatização têm sido implementados no país e se mais não se efetivaram, deve-se à resistência de alguns setores da sociedade civil organizada.

O crescente corte de recursos e os remanejamentos orçamentários têm deixado à míngua as instituições de ensino superior gratuito. Assediada pelo mercado, a universidade pública, no Brasil, afasta-se da possibilidade de vir a ser um lugar de ensino e de pesquisa voltado aos interesses maiores do país, na medida em que se torna palco de empresariamento de negócios e mercantilização de serviços. Para isso, a instituição se comporta empresarialmente, comercializando funções, atividades e espaços acadêmicos, como os hospitais universitários, auditórios, cursos de pós-graduação, cursos seqüenciais, pesquisas, assessorias, com o intuito da obtenção de recursos que suplementam o parco orçamento.

Não só no Brasil a instituição universitária que, desde seus primórdios, lutou por autonomia, condição de preservar objetivos primacialmente acadêmicos, subsume-se às relações comerciais, perfilhando-se às Universidades Corporativas criadas dentro das próprias empresas.

E como este constitui o modelo que mais se aproxima daquele proposto para o setor, pelo Banco Mundial, reproduzido na Reforma do Estado no Brasil, encampado pela LDB/96, almejado por autoridades e gestores governamentais, no país, vale uma pequena digressão, mesmo precariamente sintetizada, acerca do que são essas entidades.

Nos EEUU, em 1997, existiam mais de 1800 organizações desse tipo, com previsão para em 2010 triplicar esse número. Existem pesquisas sobre as 100 maiores Universidade Corporativas do mundo, com suas respectivas funções e especificidades. O traço comum entre elas é operarem como centros de negócios, gerando lucros como a General Eletric, a Motorola, a Mc. Donald com sua Universidade do Hambúrguer, têm nas Universidades Corporativas a oportunidade de matar vários coelhos com uma única cajadada. Elas capacitam seu próprio pessoal (o que é considerado uma vantagem pois a capacitação se faz com “o pessoal na própria mesa de trabalho”, além de garantir vinculação efetiva e imediata aos negócios que realizam e às necessidades mais amplas da empresa; estendem a capacitação aos participantes da cadeia de valor, constituída pelos revendedores, distribuidores, atacadistas, fornecedores, clientes, sindicalistas e pela comunidade; desenvolvem suas próprias pesquisas, sendo esta uma das vantagens decantadas, considerando a segurança em relação ao direito de propriedade que garante a patente, ao sigilo que cerca as inovações tecnológicas na guerra concorrencial em que vivem mergulhadas essas corporações e, por fim, tais universidades colocam no mercado serviços educacionais como qualquer outro ramo de produtos da empresa. Para os defensores desse tipo de organização, o grande diferencial entre esse “moderno” modelo de universidade e o modelo, digamos, histórico, é que este desenvolve uma estratégia tradicional centrada em custos, orçamentos e, pasmem: dedicada a educar pessoas. Aquele, uma estratégia competitiva, “centro de lucros”, com objetivos de continuamente desenvolver um aprendizado adequado às mudanças e à competitividade, priorizando os negócios da empresa, aperfeiçoando sua performance perante a comunidade e de resto, desenvolvendo o ideário da adesão e do consentimento, traduzido por especialistas em Gestão de Recursos Humanos, como “desenvolvimento do compromisso social entre colaboradores e empresa”.

Para nós, no Brasil, que ainda não rompemos com o modelo de universidade oligárquica, autoritária e elitista, o que pode significar sobrepor-lhe essa concepção empresarial e seus objetivos de lucratividade? Pensar as consequências dessa nova configuração da universidade, induz a perguntar o que foi que empurrou tão violentamente, a universidade (e não apenas as públicas), para o terreno da mercadorização? Por certo, essa realidade não se constitui espontaneamente, mas como outros processos e relações sociais, trata-se de uma produção histórica. Contudo, no tempo que ainda disponho, do complexo de determinações sociais que respondem pelo movimento que detonou o generalizado processo de privatização da educação superior e conseqüente avanço no empresariamento da instituição que a realiza, pontuo apenas, o que se coloca como central para o entendimento da raiz da questão.

Em primeiríssimo lugar, deve ser mencionado o impulso expansivo do capital, lei do capitalismo, necessária à própria constituição da classe burguesa que para existir e reproduzir-se deveu alastrar-se por toda a parte, enraizar-se, avançar e expandir o capital por territórios, campos, setores, áreas, ramos ainda não mercantilizados. Buscar mercados cada vez mais amplos e diversificados; revolucionar, continuamente, a base material da existência social e com ela, as relações sociais, idéias e concepções de mundo, disseminando as que são próprias de sua classe para todos os demais segmentos da outra classe social, em âmbito mundial. Na realidade, trata-se de um processo de produção de hegemonia, pois quanto mais se espraiam a produção de mercadorias e as relações mercantis; quanto mais se uniformizam as relações sociais e os meios de vida, isto é, a sociabilidade dos povos, tanto mais se efetiva, amplia-se e se consolida a classe burguesa. Embora seja uma tendência não elidível do capital, cedo ou tardiamente, a depender das condições em que opera a luta entre as classes sociais fundamentais, expandir-se por todos os lugares, transformar todas as coisas em mercadoria, é necessário, além de obter adesão e consentimento para consolidar-se e tornar-se hegemônico.

Para entender essa Lei pode-se ir ao Manifesto Comunista, de Marx e Engels, no qual os autores não poderiam ser mais claros e didáticos na fundamentação da natureza expansionista do capital. A leitura desses autores e de seus precursores permite hoje compreender que a suposta inexorabilidade do processo de globalização, que teóricos e defensores do neoliberalismo apresentam ao mundo como única possibilidade de resolver as questões socais contemporâneas, advém da própria lógica do capital e não de uma suposta sociedade do conhecimento, originária do progresso técnico. Assim sendo, longe da burguesia acena para obter adesão e consentimento das classes trabalhadoras ao projeto de sua renovada continuidade, o que a mundialização do capital tem feito é aprofundar material, ética e politicamente, os antagonismos entre o capitalismo e as necessidades sociais postas pela reprodução humana na história. Processo este necessária e objetivamente ocultado pela burguesia. Ela – a burguesia – não menciona que, no estágio atual do desenvolvimento capitalista, a figura do capital-dinheiro trans-nacionalizado subsume as demais figuras do capital: o trabalho, o Estado e as práticas das classes sociais, dissimulando assim a natureza e as tendências das transformações que a crise opera, sobretudo, no campo estratégico dos direitos sociais, dentre os quais destaca-se a educação.

Articulada a essa ordem de causalidade, está a crise (contemporânea) do capital, desencadeada em 73 e ainda em pleno curso, com a especificidade de ser esta a de mais amplo espectro já registrada na história do capitalismo. Diferentes analistas concordam em que, desta vez, nos deparamos com uma crise que além de atingir os fundamentos do capital seria, também, crise política, ética e cultural, supondo rupturas e continuidades que afetam o modo de viver e reproduzir-se em todos os âmbitos e esferas da existência social. Esse enfrentamento, até mesmo porque a implacável tendência expansiva do capital potencializa-se no contexto das crises que ciclicamente acometem o capitalismo.

E como, também, o célebre filósofo mencionado formulou, a crise é, igualmente, uma lei do modo capitalista de organização social. Por si mesma, ela é reveladora de que a lógica do capital é uma ameaça para o capital, não sendo essa uma mera tautologia, em face da ineliminável tendência da queda progressiva da taxa de lucro pelo desenvolvimento da força produtiva do trabalho social, isto é, sob o jugo do capital, quanto mais se desenvolvem o conhecimento, a capacidade e destreza humanas em lidar cooperativamente com os processos de trabalho, com a ciência, a tecnologia e os recursos da natureza, ou seja, quanto mais a sociedade avança na capacidade de produzir riqueza material e cultural, ou ainda, quanto mais desenvolve suas potencialidades civilizatórias, menos lucro os proprietários do capital tendem a auferir. E a necessidade de desembaraçar-se dos limites que essa tendência impõe, desencadeia entre os capitalistas uma concorrência brutal na corrida pelos processos de inovação técnica, tanto na base física da produção, reestruturando os processos de trabalho, quanto nas modalidades de uso e o controle da força de trabalho. Trata-se de desenvolver mecanismos e processos que reconduziram o capital ao leito da valorização, fazendo irromper o movimento destinado a contrariar a lei tendencial da queda da taxa de lucro.

O movimento de contra-tendência, por sua vez, demonstra que, apenas através de reestruturação produtiva, traduzida em inovação tecnológica e modos flexíveis de gestão e consumo da força de trabalho, não seria possível instaurar outro padrão de sociabilidade e de lucratividade. É necessário gestar não somente uma outra forma de organização do trabalho e da produção material capaz de obter maiores taxas de mais-valia, como se sabe, exclusivo meio pelo qual o capital se valoriza. É necessário, também, instituir outra sociabilidade, uma outra maneira de perceber, sentir e situar-se no mundo, considerando a produção de outras condições de reprodução social. Ambos os processos, constitutivos do mesmo movimento, necessitam, por sua vez, tornar-se hegemônicos. Verdadeiro processo de socialização da sociedade, para produzir, como diria Gramsci, um novo homem para um novo tipo de sociedade, contemporaneamente, a do capitalismo re-atualizado. E essa é uma tarefa que o capital, sozinho, não pode realizar, necessitando amparar-se no Estado e na ideologia, conformados às novas necessidades do processo de valorização. Esse movimento, atravessado pelas lutas de classes e que articula as estratégias destinadas a atenuar, retardar ou suprimir os efeitos da crise, determina o que, no atual contexto, redefine o trabalho, o Estado, suas instituições e suas práticas, isto é, redefine a composição e dinâmica das classes sociais.

Compreendida essa totalidade, defendo o pressuposto de que o processo de constituição da sociabilidade requerida pelo movimento que o capital desencadeia e articula para sair de sua própria e atual crise, seria subjacente às transformações porque passa a universidade, no Brasil (e,também no mundo) nessas duas últimas décadas. Com isso, estou considerando que a universidade é uma instituição estratégica nas funções de efetivação desse novo/velho processo de socialização da sociedade demandando pelo atual momento do capital.

Nesse complexo de determinações que respondem pelas transformações que re-configuram institucionalmente a universidade no Brasil, coloca-se também a reforma do Estado no interior da qual essa re-configuração se processa. De cunho neoliberal, o caráter gerencial da reforma do Estado define o “tipo” e a direção da reforma setorial da educação e nesta, da educação superior. Seu principal traço é, sem dúvida, a desobrigação do Estado com este nível educacional, impelindo-o, dessa forma, como as demais políticas sociais públicas, para o terreno mercadológico. Mecanismo que, na particularidade da educação, qualifico como indispensável ao processo de constituição dessa outra sociabilidade que o capital necessita. Porém, de que sociabilidade se trata? Quais os seus traços definidores? Quais os parâmetros éticos desse outro ideário social e em que direção ele se instituiu?

A análise dessas questões torna-se imprescindível na configuração do caráter e das tendências das novas mediações que vinculam a universidade à sociedade. Na base do novo padrão societário, encontra-se a necessidade de: por um lado, produzir as condições de inserção competitiva do país no mundo globalizado e por outro, obter consentimento e adesão ao projeto de hegemonia da burguesia nacional, articulado ao capital internacional. E, não esqueçamos, todo esse processo ocorrendo num contexto de ofensiva neoliberal voltada para algo mais abrangente e profundo: produzir e reproduzir a Ordem, pela primeira vez, verdadeiramente, mundializada, do capital. Essa necessidade, apresentada nos textos oficiais como Competitividade e Cidadania, é debitada à educação, considerada, em todos os quadrantes, não só no Brasil, o único e indispensável recurso para o enfrentamento da questão. Formar para o exercício da cidadania e incremento da competitividade, isto é, produzir cidadãos competitivos, está no cerne das diretrizes das agências multilaterais quanto aos objetivos de massificação e elevação do patamar educacional da população dos chamados países emergentes. A inovação tecnológica, a capacidade produtiva, a qualidade total, os novos padrões de consumo, enfim, tudo o que pode garantir condições de competitividade nas relações comerciais e políticas, bem como, a formação das consciências, hábitos e valores que favoreçam a construção de consensos, dizem, depende da educação. A coesão social, a redução da pobreza, a paz e harmonia entre os povos, raças e etnias, gêneros e gerações, fazem parte da concepção de cidadania que somente a educação teria o dom de propiciar, sendo a mola mestra do processo civilizatório e limite do desenvolvimento. Essa visão “salvacionista” da educação, adotada a partir dos anos 90, pelo Banco Mundial, encontrada também, nas propostas da UNESCO para o século XXI, merece alguns questionamentos. Um deles, é que essa concepção redentora da educação adquire tal veemência, justamente no momento em que, por imposição do FMI e do Banco Mundial, segundo diretrizes do Consenso de Washington, o setor deixa de ser prioritário no orçamento governamental de diferentes países, negado como direito assegurado pelo Estado, transformando-se em prestação de serviço parametrado pela lógica mercantil. Outro, é que esta centralidade da educação no discurso oficial, coincide com a necessidade coletiva de qualificação decorrente, por um lado, da elevação do padrão tecnológico da sociedade e por outro, do fenômeno da desvalorização da força de trabalho que a acompanha. Tudo isso, num cenário de desemprego estrutural e acirrada competição pelo trabalho. Todas essas “felizes” coincidências que reforçam a idéia da educação como apanágio para todos os males, acontecem ao mesmo tempo em que é explicita sua maior subordinação ao capital. Qual relação poder-se-ia estabelecer então entre esta concepção apologética da educação e sua mercantilização? Por que não é feita alusão ao obstáculo estrutural a esse projeto de “salvação global” via educação, que o desemprego representa? Para onde leva a formação profissional num contexto de precarização do trabalho e de escassez do trabalho assalariado? Não seria sem motivo que a ideologia do empreendedorismo toma conta da universidade e esta passa a disseminá-la como “forma moderna” de ganhar a vida.

Alçado ao status de disciplina, o ensino do empreendedorismo tem por objetivo preparar o estudante para “criar o plano de negócio” que deverá “vender” às empresas ou ele mesmo desenvolver, ao deixar a universidade. Foi cunhado o epíteto Sindrômico, para aqueles que vão para a universidade com a pretensão de emprego na vida profissional. Aspiração esta que não passaria de uma síndrome do funcionário e da estabilidade. Nas atuais necessidades da acumulação do capital, o empreendedorismo como nova cultura, (apesar da proposta ser por demais antiga, pois remonta aos anos 40 quando foi idealizada por Joseph Shumpeter), é apresentado como “um estado de espírito”, “uma paixão” e uma qualidade, de que os estudantes devem ficar impregnados durante sua permanência na universidade. Como dizem autores e instrutores de empreendedorismo, é este “o perfil que a sociedade requer”. Traduzida como associação, num mesmo indivíduo, de inovação tecnológica + competitividade + vivência do ciclo de reprodução da mercadoria: a capacidade empreendedora é qualidade rara no mercado. Diferente da capacidade técnica, existente em abundância em todos os lugares.

A capacidade de empreender torna-se, desse modo, a qualidade privilegiada do novo perfil que as empresas demandam. Por esse atributo, o cidadão e sua força de trabalho passam a ser avaliados e distinguidos no mercado. Com ele, os recém-formados ingressam no mundo dos negócios, depois de terem realizado como estudantes, seus processo as de aprendizagem empresarial.

Nessa lógica, o ensino e a pesquisa têm, como horizonte, o empreendimento que cada aluno ou grupo de alunos, vai “aprender a estruturar” no curso da sua formação acadêmico-profissional. Nesse processo, os docentes são considerados agentes privilegiados na disseminação da sociabilidade empreendedora, pelo “poder que detêm de mudar a vida do aluno”, desde que transformem a sala de aula e, melhor, “todo curso”, em “oficina de aprendizagem do empreendedorismo”. É interessante perceber que tal ideologia surge ao mesmo tempo em passam a desaparecer as fronteiras entre a universidade e as empresas. E essa nova feição que a universidade assume, será determinante do que ela se realiza como ensino, pesquisa e extensão. A natureza deste tripé que caracteriza a instituição universitária, não só estaria ameaçada, como adquire um caráter danoso, do ponto de vista da reiteração do histórico caráter oligárquico e excludente do ensino superior no país.

A atividade de extensão, prática de ensino mediante a prestação de serviços à comunidade, descaracteriza-se pela venda de serviços, tornando difícil distinguir-se uma atividade da outra, abrindo caminho para a mercantilização que vai se insinuando, tornando-se natural, generalizada, legitimada, indispensável e irreversível.

A pesquisa, a mais mercadorizada das atividades acadêmicas, pelos fins lucrativos de que se reveste, cada vez mais se desconfigura como atividade autônoma articulada ao ensino e à extensão, imprescindível à qualificação da formação profissional e às estratégias de emancipação econômica e política do país. No processo de privatização do ensino superior, a pesquisa aplicada, de retorno imediato, torna-se determinante na vida da universidade, em detrimento da pesquisa básica, da produção de conhecimento e cultura. A universidade , não apenas cede seus pesquisadores, laboratórios e infra-estrutura para a incubação e desenvolvimento de empresas dentro de seus muros. Ela mesma, torna-se lugar para a prática dos negócios mercantis, de onde emergem as figuras do professor-empresário (executivo nas inúmeras ONGs e fundações que proliferam nos campos universitários, acionistas, proprietários ou sócios das empresas gestadas na instituição e para as práticas de outras formas de proveito financeiro das atividades acadêmicas desenvolvidas com finalidades comerciais) e também para a prática do aluno-trabalhador que passa a suprir a carência de servidores administrativos para o funcionamento da universidade.

Como processo, essa práticas seriam facilitadas, por um lado, pelos crescentes cortes e re-direcionamentos dos recursos destinados ao sistema público da educação, expressando o caráter da reforma do Estado que o desonera das políticas públicas e por outro lado, pelos oito anos sem reposição salarial para os servidores públicos federais e pelo evidente empobrecimento da maioria dos estudantes e de resto, da população brasileira.

A nova conformação das práticas acadêmicas inflexiona o ensino, sobre o qual recaem, diretamente, os efeitos dessa transfiguração institucional da universidade. Para viabilizá-lo nesses novos parâmetros, diferentes mecanismos têm sido introduzidos, seguindo as diretrizes do Banco Mundial, dos quais vou mencionar apenas, a diferenciação e diversificação dos tipos de instituição universitária.

A criação de novos tipos de instituição de ensino superior – centros universitários, faculdades integradas e estabelecimentos isolados, embora estes últimos já existissem no país, porém com outras características, antes de tudo, contribui para a legalização da ruptura da indissociabilidade entre ensino, pesquisa, e a extensão, além da proliferação de estabelecimentos privados não-universitários com finalidade empresarial. Com essa estrutura, oficializa-se a existência de dois tipos de ensino superior: ensino pleno, oferecido pelas universidades que associam formação e produção de conhecimento, e ensino parcializado, segmentado e focal, expressando e aprofundando as desigualdades de classes, instituindo um novo tipo de exclusão social: a dos diplomados, emprestando assim, outra configuração ao fenômeno até então comum aos iletrados.

Corroborando essa realidade, o papel do currículo é indiscutivelmente estratégico. Flexibilizado e aligeirado, este passa a ser pautado pelo novo padrão de relações entre o capital e o trabalho viabilizando o processo de socialização das gerações que poderiam viabilizar as condições da acumulação capitalista. O que nos coloca diante da maior de todas as questões: quais sujeitos sociais a universidade estaria estrategicamente ajudando a construir? Seriam meros “aprendizes de capitalista”, os futuros constituidores da sociedade brasileira?

O que temos diante de nós, é a lógica mercantil subsumindo o trabalho acadêmico, disseminando a racionalidade empresarial, apagando as classes sociais com a pretensão ideológica de que todos ajam como patrão, sufocando a dimensão crítica, humanista e emancipatória da formação acadêmico-profissional.

Para concluir: não seria, apenas, para funcionar como mercadoria, que a educação superior e a universalidade – a empresa que transaciona essa mercadoria – adquire outra feição. A universidade tem uma missão e esta não foi removida, foi apenas transformada para atender à constituição da sociabilidade requerida pelas atuais condições da reprodução social. O que não representa uma iniciativa unilateral da universidade. Como instituição social, ela exprime e desenvolve suas ações tal como requerido pelo conjunto da sociedade nos diferentes momentos históricos, o que necessariamente inclui a presença das classes sociais e suas lutas. Se a eqüidistância entre a universidade e o mercado deixa de ser nítida, é porque o ethos mercantil que subsume a vida social, na etapa atual do desenvolvimento do capitalismo, recobre o conjunto das práticas sociais. Como instituição, a universidade é parte da sociedade na qual existe, portanto, esse feitio que ela adquire, revela apenas, o momento atual do capitalismo, não se tratando de um fenômeno particular da instituição mas de um processo que recobre a sociedade. Diante disso, o desafio que se coloca até pode parecer novo, mas se afigura o de sempre que é a relação social que o capital encarna. Esta sim, deve constituir o nosso ponto de ataque.

Por fim, chegamos ao ponto onde teria sentido questionar a ética e sua relação com a educação sob as determinações aqui esboçadas. Foi necessário esse caminho do pensamento, orientado pela reflexão crítica, para chegar às condições de questionar o significado da ética e de sua relação com a educação neste momento da sociedade brasileira.

Nesta perspectiva, o nosso Código de Ética Profissional que está completando 10 anos, apresenta-se como um eficaz instrumento para contribuir no aclaramento dessa relação. Rico de subsídios em seus princípios, sua matriz teórico-política induz ao estudo, à pesquisa e à orientação da prática profissional, mantendo a categoria vigilante de sua prática.  O nosso é um Código de Ética que toma partido por um projeto de sociedade, é interessado, indica uma direção, carrega uma utopia e convoca a categoria e as demais categorias de trabalhadores ao engajamento na construção de uma nova sociedade onde a vida não seja pautada pelo ciclo de ferro da valorização do capital.

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Violência contra mulheres e esfera familiar: uma questão de gênero?*


 

Miriam de Oliveira Inácio**

Qualquer interpretação sobre a problemática da violência contra as mulheres passa obrigatoriamente pela definição sobre o que venha a ser violência e a apreensão de suas feições peculiares, isto é, sua ocorrência predominante no espaço doméstico, no âmbito das relações afetivo-sexuais entre homens e mulheres, relações essas marcadas pelas desigualdades de poder entre os gêneros masculino e feminino.

A tarefa de conceituar violência abriga inúmeros desafios. Desde a percepção da violência como fato natural e inquestionável (Arendt, 1985; Costa, 1986) até a elasticidade de seu significado etimológico (Zaluar, 1999), com o perigo de cairmos numa armadilha relativista, na qual cada um define para si o que pode ser considerado violência ou não-violência.

Zaluar (1999:08) a considera com um significado polifônico, desde a origem etimológica do termo. A palavra violência vem latim violentia, que remete a vis, termo que, originariamente, não tem um sentido pejorativo, muito mais associado à força, energia, vigor, emprego de força física, rigor, dureza, ferocidade. Essa força torna-se violência, no entanto, quando seu uso ultrapassa os limites estabelecidos pela velocidade, ou seja, quando essa força perde sua legitimidade, perturba acordos e regras morais que ordenam as relações ou se torna um fim em si mesma – o uso da força pela força. A violência varia, portanto, cultural e historicamente, ou seja, é situada. E daí, suas diferentes acepções.

Se recorremos às palavras violatio, onis, violo e are, que estão associadas ao termo violentia, veremos, porém, que o termo revela um sentido negativo e maléfico, indesejável. As palavras violatio e onis significam dano, prejuízo, profanação, violação, perfídia e as palavras violo e are indicam fazer violência à, maltratar, danificardevastar, desonrar, transgredir, infringir, ferir, lesar, ofender, macular.

 


 * Este artigo é parte da dissertação de mestrado intitulada “Serviço Social e Violência de Gênero: Ethos e Ação Ético-Política nas Delegacias da Mulher”, defendida em 30 de agosto de 2003, no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Agradeço à professora Drª Maria Alexandra Da S. M. Mustafá pela importante orientação na elaboração da dissertação e à professora Drª Anita Aline de Albuquerque pela valiosa colaboração na condução de todo trabalho.

** Assistente Social, Mestre em Serviço Social, professora do Curso de Serviço Social, da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão – FACEX, do Rio Grande do Norte, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética – GEPE, da UFPE e membro do Conselho Regional de Serviço Social – CRESS, 4º Região/RN.

Para o senso comum, a violência é tomada como sinônimo de uso agressivo da força física para obrigar alguém a fazer algo contra a sua vontade ou até maltratar alguém como forma de punição por uma conduta socialmente reprovada. No entanto, uma visão ampla do significado da violência sugere que ela permeia todo ordenamento social, no âmbito das relações pessoais e institucionais. Inscreve-se nas relações sociais de classe, gênero, etnia e geração. As discriminações, desigualdades e antagonismos de classe, raça/etnia, gênero e geração caracterizam uma violência estrutural que atinge a imensa maioria da população pauperizada e as minorias sexuais, étnicas e etárias. Conforme salienta Kelkar (1984):

 

Um conceito estreito de violência pode sugerir um ato ilegal, uso criminal da força, mas de forma ampla inclui também a exploração, a discriminação e a manutenção de uma estrutura econômica e social desigual, a criação de uma atmosfera de terror e ameaça, e outras formas de violência política (apud Camargo, 1998:122).

Mas a violência e agressividade não têm o mesmo significado, nem são próprios de um sexo. Enquanto a agressividade pertence ao mundo animal e instintivo, a violência possui uma natureza social, cultural e humana. Conforme Arendt (1985), a violência não é animalesca nem irracional, pois ódio e violência não são reações automáticas ao sofrimento. Ao contrário, elas surgem da razão, que procede a tipificação de uma situação como violência ou não-violência.

Para Costa1, a agressividade não é necessariamente negativa, ela pode ser considerada positiva quando não se transforma em violência, ou seja, quando não há um desejo humano de maltratar o outro: “… não existe violência sem desejo de destruição, comandando a ação agressiva e, em conseqüência, que violência não é uma propriedade do instinto” (1986:33).

Esta distinção é imprescindível à desnaturalização da violência contra as mulheres, comumente justificada por uma incontrolável agressividade masculina, até mesmo nos tribunais de justiça, que utilizam a tese do descontrole emocional para inocentar os assassinos de suas ex-esposas, ex-namoradas e ex-amantes.

Como fenômeno histórico, cultural e humano, a violência remete à percepção de um ato que é codificado como tal, sob determinação dos valores e da visão de mundo dos sujeitos construídos socialmente.


 1 Em sua crítica ao tratamento dado pela psicanálise à questão da violência, Costa (1986) admite o progresso da visão de Freud, que inicialmente a percebia como agressividade, depois como instrumento para arbitrar conflitos e instaurar a lei, para finalmente apreendê-la como algo domesticável pela ação da civilização, inclusive para a construção da paz. Para Freud, não existe um instinto de violência, mas um instinto agressivo que pode coexistir com a possibilidade do homem desejar a paz ou empregar a guerra.

Comporta uma dimensão simbólica, responsável pelas medidas de repressão e, também, pela tolerância, convivência e impunidade que se observa em relação à criminalidade. Em particular, no que se refere aos crimes praticados contra a mulher na esfera familiar, esta dimensão simbólica é construída pelo ordenamento de gênero tradicional, nas quais se legitimam várias formas de opressão feminina.

Costa (1986) argumenta que é a partir do julgamento moral do individuo que um gesto será qualificado como violência. Por exemplo, atitudes de indiferença, agressão verbal (calúnia, injúria e difamação) ou até uma agressão física deixarão de ser interpretadas como violência, se o sujeito que sofre a ação não perceber o desejo de destruição na prática do agressor.

Violência é o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos. (…) só existe violência no contexto da interação humana, onde a agressividade é instrumento de um desejo de destruição. Quando a ação agressiva é pura expressão do instinto ou quando não exprime um desejo de destruição, não é traduzida nem pelo sujeito nem pelo agente, nem pelo observador como uma ação violenta. (…), pois o animal não deseja, o animal necessita (Costa, 1986:30)

Dessa forma, a violência pode assumir uma conotação positiva quando a mulher, resguardando sua integração a ordem tradicional de gênero2, cede à agressão do companheiro para resguardar o “valor” de mulher vítima, submissa, sofredora e frágil que alimenta a crença de que “pancada de amor não dói”. O sujeito sente “… prazer de assegurar a posse dos predicados socialmente valorizados pela cultura. Estes predicados compõem o sentimento de identidade do sujeito, que é tanto mais forte quanto mais se aproxima do tipo psicológico ideal, culturalmente produzido” (Costa, 1986:33)

Os esquemas de valores, costumes e práticas que legitimam a violência respondem pela noção naturalizada sobre a submissão da mulher. A violência assume uma dimensão simbólica na medida em que traduz para o sendo comum um padrão dominante de valores, costumes e práticas que ocultam os processos de dominação e naturalizam as desigualdades. Como dimensão simbólica, a violência está associada ao poder, uma vez que todo poder comporta uma dimensão simbólica, ou seja, obtém a adesão inconsciente e a crítica dos dominados (Bourdieu, 1995). Nesse sentido, a legitimação da violência está associada à idéia de poder de dominação de um indivíduo ou grupo sobre outro. Ainda que pese nossas discordâncias às idéias de Bordieu (1995), seu conceito de violência simbólica é bastante elucidativo:

 


 2 A participação de homens e mulheres na manutenção da relação violenta ocorre para resguardar os papéis de gênero tradicionais, suscitando a interiorização da violência como algo positivo. Sobre esta análise ver a produção de Gregori (1993), Brandão (1998) e Saffioti (1997).

A violência simbólica institui-se por meio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominador (logo, à dominação), uma vez que ele não dispõe, para pensá-lo ou pensar a si próprio, ou melhor, para pensar relação com ele, senão de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo a forma incorporada da relação de dominação, mostram esta relação como natural; ou, em outros termos, que os esquemas que ele mobiliza para se perceber e avaliar o dominador são o produto da incorporação de classificações, assim naturalizadas, das quais seu ser social é o produto (1995:41).

No pensamento de Arendt3 (1985), a violência é uma manifestação do poder, tendo um caráter instrumental e estando a ele subordinado, pois necessita de uma base de justificação no poder constituído: “tudo depende do poder por detrás da violência” (1985:26). Para ela, o poder, pelo fato de pertencer ao grupo, não precisa de justificativas, mas da própria legitimidade da sociedade. Por isso, na sua definição há uma supremacia do poder sobre a violência:

Mesmo a dominação mais despótica de que temos conhecimento, o domínio do senhor sobre os escravos (…) não repousava em instrumentos de coerção superiores como tais, mas em uma organização do poder mais aperfeiçoada – isto é, na solidariedade organizada dos senhores. Homens isolados sem outros que os apóiem nunca têm poder suficiente para fazer uso da violência de maneira bem-sucedida. Assim, nas questões internas, a violência funciona como o último recurso do poder contra os criminosos e rebeldes – isto é, contra indivíduos isolados que pode-se dizer, recusam-se a ser dominados pelo consenso da maioria (Arendt, 1985:27).

Como a violência é vista como o último recurso do poder para manter a estrutura vigente, a autora conclui que a violência é fruto da impotência. Em outras palavras, a violência é um recurso fundamental para aqueles que estão ameaçados de perder o seu poder.

Diz-se freqüentemente que a impotência gera a violência, o que psicologicamente é verdadeiro, pelo menos quanto às pessoas possuidoras de vigor natural, moral ou fisicamente. Politicamente falando, a questão é que a perda do poder torna-se uma tentação em substituir o poder pela violência… (Arendt, 19/85: 29-30).

 


3 Vale salientar que a1ª edição de sua obra Da violência data de 1970. Apesar de privilegiar uma análise sobre a violência nos domínios da política, a autora aborda alguns aspectos da violência no âmbito das relações pessoais e de parentesco.

A idéia de Arendt de que “a violência é a expressão da impotência” foi desenvolvida numa abordagem feminista que articula o processo de exploração que atinge a maioria dos homens no interior das relações sociais, e que para compensar o massacre de que são vítimas nesse ordenamento social, os homens procuram resolver seu sentimento de impotência demonstrando poder nas relações de gênero, praticando atos de violência contra mulheres e crianças4.

Entretanto, temos que fazer uma ressalva a idéia de Arendt a respeito dessa sua afirmação de que a violência seja o último recurso para manutenção de qualquer forma de poder. Os estudos sobre a problemática da violência doméstica praticada contra a mulher têm revelado que ocorre uma rotinização e cronificação da violência no cotidiano familiar, funcionando como um recurso auxiliar e permanente, e não o último, na legitimação do poder patriarcal. Melhor seria afirmar que, em face de qualquer ameaça ao poder masculino ou a ordem de gênero dominante, a violência (seja ela física, sexual ou emocional), se apresenta como um instrumento, muitas vezes o primeiro, de manutenção da subordinação feminina.

A rigor, a violência de gênero constitui uma relevante componente do poder masculino, já que se revela eficiente na normatização das relações entre homens e entre adultos e crianças. Neste sentido, poder-se-ia afirmar, invertendo o raciocínio, que a violência [não é o último recurso do poder, mas] se exprime através das relações de poder. WelzerLang vai ainda mais longe, afirmando que ‘a violência é o primeiro modo de regulação das relações sociais entre sexos na sociedade francesa contemporânea’ (apud Saffioti, 1997:166).

O formalismo de Arendt (1985) foi criticado por Costa5 (1986:52), para quem o poder só existe quando exercido. Para o autor, fora desta condição não existe poder. E, uma vez que o poder instrumentalizado sempre exprime os interesses de dominação, todo poder é violento. Não há poder sem violência. Se as normas e regras de uma dada cultura são organizadas pelo poder dominante, fundado num conselho ilusório, e como todo poder repousa, em última instância, na violência, é a violência que funda a ordem sócio-cultural (Costa, 1986).

As agressões perpetradas contra as mulheres auxiliam na manutenção da ordem de gênero dominante e igualmente encontram justificativas na legitimidade social do poder patriarcal, pois que é expressão de um consenso criado em torno de valores e hábitos nos quais se gestam a submissão feminina.

 


4 “… Os atos de violência são executados, em grande parte, por aqueles que tentam estabelecer seu amor-próprio, defender sua imagem e demonstrar que também são indivíduos significativos (…) a violência assenta na exploração…” (May, 1981: 20/27 apud Saffioti & Almeida, 1995:43/45).

Para Chauí (1985:35), o exercício da violência também visa a manutenção da relação de dominação, mas com uma das partes anulada, submetida à vontade da outra e não totalmente destruída, no qual o sujeito violentado caracteriza-se pela inércia, passividade e silêncio, donde não há possibilidade de luta.

A violência deseja a sujeição consentida ou a supressão mediatizada pela vontade do outro que consente em ser suprimido na sua diferença. Assim, a violência perfeita é aquela que obtém a interiorização da vontade e da ação alheias pela vontade e pela ação da parte dominada, de modo a fazer com que a perda da autonomia não seja percebida nem reconhecida, mas submersa numa heteronímia que não se percebe como tal (Chauí, 1985:35).

As críticas feministas a este conceito, ainda que se reconheça a caracterização de uma identidade feminina sem autonomia, submetida à vontade do outro (pai, marido, filho, família e comunidade), a sujeição das mulheres adquire a conotação de fatalidade, não vislumbrando as possibilidades da mulher sair daquela situação6. Chauí (1985) não apreende as relações de poder desiguais entre homens e mulheres e a feição transitória do poder, não localizado exclusivamente no domínio masculino, mas também apropriado pelas mulheres, ensejando possibilidades de reação feminina, como nos ensina Foucault.

Para Foucault (1993), o poder deve ser entendido como constelações dispersas de relações desiguais, constituídas de discursos, saberes, linguagens e cultura, no âmbito de diversas clivagens sociais e campos de forças. Para ele, o poder não pode ser pensado como algo fixo e localizável num centro de poder, posto que se multiplica e penetra nas relações para produzir dominação, gestando-se nos embates e conflitos.

 

 

 

 


5 É importante ressaltar que Costa (1986) admite o mérito de Arendt na sua proposta de diferenciação entre poder e violência. Entretanto, sua crítica encontra apoio numa contradição da autora quando ela nega a supremacia do poder sobre a violência, admitindo a vitória da violência sobre o poder num episódio de terror: “A violência pode destruir o poder, mas é totalmente incapaz de criá-lo” (Arendt, 1985:132 apud Costa, 1986:52). Nesse Sentido, se a violência pode destruir o poder, podemos pensá-la como recurso fundamental na manutenção ou transformação de qualquer relação de poder.

6 Gregori (1993) dirige sua crítica a dualidade autonomia/heteronomia. Já Saffioti (1994; 1995; 2002ª), ao explicitar as desigualdades de poder entre os gêneros, desenvolve a argumentação de que as mulheres não consentem, mas cedem em face da ameaça do poder masculino.

 

O poder transita de um pólo a outro e por isso comporta resistências7.

Nesse sentido, nos afastamos da posição defendida por Chauí (1985), uma vez que exclui as possibilidades de reação e resistência dos dominados à violência sofrida. Nos aproximamos de uma perspectiva foucaultiana, donde há os processos de reação dos dominados em relações contraditórias e cristalizadas no aparato jurídico-político e nas hegemonias legitimadas no ideário cultural de uma sociedade.

A definição de violência apresentada por Costa (1986) consegue apreender sua dimensão coercitiva – enquanto intimidação da força física ou constrangimento moral de um ator sobre outro, associada à desigualdade de poder presente no conflito – e sua dimensão simbólica – materializada na infração à lei ou a justiça por alguém que deliberadamente rompe o contrato pelo abuso de força, sem cair numa perspectiva determinista ou fatalista das relações de poder que aí comparecem. Aqui a lei ou contrato refere-se ao direito do sujeito ocupar seu espaço na sociedade, respeitando-se as diferenças sexuais, e possuir uma identidade compatível com sua história no contexto das regras sócio-culturais.

Nesta acepção, a violência é definida não só como coerção, mas simultaneamente como desrespeito à lei ou ao contrato. Pressupõe-se, então, a existência de um uso arbitrário e gratuito da força por parte do mais poderoso contra o mais fraco. Violência é, antes de tudo, abuso de força, abuso de poder. A representação indutora da violência é uma representação abusiva que porta em si a patente do arbítrio e da gratuidade (Costa, 1986:95).

Dessa forma as violências praticadas contra as mulheres compreendem uma dimensão coercitiva e simbólica, assentada nas relações de gênero dominates8. O cenário da violência contra a mulher assume uma feição particular, uma vez que apresenta como sujeitos homens e mulheres envolvidos em relações afetivo-sexuais entre (ex) maridos, (ex) namorados ou (ex) companheiros no espaço doméstico.


7 “Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” (Foucault, 1993:88-89).

8 A violência física, com as lesões corporais e o assassinato; a violência sexual, com os crimes de estupro, atentado violento ao pudor e assédio sexual; passando pela violência moral/psicológica, identificada nos crimes de honra (calunia, injuria e difamação) e gestos de ironia, humilhação verbal, ameaça, intimidação. Que causam danos a objetos de valor afetivo e material da mulher, despertando sentimentos de medo, insegurança e vergonha; até a violência simbólica presente no preconceito e discriminação, enquanto uma expressão do abuso e das desigualdades de poder entre os gêneros masculino e feminino.

No Brasil os dados da pesquisa “Justiça e Vitimização”, incluída na PNAD de 1988 (IBGE) confirmam uma realidade que não surpreende as lentes mais desinteressadas no assunto. Dentre as pessoas vítimas de agressão, 37% são homens e 63% são mulheres quando a violência acontece em casa. E conforme dados da comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) organizada no Congresso Nacional em 1992 pra investigar a problemática da violência contra a mulher, mais de 50% dos casos de estupro ocorreram no interior da própria família9. Pesquisas realizadas nos EUA denunciam também que, em1992, aproximadamente 28% das mulheres vítimas de homicídio foram mortas por seus maridos ou ex-maridos e namorados ou ex-namorados, enquanto 3% dos homens vítimas de homicídio foram mortos por suas esposas ou ex-esposas e namoradas ou ex-namoradas (Soares, 1999).

Os limites entre as esferas privada e pública precisam ser suficientemente esclarecidos no debate sobre violência contra a mulher no espaço doméstico, sob pena de privilegiar o viés subjetivista na interpretação da violência ou reduzi-la a uma condição inerente à relação conjugal e ao domínio privado, frequentemente responsável pelo verbete popular “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

A discussão remete às noções de esfera pública e privada, que têm suas raízes históricas nas sociedades antigas. Conforme Arendt (2001), na Grécia antiga a distinção entre as esferas pública e privada equivalia à distinção entre liberdade e necessidade, mas ao mesmo tempo, na sua interdependência e reciprocidade. Por exemplo, o homem somente adquiria sua liberdade e cidadania, situada exclusivamente na esfera política, se garantisse a satisfação de suas necessidades, e isso dizia respeito à família. Como assinala Arendt, “a vitoria sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis” (Arendt, 2001:40). Na polis todos eram reconhecidamente iguais, mas na família podia fazer uso da violência (subjugando escravos), para vencer a necessidade, e assim, alcançar a liberdade na polis10.

Enquanto no mundo público todos são vistos e ouvidos por outros, no mundo privado essa condição é negada, os homens são prisioneiros da sua própria subjetividade e singularidade. Daí o termo “privado” aparecer definido em sua acepção original como “privação”, condição na qual o indivíduo é “… destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, (…) o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse” (Arendt, 2001:40). Assim, ao distinguir as esferas pública e privada, Arendt (2001: 82) lembra que o domínio público refere-se ao “que deve ser exibido” e a esfera privada diz respeito ao “que deve ser ocultado”.


9 Citados por Saffioti (1994; 1995)

10 As atividades exercidas no lar por escravos e mulheres estavam voltados para o atendimento das necessidades básicas de sobrevivência, e, por esta razão, não eram dignas de adentrar à esfera pública. Mulheres e escravos não tinham cidadania – eram mantidos fora das vistas alheias  não só porque eram propriedade de outrem, mas porque tinham uma vida “laboriosa”, dedicada às funções corporais.

 

Young (1987), na sua crítica a Arendt, afirma que a privacidade é o aspecto da vida ou atividade que o indivíduo tem “o direito de excluir” dos outros. Mas, para ela, o conceito feminista “o pessoal também é político” não nega a distinção entre público e privado, mas nega uma divisão social entre as esferas pública e privada. A partir desse conceito feminista, propõe, então, dois princípios: “(a) nenhuma instituição deve ser excluída a priori como sendo a questão própria para discussão e expressão pública; e (b) nenhuma pessoa, nem ações nem aspectos da vida de uma pessoa devem ser forçados à privacidade” (Young, 1987:84).

Na verdade, as definições de Arendt (2001) não podem ser tomadas de forma descontextualizada, como se fossem dadas por si mesmas. Apesar da autora não desenvolver as distinções entre público e privado na modernidade11, consideramos sua elaboração extremamente valiosa para entender o significado que a dimensão familiar exerce na manutenção das relações de violência. A própria Arendt faz uma ressalva quanto ao significado das noções público e privado, salientando que a tradição de ocultar o aspecto da vida humana relacionado às necessidades vitais deve sofrer transformações na era moderna, com a emancipação das mulheres e das classes operárias.

Ao observar que os vestígios da noção tradicional de privação em nossa civilização tem a ver com ‘necessidades’, Arendt (2001) nos permite entender a dominação feminina, explicada a partir de um olhar naturalizado sobre o lugar da mulher no mundo doméstico, na reprodução e nas tarefas voltadas à garantia da sobrevivência do núcleo familiar. Nessa perspectiva, a violência praticada contra a mulher encontra eco na visão negativa do privado como espaço das necessidades e associado à mulher.

A noção do que o privado é o “que deve ser ocultado” ainda prevalece na cena contemporânea, frequentemente expressa nos verbetes “roupa suja se lava em casa” ou “entre quatro paredes vale tudo”, o que têm contribuído para o silenciamento da sociedade e do Estado frente ao sofrimento e atos de violência vividos por mulheres, crianças e idosos na intimidade dos lares.

Mesmo considerando que a noção de privado como “o que deve ser ocultado” contribui para o silenciamento da violência contra a mulher, a perspectiva

 


11 Segundo Arendt (2001), no mundo moderno desaparece esse abismo entre a esfera da família e a esfera política, pois ambas estão submetidas na esfera social. Entretanto, a civilização contemporânea da sociedade de massas tem destruído as duas esferas, privado o homem do seu lugar no mundo e do seu espaço no lar privado. Por isso, ela fala sobre o direito à privacidade, mas toma como parâmetro da proteção à livre exposição pública, a mera condição do individuo como detentor da propriedade privada. Então a esfera privada refere-se aquele espaço “… que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade num sentido muito real e não subjetivo. O único modo eficaz de garantir a sombra do que deve ser escondido contra a luz da publicidade é a da propriedade privada – um lugar só nosso, no qual podemos nos esconder” (idem: 81) (grifos nossos).

deste estudo não admite que este seja um fenômeno intrínseco ao domínio doméstico ou próprio das relações conjugais, pois entendemos que a problemática da violência contra a mulher faz parte de um processo mais amplo de dominação/exploração do gênero feminino. Trata-se de um fenômeno universal e milenar, com profundas raízes históricas e informado pelo encontro de fatores sociais, culturais, econômicos e éticos referidos as relações de gênero presentes nas relações sociais.

Nesse sentido, o enfoque das relações de gênero como um sistema de poder resultante de um conflito social, com a consequente desvantagem para as mulheres (Scott, 1990) permite apreender a violência contra as mulheres numa perspectiva ampla,

uma vez que desvela as relações de poder construídas entre homens e mulheres e sua articulação com aspectos normativos, simbólicos, políticos, econômicos, institucionais e subjetivos de determinada sociedade.

Sem negar a natureza anatômico-fisiológica das diferenças de sexo, o gênero refere-se a dimensão cultural das diferenças entre o masculino e o feminino, em que os valores e comportamentos destinados a homens e mulheres são construídos socialmente a partir da percepção sobre a diferença biológica. Sendo assim, “o gênero é o sexo socialmente construído” (Barbieri, 1993:04).

Scott (1990) recuperou as contribuições de Rubin (1979)12, que definiu o sistema sexo/gênero no qual a construção social do gênero se dá sobre um corpo sexuado13. Em Rubin (1979) a dominação masculina sobre as mulheres é produto de relações sociais específicas que a organizam, portanto possui um caráter histórico e mutável.

Scott (1990) incorporou as teorias de conflito e poder dos pós-estruturalistas (Deleuze, Derrida e Foucault), no contexto das teorias da linguagem, em que a construção da identidade de gênero é captada por meio da linguagem: na comunicação, interpretação e representação. Sua definição de gênero apresenta como primeira proposição a ideia de que “o gênero é um elemento constitutivo de relações sócias fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos14, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (1990:14).

 


12 A análise pioneira de Rubin (1979) submete a uma crítica feminista as teorias de Levis-Strauss sobre o parentesco e a psicanálise na vertente Lacaniana. Fazendo incursões com o pensamento marxista, a autora contextualiza a situação das mulheres nas relações sociais capitalistas, destacando a função do trabalho doméstico no desenvolvimento do sistema capitalista, mas esclarece que a opressão das mulheres não reside na sua utilidade no interior da divisão sexual do trabalho capitalista.

13”Adoto como definição preliminar de um ‘sistema de sexo/gênero’: um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas” (Rubin, 1979:02).

14 Diferentemente de Rubin (1979), aqui “… o vetor vai do social para o anatômico e não o inverso. Ou melhor, o social engloba tudo, na medida em que o anatômico só existe enquanto percepção socialmente modelada” (Saffioti, 1992:197). Portanto a ênfase é na percepção, interpretação, no universo simbólico.

A autora apreende as relações de gênero como processos interligados e não separados, donde a subordinação das mulheres se constitui num começo ou recorte de processos complexos. Por isso, compreende a gênese e a dinâmica das relações de gênero a partir de quatro elementos, quais sejam: Símbolos Culturais; Conceitos Normativos; Instituições e Organizações Sociais e Identidade Subjetiva, em que um não opera sem o outro, mas não de forma simultânea, como um simples reflexo do outro (Scott, 1990).

Nos Símbolos Culturais estão presentes as representações simbólicas, muitas vezes de caráter contraditórias, como a oposição representada por Eva e Maria como símbolo da mulher pecadora e santa. Os Conceitos Normativos ilustram as interpretações dos símbolos expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas, que definem os valores e papéis opostos para o masculino e do feminino, num contexto no qual prevalece um padrão em termos de valores15. Com as Instituições e Organizações Sociais demonstra a necessidade de ampliar o debate sobre os determinantes da condição feminina para além das relações de parentesco (restrito a unidade doméstica ou a família como fundamento da organização social), incluindo também as assimetrias de gênero presentes no mercado de trabalho, na educação e no sistema político16. Com a Identidade Subjetiva demonstra o quanto o gênero é produto das organizações e representações sociais historicamente situadas. É através desses elementos que a sociedade constrói, mantém ou modifica as relações de gênero, tendo o gênero um efeito sobre as relações sociais e institucionais, os valores culturais e normativos e a subjetividade (Scott, 1990).

Na sua formulação, “o gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado”, Scott (1990:16) recorre a Foucault para mostrar que as relações de gênero são construídas na dinâmica social das relações de poder partilhadas entre homens e mulheres. A apropriação da categoria “poder” em Foucault (1993) concorre para a afirmação do gênero como categoria relacional, pois é nesse jogo de forças que um gênero só existe em relação ao outro.

O processo de dominação e emancipação envolve relações de conflito e poder entre homens e mulheres. Desprende-se daí que os homens não são os únicos detentores de poder, as mulheres também têm parcelas de poder, que são constantemente negociadas para ampliar sua condição de sujeito ou reforçar sua subordinação. As mulheres agredidas também constroem sua subalternidade e reproduzem padrões de violência, uma vez que na gramática de gênero há uma hegemonia do poder masculino.


15 “A posição que emerge como dominante é, contudo, declarada a única possível. A história posterior é escrita como se estas exposições normativas fossem o produto de um consenso social mais do que um conflito” (Scott, 1990:15).

16 “O gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na economia e na organização política…” (Scott, 1990:15).

 

Dessa forma, enquanto um componente das relações de gênero, a violência entre homens e mulheres denota que ambos dispõem de parcelas de poder – ainda que prevaleça a hegemonia do poder masculino (Saffioti & Almeida, 1995) – que lhes permitem manter e/ou desencadear a violência a fim de assegurar a tradição dos papéis de gênero e a ordem patriarcal dominante, ou buscar romper e transformar as relações de violência.

A construção desta perspectiva de gênero representou um salto acadêmico no estudo da condição da mulher na sociedade17. Todavia, quando Scott prioriza a dimensão discursiva da linguagem enquanto um sistema de significação, sob a máxima “sem o sentido não há experiência…” (Scott, 1990:11-12), a ênfase na construção simbólico-social de gênero recai no idealismo conceitual, negadora de uma perspectiva crítica e de totalidade de análise das relações sociais. As significações atribuídas pelos indivíduos e as realidades discursivas da consciência são produtos da existência, como ensina Marx e Engels.  A linguagem não é apenas instituinte, é também instituída pelo conjunto da totalidade do ordenamento social (Saffioti, 1999a).

Apesar de Scott (1990) mencionar uma articulação entre os processos de dominação de classe, etnia junto com o genero18, na sua abordagem não há espaço para a intercessão entre gênero, classe e etnia nas relações concretas desta sociedade. Conforme Rubin (1979), o gênero deve apontar para relações sociais, numa dialética articulação com outras relações. Millet (aput Barbieri, 1993) já mostrava a complexidade de analisar a subordinação das mulheres, atentando para a interseção das dominações de gênero, classe e raça/etnia.

A violência contra a mulher é determinada primordialmente pelo gênero, mas aspectos de ordem econômica e étnico/racial também interferem. Analisar a violência de gênero numa perspectiva ampla e de totalidade significa perceber sua imbricação às questões de classe e etnia. Os sujeitos sociais são constituídos de classe, gênero, e etnia, e tais contradições se entrecruzam. Um sistema de dominação ora profunda, ora potencializa o outro, ou seja, o nó formado pela imbricação desses antagonismos agrava a condição de opressão experienciada pelo sujeito. Assumir uma perspectiva feminista socialista (Saffioti, 1987; 1997; 1999ª; 2000) significa apreender o cruzamento – o que difere de paralelismo – das contradições regidas pela simbiose patriarcado-racismo-capitalismo, como um único sistema de dominação.


17 Com a perspectiva de gênero, negamos a naturalização da violência contra a mulher expressa na fórmula mulher vítima/passiva e homem agressor/ativo, uma vez que rejeita o determinismo biológico e a eterna dominação masculina/subordinação feminina expressa no patriarcado. Ainda que a condição de classe influencie na manutenção da violência, uma vez que inibe algumas alternativas necessárias ao rompimento da relação, a condição material – enfatizada pelo marxismo feminista dogmático – não é o fator determinante da violência. Também nos afastamos de um ponto de vista que atribui a violência à condição familiar, pois como vimos, os padrões de dominação são construídos no âmbito das relações sociais, em que comparecem várias instituições.

18 “… o gênero deve ser redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade política e social que inclui não somente o sexo, mas também a classe e a raça” (Scott, 1990:19).

Vislumbrar qualquer alternativa de emancipação feminina exige consolidar um “feminismo socialista”, comprometido com a superação de todos os processos e relações sociais que limitam o exercício da subjetividade (Castro, 2000). Esta violência, enquanto expressão das desigualdades de gênero, é um exemplo concreto do efeito produzido pelo entrecruzamento de gênero, classe e etnia na perpetuação das práticas abusivas contra o sexo feminino.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Uma reflexão ética sobre a promoção da proteção integral de crianças e adolescentes


 

 Gabriella Ferreira de Araújo*

Gizely Couto de Lima**

Maria Rosane Martins**

 

“O importante é que cada individuo tenha a oportunidade de evoluir partindo das raízes do seu próprio ser” (Chaudhur).

 

Um novo conceito

Mesmo em tempos contemporâneos, a situação em que se encontram muitas crianças e adolescentes no Brasil, e no mundo, nos conduz a uma reflexão da antieticidade acerca da realidade em que vivem as novas gerações.

É verdade que muito já se alcançou juridicamente em termos de garantias de direitos voltados para à infância e à adolescência, o maior exemplo disto é o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que configura-se, atualmente, para a sociedade brasileira como o principal instrumento de garantia do bem-estar social pleno de sua população infanto-juvenil; mas, é também verdade que tais garantias, na maioria das vezes, permanecem tão somente em um patamar teórico, deixando lacunas na efetivação dos direitos fundamentais.

Trata-se, portanto, de encarar sob um novo prisma, no que concerne à história da criança e do adolescente, esta população como cidadãos, sujeitos de direitos em condições especiais de desenvolvimento, expressando, com isto, a necessidade de direcionar a este público alvo atenção prioritária e absoluta.

Ficam responsáveis, assim, o Estado, a sociedade e a família, de acordo com os parâmetros da Constituição Federal de 1988 (art.227), o qual o ECA regulamenta ao efetivar a Doutrina de Proteção Integral. O artigo 3º do ECA é claro e específico quando preconiza que:


* Graduanda em Serviço Social pela UFPE (7º Período), bolsista de iniciação científica e membro do GEPE.

**Graduandas em Serviço Social pela UFPE (5º Período), bolsistas de iniciação científica e membros do GEPE.

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

 

Breves antecedentes históricos da situação da criança e do adolescente no Brasil

Conhecer o passado das crianças e dos adolescentes brasileiros é uma importante ferramenta para analisar e consequentemente compreender a formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual explicita a Doutrina de Proteção Integral como um novo paradigma jurídico dentro da área da infância e da adolescência.

O panorama histórico que auxilia na compreensão de toda a trajetória da criação dos mecanismos e instrumentos voltados para atender às crianças e adolescentes pode ser vislumbrado desde a época da colonização do Brasil. Neste período, a atenção voltada para crianças e adolescentes resumia-se à catequização realizada pelos jesuítas dos meninos e meninas indígenas e ao amparo dado pela Igreja Católica àquelas que se encontrassem em situação de abandono e marginalização. Muito importante dizer que o abandono de crianças no Brasil se dá com o advento da colonização do país, com a mistura étnica entre indígenas e portugueses. Estes, ao se relacionarem com as índias brasileiras, engravidavam-nas e não reconheciam os bebês concebidos nestas relações como seus filhos legítimos. Este fato, portanto, originou a questão do abandono de crianças no Brasil.

Após a independência política do Brasil, a partir de 1823, as primeiras leis e instituições começaram a surgir, ainda que de forma tímida. Na constituinte deste mesmo ano, não houve grandes preocupações com a criança, em especial a negra, já que o modo de produção da época era baseado na escravidão. José Bonifácio, justificava a idéia de que a mulher escrava permaneceria ao lado de sua cria durante o primeiro mês após o nascimento da criança, idealizando, com isso, dar continuidades ao sistema escravista.

Em 1871, com o decreto da Lei do Ventre Livre (Lei 2040), que declarava livres os filhos de mulher escrava nascidos daquela data em diante, foram apresentadas duas alternativas para os senhores de escravos: libertar as crianças, deixando-as abandonadas e sendo por isso ressarcidos pelo Estado ou deixar as crianças sob a autoridade dos senhores os quais seriam recompensados mediante trabalhos forçados das crianças até a idade de 21 anos. Nesta época, não havia ainda reconhecimento, por parte do Estado, da problemática da criança e do adolescente como sendo uma questão social.

A Proclamação da República em 1889, veio enfatizar, no âmbito nacional, reações sociais, políticas e econômicas, que deram margem para a proteção e assistência à criança carente, visando mudar o atendimento aos menores, que no período colonial e no império era feito de forma caritativa e filantrópica.

Mas é só no início do Século XX que um fato importante vem mudar este cenário: um grande fenômeno de explosão demográfica mexe não somente com a pirâmide etária nacional, mas também com a forma que crianças e adolescentes passam a ser encarados no país, uma vez que, nesse período, o número de pessoas com menos de 19 anos de idade representava mais da metade da população (CONANDA, s/d).

Urgia, diante desse contexto, uma tomada de atitude por parte do Estado. Os primeiros movimentos populares da época começaram a cobrar a devida assistência a este segmento populacional, agora ainda mais relevante no contexto sócio-econômico do país. Em resposta a esta agitação social, foi apresentado em 1906 o 1º projeto de lei que versava sobre a assistência e proteção voltadas à infância e à juventude.

Apesar da problemática exigir eticamente uma resolutividade eminente, passaram-se vinte anos para que só em 1927 o primeiro Código de Menores (Decreto-Lei 17.943) viesse a ser promulgado. No entanto, vale salientar que muito embora este Decreto Lei tenha sido homologado, as mazelas relacionadas às nossas crianças e adolescentes não foram eliminadas, uma vez que as medidas estabelecidas no mesmo possuíam um caráter extremamente discriminatório, coercitivo e repressor, obedecendo uma lógica biopsicossocial na qual a criança era vista como deslocada do meio social.

Ainda na esfera constitucional, no ano de 1934 se regulamenta a proibição do trabalho aos menores de 14 anos de idade, exceto com ordem judicial; e em 1937, na esfera de proteção à criança, firma-se a tarefa do Estado de cuidar dos casos de carência desde a infância. Salientamos, portanto, que apesar de existir estas leis de proteção ao trabalho infantil, não havia o cumprimento das mesmas.

A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969, em relação à legislação anterior, simbolizaram para a assistência das crianças um regresso, uma vez que diminui para 12 a idade mínima de iniciação ao trabalho e também porque a educação obrigatória e gratuita só era dever do Estado para com crianças de 7 a 14 anos. É importante situar que neste período o país passava por um regime ditatorial, assim, fica fácil entender a repressão e o atraso em relação aos direitos sociais.

Durante sessenta anos, o Código de Menores foi utilizado como o instrumento de referência para tratar as questões pertinentes à infância e à adolescência, quando em 1979 sofreu uma reformulação, passando a introduzir em sua essência a Doutrina da Situação Irregular:

(…) a lei existente se referia aos menores”, que estavam numa “situação irregular”. Situação irregular ou porque eram carentes e/ ou abandonados – e por isso precisavam da Proteção do Estado – , ou porque eram infratores e não se adaptavam à sociedade – e por isso precisavam da vigilância do Estado. Esta vigilância era responsabilidade do Juiz de menores”. (…) a lei não era universal, não era destinada a toda população com idade inferior a 18 anos (CEDCA/PE, 2002ª).

Apesar deste código registrar avanços em comparação ao de 1927, pontua-se nele alguns fatos que permitem contestações, como a existência da prisão cautelar para o menor que seria acometido para supostas verificações, tendo, no entanto, seus direitos infringidos. Mesmo reformulado, o 2º Código de Menores ainda estava impregnado pela lógica dos anos 60, insistindo na caracterização da criança pobre como menor.

A década de 1980, conhecida como um período em que o engajamento dos movimentos sociais na luta pela redemocratização do país tornou-se marcante, serviu também de palco para os debates das reavaliações das políticas voltadas para as crianças e os adolescentes. Este processo ocorreu ao mesmo tempo em que se discutia e se construía a nova Constituição Federal, que veio a ser aprovada em 05 de Outubro de 1988.

É nesta época também que se dá um dos eventos mais importantes dentro da área da infância e adolescência: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, realizada pela Organização das Nações Unidas – ONU. A realização desta Convenção teve um registro de grande relevância pois “foi precisamente este instrumento que teve o mérito de chamar a atenção, tanto dos movimentos sociais quanto do setor mais avançado das políticas governamentais, acerca da importância da dimensão jurídica no processo de luta para melhorar as condições de vida da infância” (MÉNDEZ, 1998:34)

Desta forma, os princípios e valores que deram norte à ação dos movimentos sociais da época, acabaram por influenciar na construção da Constituição Federal de 1988; prova disto é o artigo 227 da Carta Magna que reza especificamente acerca das crianças e adolescentes:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração.

Este artigo pode ser considerado um marco dentro da história da política para a infância e a adolescência no Brasil. O que antes tinha um caráter meramente filantrópico, baseado em métodos assistencialistas, agora passa a ser visto como política pública baseada em direitos.

Observando mais minuciosamente o artigo supra citado, valemo-nos da análise de Costa (1996), que divide o artigo 227 da Constituição em três aspectos principais:

“A primeira parte refere-se à sobrevivência – o direito à vida, à saúde e à alimentação.” Não se faz necessário discorrer muito acerca desta primeira divisão, uma vez que ter direito à vida, gozando de saúde plena e podendo ter o essencial para alimentar-se, eticamente é um princípio universal. Negar estes direitos básicos é negar a oportunidade de existência.

“A segunda parte é relativa ao desenvolvimento pessoal e social – o direito que o indivíduo tem de desenvolver potencialidades que trouxe consigo ao nascer: o direito à educação, à cultura, ao lazer e profissionalização.” Aqui, reside a problemática do “privilégio”, pois, no Brasil, “o simples fato de nascer indígena ou branca, de viver na cidade ou no campo, de nascer no sul ou no norte, de ser menino ou menina, de ser filho de mãe com baixa ou alta escolaridade e de ter ou não alguma deficiência, determina as oportunidades que uma criança terá logo nos primeiros anos de vida” (Reiko, 2003) .Desta forma, para que possam desenvolver suas potencialidades, muitas vezes precisam contar com a “própria sorte”, pois o sistema capitalista excludente não oportuniza a todos ter acesso aos bens e serviços que garantem a aquisição do conhecimento.

“A terceira parte refere-se ao respeito à integridade física, psicológica e moral – direito à dignidade, à liberdade e a convivência familiar e comunitária. Inclui-se nesta parte o direito da criança e do adolescente de ser colocado a salvo de toda forma de negligência, discriminação e exploração, violência, crueldade e opressão.” Além da garantia dos direitos básicos e essenciais, é assegurado também a criança e ao adolescente a perspectiva de emancipar-se na sociedade. Para tanto, torna-se imprescindível que valores éticos como a igualdade e a justiça, estejam bem enraizados socialmente, contribuindo, desta maneira, para dirimir qualquer forma de preconceito e/ou desrespeito.

 

Depois da promulgação da Carta Magna em 1988, foi aprovado no Congresso Nacional Brasileiro, em 13 de Julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069), que regulamenta o artigo constitucional acima citado e apresenta uma nova proposta de política de atendimento e medidas de proteção relacionadas à infância e à adolescência. A criação deste Estatuto é um dos maiores avanços no campo jurídico, além de configurar-se também como uma conquista ética, afinal, são os princípios éticos que dão fundamentação para que o direito e as normas sejam implementados. Os avanços que o Estatuto traz em relação aos antigos Códigos de Menores são inúmeros. As vantagens podem ser vislumbradas desde a forma de adolescentes até como vêm sendo de fato executadas.

O ECA encontra-se dividido em duas partes. Na primeira elencam-se os direitos fundamentais da infância e da adolescência, incluindo a garantia e regulamentação para que seja implementado o conjunto de conquistas expressas no artigo 227 da Constituição Federal. Esta parte corresponde aos artigos 1º ao 85. Na segunda, está definida a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, esta, última, também denominada de “Parte Especial”, corresponde aos artigos 86 ao 267. Mais adiante voltaremos a abordar acerca desta parte especial do Estatuto.

Esta retomada histórica buscou de forma sintética, facilitar a compreensão da transferência gradual do paradigma da “Doutrina da Situação Irregular” para o da “Doutrina da Proteção Integral”. Cabe-nos agora, levantar alguns aspectos das políticas sociais voltadas para as crianças e os adolescentes que configuram-se na atual conjuntura e analisar com maiores detalhes as propostas de direito e defesa estabelecidos no ECA.

 

Reavaliando as políticas sociais

O desenvolvimento da cidadania percorreu diversos caminhos através de marcos históricos importantes, como as Revoluções Americana e Francesa e todas as lutas trabalhistas ocorridas ao longo do tempo, até alcançar etapas que se caracterizam na conquista dos direitos civis, políticos e sociais. Neste último, deve ser enfatizada a vinculação do Estado aos setores sociais, entre os quais fica estabelecido para o Estado, a responsabilidade, o compromisso de cumprir com a garantia de recursos essenciais para o desenvolvimento, subsistência e dignidade dos indivíduos.

Nesse sentido, a máquina estatal opera sobre as demandas da sociedade através das políticas sociais, que funcionam como dispositivo de implementação dos direitos fundamentais. Estas políticas estão divididas em dois hemisférios de atuação: o das políticas sociais básicas – referentes ao conjunto das necessidades elementares da população, portanto, de caráter universal; e o das políticas de assistência social, que abrange os pontos mais críticos de enfrentamento da questão social, atendendo, pois, aqueles que se encontram à margem das condições dignas de cidadania.

É no segundo hemisfério – o das políticas de assistência social – onde está inserida a parcela da população mais atingida pelas práticas perversas do processo de produção capitalista, que fomenta a exploração e as desigualdades sociais, rebaixando seres humanos a condições degradantes e humilhantes.

A conjuntura social nacional amplia cada vez mais a degradação sistemática das condições de vida nos segmentos sociais, o que se agrava com o redimensionamento das políticas sociais setoriais, as quais vêm assumindo gradativamente um perfil focalista, seletivo e residual, do ponto de vista organizacional, contribuindo para uma visão cada vez mais fragmentada da sociedade e servindo como instrumento de reprodução da lógica do Estado mínimo, se distanciando, com isso, do seu papel de ampliação dos direitos sociais.

O Brasil ostenta hoje, sob a égide do capital, o 11º lugar no campo econômico mundial; entretanto, carrega consigo uma das maiores marcas das contribuições produzidas pelo capitalismo: ocupar a colocação de 2º país que apresenta maior contraste social.

Manifestações no campo das relações sociais denunciam o rebatimento direto destas questões no cotidiano dos indivíduos. Tal posição requer cada vez mais um equacionamento ético e político no quadro estrutural do país, capaz de estabelecer mudanças que imprimam, positivamente, os direitos de pessoa humana e de cidadania na vida da população marginalizada.

Diante dessa situação excludente e injusta, encontram-se crianças e adolescentes, que têm constantemente seus direitos ameaçados pelo modelo político e sócio-econômico de um país como o Brasil, que empurra a população para situações-limite, tais como desemprego, falta de habitação e saneamento básico, de saúde, educação, alimentação e nutrição.

O amparo destinado ao público infanto-juvenil está previsto no Livro II do ECA – Parte Especial, o qual fundamenta a prática de uma política de atendimento universal direcionada a esta população. Esta política deve ser entendida como uma reunião de ações integradas, capazes de demandar respostas às necessidades da infância e da adolescência. Na criação destas ações devem estar em sintonia os setores governamentais, não-governamentais, e, sobretudo, a participação da população, no processo de decisão para formulação de políticas públicas tendo em vista o bem-estar social e pessoal das crianças e adolescentes.

Para execução da política de atendimento são descriminadas no artigo 87 do ECA, linhas de ação que se caracterizam como vias articuladas, estritamente relacionadas, visando oferecer atendimento absoluto aos sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. Segue-se uma trilogia das linhas de ação que formam a política de atendimento. São elas: as políticas sociais básicas, destinadas a atender todas as crianças e adolescentes; a política de assistência social, direcionada às crianças e adolescentes em situação de necessidade e a política de proteção especial, comprometida em prestar atenção a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social (vitimizados e autores de ato infracional).

Estas linhas de ação da política de atendimento tomam como norte central a Constituição Federal de 1988, que preconiza todos esses direitos nas Leis nº 8080/90 (Sistema Único de Saúde – SUS), nº 8742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS) e nº 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases – LBD). Todas essas diretrizes legais encaminham à sociedade em geral para o cumprimento legítimo desses direitos, os quais se tornam prioritários no tocante à criança e ao adolescente.

Faz-se necessário discorrer um pouco mais sobre a atmosfera dessa estrutura responsável pela ampliação da situação de risco, que se constitui como um desafio que conclama toda a sociedade para a luta pela implementação das garantias legais de proteção infanto-juvenil.

Primeiramente, não podemos desvincular esta análise estrutural e seus rebatimentos nas condições de vida das famílias que são o ambiente de nascimento, crescimento e desenvolvimento de meninos e meninas, visto que é esta esfera da sociedade (a família) o locus principal de reprodução e formação desta parcela expressiva da população nacional.

Os indicadores sociais revelam a necessidade do Estado intervir diretamente neste âmbito, a fim de atender as demandas da população de forma mais abrangente, o que implica, portanto, na formulação de políticas sociais eficientes, eficazes e, sobretudo, universais que contemplem a promoção e defesa de todos os direitos.

Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (1999), totalizou 160 milhões de habitantes no país, sendo 57,6 milhões crianças e adolescentes. Deste número, mais de 9 milhões de crianças vivem em família cuja renda é equivalente a menos de US$ 41,90 por mês. Quanto à renda, apenas 8,9% está concentrada nas mãos dos 40% da população mais pobre, ao passo que 13,9% da renda pertence a 1% da população. Cerca de 50 milhões de pessoas, o correspondente a 32% da população, recebe até US$ 2,00 por dia (0,71% do salário mínimo). Em situação mais calamitosa estão 21,4 milhões de pessoas (13,9% da população), as quais se encontram classificadas abaixo da linha da pobreza, tentando sobreviver com apenas U$ 1,00 por dia (0,35% do salário mínimo) (IPEA, 2000).

Nessas circunstâncias, nascem 3,3 milhões de bebês por ano, contudo, um milhão deles (34,6%) não chega a ser registrado, 57 mil (1,7%) morrem na primeira semana de vida, 120 mil (3,5%) no primeiro ano e 140 mil (4,2%) nos primeiros cinco anos. Cinco mil mulheres não sobrevivem ao parto, 700 mil crianças nascidas na rede pública de saúde são filhos de meninas entre 10 e 18 anos e 14% das adolescentes na faixa etária de 14 a 19 anos têm pelo menos um filho (UNICEF, 2000).

Os que conseguem sobreviver se defrontam com uma realidade cruel. De acordo com os dados do IPEA (2000), 91% das crianças de 0 a 3 anos não freqüentam creches e 42% das crianças de 4 a 6 anos não estão inseridas em escolas de educação infantil; dos meninos e meninas entre 7 e 14 anos (1,9 milhão, 7%) estão fora das salas de aula; e dos adolescentes entre 15 e 17 anos (2,2 milhões, 21,5%) estão fora da escola (IBGE, 1999). O nível de escolaridade não é dos melhores: 1,8 milhão de jovens são analfabeto e somente 18,4% dos adolescentes entre 15 e 19 anos possuem mais de 08 anos de estudos (UNICEF, 2000).

Como agravante desta situação temos ainda a problemática do trabalho precoce. Em nosso país 6,5 milhões de crianças e adolescentes entre 05 e 17 anos são trabalhadores, utilizados como mão-de-obra barata e transformados em objeto de exploração do capital. Sem falar que todos os anos pelo menos 30 mil adolescentes são privados de liberdade.

Estes índices estatísticos apontam para níveis que revelam a aguda pauperização das famílias, o que afeta diretamente a realidade da população infanto-juvenil. “Os dados disponíveis sobre a situação das crianças e dos adolescentes brasileiros ainda demonstram uma verdadeira apartação entre as conquistas jurídicas institucionais e a eficácia das políticas sociais para efetivar direitos e proteção integral” (CONANDA, s/d). A qualidade de vida oferecida no campo social confronta barbaramente com as expectativas dirigidas para a proteção humana da infância e juventude do país, visto que o espaço por elas acampado é o da segregação social.

Todos esses aspectos se constituem em vetores que vulnerabilizam e expõem a criança e o adolescente à situação de rua, violência sexual, negligência, maus- tratos, envolvimento com drogas, trabalho precoce, prática de ato infracional, entre outras expressões de violência contidas na realidade do mundo infantil e juvenil. Frente a esses fatores, convém diante de uma ótica ético-política, estabelecer diretrizes profundas, as quais englobem a supressão dessas vias negativas que têm como fundamento a injustiça e a reprodução da desumanidade.

As mobilizações sociais dos anos de 1970/80 que resultaram na Constituição Federal de 1988, abriram portas para o debate democrático no país, dando novos direcionamentos ao universo das políticas sociais.

O desenvolvimento do Estado durante esses últimos anos, após a promulgação da Carta Magna, apresentou uma série de mudanças e transformações no que consiste ao enfrentamento da questão social.

Contudo, o problema clássico da escassez ou inexistência dos recursos para financiamentos das políticas sociais, somado às históricas dificuldades como a centralização política e administrativa, a desarticulação de programas e ações, o desvio de recursos, entre outras, revela a complexidade da realidade brasileira (CONANDA, s/d).

Em relação às crianças e adolescentes, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, ocorreu uma reorganização da ordem institucional, na qual foram criados órgãos responsáveis pela implementação de políticas públicas tais como os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares e os Conselhos Setoriais de Políticas Públicas. Comprometidas com uma proposta de transformação e mudança nas relações sociais que visam a proteção infanto-juvenil, essas instituições trabalham sob um comando intersetorial, complementar e integral objetivando a articulação de um Sistema de Garantias de Direitos capaz de “(…) permitir a construção coletiva de categoria política estratégica, de sua ação para assegurar sobrevivência, desenvolvimento, proteção e participação de todas as crianças e adolescentes” (CONANDA, s/d).

Este sistema de garantia de direitos só poderá ser implementado na íntegra, à medida que a essência da Doutrina da Proteção Integral for incorporada às práticas sociais.

Enquanto isso não for legitimado, crianças e adolescentes continuarão sendo negligenciados, descriminados, explorados, violentados, além de sofrerem crueldade e opressão. Entram, portanto, esses fatos em choque com o que está expresso claramente no artigo 5º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, fazendo com que ocorra a violação dos direitos da criança e do adolescente, uma construção inversa do que está legislado não só neste artigo, mas em todo o ECA.

O desafio que se coloca, portanto, é afastar todas as questões que se posicionam como obstáculos, como transgressão dos direitos garantidos, porém não efetivados na sua plenitude. Logo, é preciso respostas eficazes do Estado, da sociedade e da família. A resposta do Estado mediante o referido desafio deve ser dada ao colocar em prática políticas sociais, implementando o conjunto de todas as necessidades da infância e da juventude. Com relação à sociedade, cabe desempenhar seu papel cobrando do Estado a efetivação das mudanças de ordem institucional, se fazendo participar na elaboração das políticas, fiscalizando e questionando as mesmas, bem como denunciando atos e omissões que não se enquadrem na Doutrina de Proteção Integral. Já a família, pode dar sua resposta afirmando a responsabilidade de prover as necessidades físicas e emocionais da criança e do adolescente configurando no âmbito familiar a interação entre os fatores psicológicos, socioeconômicos e culturais do ser em desenvolvimento.

Diante desse ponto de vista, podemos encarar como maior desafio o exercício de fazer com que seja incorporada em nosso cotidiano, a concepção de que a Doutrina de Proteção Integral a crianças e adolescentes perpassa o ângulo da questão teórica e mergulha no cerne da questão ética, que remete ao direito legítimo de meninos e meninas viverem como seres livres e iguais, numa sociedade pautada pelos princípios da justiça e da equidade.

 

 

Referências Bibliográficas

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*Texto didático elaborado para a Disciplina Estágio II. Recife, julho de 2002

** Professora doutora do Departamento de Serviço Social da UFPE; atual coordenadora da pós-graduação em Serviço Social da mesma universidade.

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Presença ética-2001-Ano1-VOL.1.

Presença ética-2001-Ano 1-VOL. 1

Apresentação

Contemporaneamente, o debate sobre o tema da ética ou de questões que impliquem em opções éticas, ganha espaço na mídia e na sociedade brasileira quando um conjunto de situações e eventos protagonizados por personagens da política brasileira chocaram a opinião pública pela desfaçatez com que arquitetaram a transgressão de valores e princípios morais.

Este debate, entretanto, foi instrumentalizado por uma concepção que situa a discussão da ética no ambiente legal-formal, restrito aos julgamentos de valores e à aplicação de sansões reparadoras de comportamento e atitudes que infringiram direitos e deveres, em geral relacionados ao clientelismo, negociatas, corrupção, falta de decoro parlamentar, violação de direitos humanos, dentre outros.

Essas iniciativas, com todos os méritos que lhe são inerentes e, ainda que, marcadas por manifestações de indignação e espanto, não tiveram o poder de fomentar  a formação de uma consciência ética  que transpusesse o patamar do universo factual e legal em favor de uma consciência crítica, mobilizadora de ações fundadas em novos valores e práticas sociais orientadas para a transformação da ordem vigente.

Atentos a este movimento, os profissionais de serviço social, já nos idos de 1993, identificavam em tal conjuntura a existência de um apelo histórico que reclamava – a definição das suas “escolhas” ético-políticas e profissionais que viessem a referendar o compromisso da categoria na luta pela realização da emancipação humana. Ao protagonismo do CFESS e dos CRESS neste campo, somos todos devedores.

Produto daquela dinâmica e do compromisso profissional, acadêmico, político, e ético das pesquisadoras que compõem o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética (GEPE) da UFPE, esta coletânea, organizada pela Profª Drª Alexandra Monteiro Mustafá, dá mostras da importância e dimensão que adquiriu a discussão entre filosofia, ética, sociabilidade e Serviço Social no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE, ao qual estão vinculadas a maioria das autoras.

Dirigido prioritariamente ao publico do serviço social, os ensaios ora publicados alem de enfocarem a trajetória, os fundamentos filosóficos e os princípios no atual código de ética profissional do assistente social, tratam temas transversais à formação profissional e que requerem, como diz uma das autoras, “um olhar ético”, a exemplo da questão do preconceito e da degradação ambiental. Esta coletânea reúne, ainda, todos os códigos de ética da profissão (1947, 1965, 1975, 1986 e 1993).

Ao instigar o debate, exercitando o pluralismo teórico que marca a dinâmica da vida acadêmica no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE, esta publicação honra a todos nós que, nestas terras nordestinas, lutamos por um Serviço Social crítico, comprometido e apto a enfrentar os desafios contemporâneos da sociedade brasileira, sem perder a ternura e os laços que nos unem nesta batalha.

Ana Elizabete Mota


Notas Introdutórias

Esta coletânea é uma iniciativa do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética – GEPE do Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, a partir de um trabalho de intensa reflexão/discussão sobre a necessidade da inserção da questão ética, tanto no que se refere à análise/intervenção na realidade contemporânea, como os seus rebatimentos na profissão de Serviço Social.

O GEPE, constituído no inicio do novo milênio (ano de 2000)[1], congrega professoras, estudantes do doutorado, mestrado e graduação do curso de Serviço Social e tem como principal objetivo resgatar a centralidade da ética, como instrumento de leitura da realidade e como uma das dimensões de inspiração para a superação das contradições sócio-político-econômicas, no sentido de construir valores que fundamentam uma nova ordem social, pautada na concepção de um processo de emancipação humana.

A materialidade de um grupo de pesquisa constitui um enorme desafio para os cursos de Pós-Graduação, considerando as particularidades do momento histórico-conjuntural que caracterizam o quadro atual da universidade brasileira, face à hegemonia do projeto neoliberal. A relevância desses grupos repousa na sua capacidade analítica de captar as determinações e implicações da realidade, possibilitando o enriquecimento do processo de construção do conhecimento e uma contribuição efetiva na identificação de possibilidades concretas de alternativas/proposições frente às incongruências do movimento da vida social.

A ética, enquanto uma dimensão da vida social, não pode ser diluída nem derivada, de forma imediata, de outras esferas como, por exemplo, a economia, a política, a ideologia e a cultura. Pensar, portanto, a dimensão ética inscrita na vida de homens e mulheres, supõe compreender que, cotidianamente, estes sujeitos – individual e coletivamente – fazem escolhas de valor que fundamentam sua atuação no mundo, enquanto seres históricos e teleológicos. Desse modo, estas escolhas estão alicerçadas, consciente ou inconscientemente, em um determinado projeto de sociedade.

Desde a década de oitenta, o debate ético tem assumido destaque na sociedade brasileira, face aos demasiados da anti-eticidade expressa na condição de vida da população e na forma de enfrentamento político adotado diante da “questão social” e do próprio processo de democratização. Isto repercute diretamente no interior do conhecimento e na organização política evidencia a ética como elemento de fundamental importância, seja no processo de formação, no exercício da profissão e, finalmente na discussão sobre princípios e normas inscritos no Código de Ética dos(as) Assistentes Sociais.

A proposta desta coletânea é a de oxigenar este debate ético profissional. De um lado, traz ensaios que põe a ética a partir de olhares múltiplos que perpassam a formação e o exercício profissionais, com ênfase para reflexões em torno dos princípios do código de ética de 1993. De outro, reúne todos os códigos de ética do(a) assistente social, iniciativa importante para preservar a memória da profissão.

Enfim, esse esforço coletivo eivado de ousadia e indignação ética só se tornou realidade pelo apoio de companheiros(as) que contribuíram para a concretização desta coletânea. Com carinho nosso agradecimento à coordenadora da Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE, Profª Ana Elizabete Mota, por ter nos concedido mais que apoio institucional, constituindo-se em uma presença estimulante nos incentivando em todas as atividades do GEPE; à Lúcia Barroso, que, com presteza, atendeu nossa solicitação para redigir o prefácio e a Lúcio Mustafá, que gentilmente mesclou criatividade e disponibilidade na elaboração da capa e do projeto gráfico desta coletânea.

Esperamos que novos grupos de pesquisa sobre ética surjam no cenário profissional, a exemplo dos grupos da UFPE e da PUC de SP, contribuindo, assim, para que o debate ético se enriqueça e possamos aprofundar polêmicas e realimentar nossos ideais emancipatórios. O GEPE se constitui um dos sujeitos que estão protagonizando este processo, e desse modo, pretende dar continuidade à publicação anual de “PRESENÇA ÉTICA”, como forma de fomentar a socialização de estudos e pesquisas, através de publicações regulares, oportunizando um intercambio entre pesquisadores(as) de várias universidades. Tal fato já é uma realidade em termos de nordeste, uma vez que o GEPE conta com a participação e/ou articulação de docentes das seguintes universidades: Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, Universidade do Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN e Universidade Estadual do Ceará – UECE.

Por fim, é com imensa satisfação que apresentamos o número um da revista PRESENTA ÉTICA, que pretende ser mais um canal, com periodicidade anual, de socialização das produções na área da ética. O nome PRESENÇA ÉTICA traduz a vontade política dos membros do GEPE de que a ética possa significar uma realidade expressa na vida cotidiana de homens e mulheres. PRESENÇA ETICA significa, também, nossa esperança na construção de uma outra sociabilidade na qual a dominação e a opressão cedam lugar para a materialização de relações sociais e valores emancipatórios que contribuam para o pleno desenvolvimento dos indivíduos sociais.

 

Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética – GEPE/UFPE


 

Prefácio

Embora a ética tenha um papel significativo na auto-imagem do Serviço Social, desde a sua origem, é apenas a partir dos anos noventa, no Brasil, que ela recebe um tratamento sistemático capaz de apreender seus fundamentos e suas determinações históricas, numa perspectiva crítica.

Esse avanço, explicitado no Código de Ética Profissional de 1993, é produto histórico de um longo processo de ruptura com o conservadorismo profissional, em que se gestou uma nova moralidade comprometida com valores emancipatórios e com uma direção social estratégica capaz de traduzi-los em práticas concretas.

Os textos reunidos neste livro se inscrevem nesse processo em curso; são expressões de uma nova moralidade profissional que busca refletir, de modo fundamentado e crítico, sobre ética e seus rebatimentos na ação profissional. As autoras, professoras de ética de várias universidades, pós-graduandas da UFPE, são membros do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética (GEPE), iniciativa fundamental para o fortalecimento da ética como área de pesquisa do Serviço Social.

Sabemos que apesar da ética ser um tema privilegiado nos debates profissionais dos últimos dez anos, são raríssimas as universidades que têm essa disciplina nos cursos de pós-graduação e em seus núcleos de pesquisa, daí a importância desse empreendimento da Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE.

Um dos grandes méritos dos ensaios que ora são publicados reside na sua utilização como material didático na formação profissional, sobretudo nas disciplinas de Fundamentos Filosóficos e Ética Profissional, nos cursos de Serviço Social. Tais disciplinas – espaços privilegiados de aprendizado ético -, em geral, estão aquém dos avanços trazidos pela incorporação de referenciais críticos nas reformulações curriculares das décadas de 80 e 90. Como bem observa a autora do primeiro ensaio, Edistia Maria, no ensino da ética torna-se evidente a necessidade de uma analise que permita apreender as possibilidades de objetivação dos valores e princípios inscritos no Código de Ética. A explicitação do significado histórico e da fundamentação filosófica destes valores e princípios, trazidos por Edístia Maria e Cinara Nahra, responde a esta necessidade, de forma acessível ao aprendizado dos alunos, ao mesmo tempo em que propicia uma leitura ética que extrapola o código, articulando-o com a vida social.

Todas as autoras são unânimes na afirmação de que a ação ética supõe uma base de fundamentação que necessita do recurso à reflexão filosófica, sobretudo à filosofia grega. Nesse sentido, o texto de Alexandra Mustafá, ao tecer um panorama histórico das varias concepções éticas presentes no debate contemporâneo, recorre à história da filosofia, propiciando ao aluno uma aproximação com as fontes das diferentes fundamentações éticas e filosóficas necessárias à sua formação.

O ensaio de Marylucia Mesquita, Sâmia Rodrigues e Silvana Mara convida a uma reflexão sobre a discriminação característica do moralismo. A crítica ao preconceito trazida para o interior da ética profissional contribui para o desvelamento das contradições inerentes a uma intencionalidade discriminatória e desumanizadora.

Ao nos instigar para pensar sobre a relação entre ética e a questão do meio ambiente, Andréa Lima também pergunta sobre o significado da ética na realidade atual, fornecendo algumas pistas para uma indagação acerca do futuro da humanidade. Pelas razões assinaladas, é com muito prazer que apresento esses ensaios, apostando na sua contribuição para o desenvolvimento de uma cultura ética fortalecedora de um projeto profissional que não se satisfaça com as possibilidades do presente e sim busque participar da construção de uma nova sociabilidade em que a liberdade não seja apenas um valor mas uma realidade vivenciada objetivamente por todos os indivíduos.

 

Maria da Lúcia Silva Barroco

7 de Setembro de 2001

 

 

PARTE 1

O Debate Ético:

Fundamentos e Perspectivas

 

 

Articulação entre Fundamentos Filosóficos e Códigos de Ética no Ensino de Ética Profissional em Serviço Social

 

Edistia Maria Abath1

               De todo o escrito amo apenas aquilo que uma pessoa escreve com o seu     próprio sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito.

Nietzsche

As reflexões contidas neste artigo se propõem a contribuir para o processo de formação profissional, no sentido de pontuar elementos indispensáveis à articulação entre os fundamentos filosóficos que embasam a disciplina ética e a sua articulação com os conteúdos deontológicos presentes nos códigos profissionais.

Há dois períodos escolares iniciou-se uma observação mais sistemática para obter informações junto aos alunos e alunas sobre a sua apreensão do significado do processo que vem sendo vivenciado no ensino da disciplina Ética Profissional.

A referida disciplina é dividida em duas unidades. Na primeira, consideram-se os conteúdos fundamentais de ordem filosófica que embasam a discussão da ética geral, relacionando-se com a dinâmica da realidade histórica em que foram produzidos e seus rebatimentos na análise da realidade atual e no processo de produção de conhecimento.

Na segunda unidade, realiza-se um estudo a partir da análise sobre os diversos Códigos de Ética do (a) Assistente Social Brasileiro, contextualizando o percurso histórico em que foram elaborados; as determinações que caracterizam o exercício profissional, através da identificação das tendências teórico-filosóficas que o inspiram e condicionaram a existência de diferentes práticas profissionais. O resultado obtido na experiência acadêmica, suscitou o desejo de socializar a proposta de ensino desenvolvida.

Na perspectiva de uma visão histórica da ética, envereda-se pelo universo dos pensadores gregos e de sua vivencia histórica, podendo-se verificar que a busca, a descoberta do bem e do bom fundamentam as reflexões sobre normas de conduta moral e a concepção da vida existentes na pólis grega.

 


1 Professora da disciplina de Ética Profissional do Curso de Serviço Social da UNICAP, Mestre em Serviço Social pela UFPE e membro do GEPE e do CRESS-PE.

A tradição literária que funcionou, inicialmente, como elemento fundamental na formação do ethos daquela sociedade nos faz recordar a contribuição de autores como Homero que através de seus personagens, tornados imortais na literatura clássica, nas suas obras Ilíada e Odisséia, realizava um processo educativo de formação das virtudes do homem grego, há cinco séculos antes de Cristo.

Nesse contexto, destacam-se odes que exaltam os valores enaltecidos pela cultura grega tais como: o heroísmo, a coragem e a audácia, especialmente no que se refere à postura exigida pelo homem diante da guerra e valores diretamente vinculados ao desenvolvimento intelectual, tais como a sabedoria que representava o conhecimento em relação à vida, à fidelidade, às relações e compromissos assumidos. Estes valores foram explicitados no “heroísmo de Aquiles”, na “sabedoria de Nestor”, na “coragem e na audácia de Ulisses” e na “fidelidade de Penélope”.

Os chamados sete sábios da Grécia elaboraram máximas que se tornaram parte do tesouro e do patrimônio da sabedoria tradicional grega que constituem regras para uma vida equilibrada, tais como: “Ótima é a medida”, “Nada em demasia”, “Não desejes o impossível” e “É terrível conhecer o que acontecerá, mas conhecer dá segurança”.

Observa-se que a busca do bem está na base do pensamento e da construção de ideais éticos, os quais vão se constituir como referencial para o balizamento do pensamento e da racionalidade ocidental, especialmente a partir das contribuições de Sócrates, reportado por Platão, Aristóteles e outros pensadores gregos e das épocas Medieval, Moderna, Contemporânea e ainda, mais recentemente, em termos da atualidade.

Através da leitura de textos básicos, apresenta-se aos estudantes aspectos do pensamento de alguns autores sobre os ideais éticos que elaboraram, enfatizando-se a dimensão histórica para que compreendam a preocupação humana com a construção de valores e contextualizem, devidamente, a história da ética.

Inicialmente, destacam-se os chamados Pré-Socráticos e os Sofistas. Estes últimos são entendidos como parte de um movimento intelectual, considerado pejorativo, por alguns estudiosos, porque têm como base o ensinamento da filosofia como profissão, no sentido de utilizá-la na política a partir do exercício da retórica para o convencimento. Na perspectiva dos sofistas, não existe nem verdade, nem erro, mas uma relatividade que condiciona a transitoriedade das normas, numa postura contrária ao que defendia Sócrates, que se reportava à ética como a busca do bem, da virtude, enquanto valores absolutos (Vazquez, 1990).

Como é sabido de todos, Sócrates foi acusado de corromper a juventude e obrigado a beber cicuta, falecendo em 399, a.C.. Seu pensamento tinha como característica principal o amor à filosofia, enquanto concepção de vida, rejeitando, assim, o relativismo e o saber a respeito do homem, do seu ethos, entendido como costumes que orientavam os homens na sua ação no mundo. Sua máxima: “conhece-te a ti mesmo”, refletia sua preocupação com a centralidade do homem, tendo como ideal fundamental o princípio da justiça, valor este que se constitui um dos fundamentos no Código de Ética atual do (a) Assistente Social.

Ressalta-se, ainda, outros aspectos revelados por Platão sobre o pensamento socrático, tais como: o conhecimento universalmente válido contra o que sustentam os Sofistas; o conhecimento moral como base da ação humana; o conhecimento prático para agir corretamente e, finalmente, a ética racionalista que preconiza que o homem age retamente quando conhece o bem e conhecendo-o não pode deixar de praticá-lo; por outro lado, aspirando ao bem, sente-se dono de si mesmo e, por conseguinte, é feliz.

A característica do método de Sócrates é a não proposição dogmática, mas a utilização do diálogo como recurso fundamental que conduzia o outro a refletir e chegar a conclusões sobre questões filosóficas e morais anteriormente desconhecidas: a chamada “maiêutica” socrática, também considerada como dialética (Valls, 1999).

O outro autor da antiguidade analisado na disciplina é Platão – discípulo de Sócrates, que elabora uma discussão sobre a ética intimamente relacionada com a sua filosofia política. Para ele, a pólis é o terreno próprio da vida moral. No entanto, a sua concepção de mundo interpreta a realidade de maneira dual, a partir de uma visão metafísica na qual as idéias são permanentes e imutáveis, constituindo a verdadeira realidade: o bem. Além disto, Platão elabora uma doutrina das idéias, baseada numa concepção de mundo como reprodução do modelo ideal transcendente à existência humana, onde a alma anima e move o homem, formando uma dualidade em que a razão é considerada superior e controla, através da vontade, as necessidades ou apetites de caráter inferior.

Para Platão, o ideal buscado pelo homem virtuoso é a imitação do modelo ideal de virtude. Aderir ao divino é a medida de todas as coisas. Em sua pesquisa, o filósofo idealista vai organizando um quadro das principais virtudes, a saber:

  •   Justiça (dike) é a virtude geral, que ordena e harmoniza e, assim, nos assemelha ao invisível, divino, imortal e sábio;
  •    Prudência ou Sabedoria (frônesis ou sofia) é a virtude própria da racionalidade. Para Platão, equivale à vida filosófica como uma música mais elevada; é aquela que põe ordem, também, nos nossos pensamentos;
  •    Fortaleza ou valor (Andréa) é a que faz com que as paixões mais nobres predominem e que o prazer se subordine ao dever;
  • Temperança (sofrosine) é a virtude da serenidade, equivalente ao autodomínio, à harmonia individual (Valls, 1999:27).

 

O resgate do pensamento grego, na disciplina, tem continuidade com a abordagem do pensamento de Aristóteles que além de profundo pensador especulativo, praticava a psicologia e levava muito a sério a observação empírica. Discípulo de Platão, Aristóteles se opõe ao dualismo ontológico de seu mestre. Acredita que o homem, através da razão, busca a felicidade, entendida como bem supremo. Explicita na sua  – Ética a Nicômaco –  as virtudes por ele consideradas essenciais: amizade, justiça, temperança, liberdade, coragem, magnanimidade. No entanto, a contemplação se constitui o maior dos bens, o bem mais precioso.

Entre suas obras, destaca-se ainda: a Política e a Metafísica, onde se encontram elementos que foram resgatados posteriormente, por Tomás de Aquino e pelo neotomismo que fundamentam princípios explicitados no Código de Ética do (a) Assistente Social, elaborado em 1947. Esta articulação entre esses princípios e os códigos de ética profissional se realiza, na segunda unidade da disciplina, momento no qual se vai estudar o Código com o objetivo de identificar e caracterizar o se significado e possibilidade de materialização no cotidiano (Vazquez, 1990; Valls, 1999).

O último pensamento analisado, em relação à Grécia, refere-se aos Estóicos e Epicuristas pensadores que surgem na Grécia à época da sua decadência, ruína e perda de autonomia, ou seja, no tempo da queda da pólis e afirmação do império macedônico. Observa-se, então, que a reflexão ética não se fundamenta mais nas questões políticas da pólis, mas no que diz respeito ao Universo e à subjetividade humana. Para os estóicos, por exemplo, o bem supremo é viver de acordo com a natureza sem se deixar levar por paixões ou sentimentos inferiores. Já para os epicuristas, não há nenhuma influência divina na vida dos homens. Libertado dos valores religiosos, o homem pode buscar o bem através do prazer. Em conseqüência dessa modificação, na direção do pensamento filosófico grego, a unidade entre ética e política, sustentada pela ética antiga, entra em decadência (Valls, 1999).

Considerando a perspectiva de resgate histórico da ética, a disciplina sinaliza para a discussão sobre Ética Cristã Medieval, constituída no momento em que o Cristianismo se eleva sobre as ruínas da sociedade grega e romana e se impõe durante séculos. Todas as manifestações da vida medieval estão impregnadas da religião oficial de Roma. A ética cristã sistematizada, inicialmente, por Sto. Agostinho se contrapõe ao racionalismo ético dos gregos, na mesma medida em que se realiza um processo de osmose, ou seja, de absorção dos princípios filosóficos gregos, adaptando-os à lógica cristã (Valls, 1999).

Já a Ética Moderna, dominante desde o século XVI ate inicio do século XIV, caracteriza-se por sua tendência antropocêntrica. Neste período, incrementam-se as forças produtivas, o desenvolvimento da ciência moderna e as relações capitalistas. Surge, também, uma nova classe social: a burguesia. Do ponto de vista ideológico, a religião deixa de ser a forma de pensamento dominante e absoluta e a igreja Católica perde sua função de guia do processo de construção do conhecimento. Entre outros pensadores desta fase, destacam-se Kant e Hegel.

A perspectiva ética de Kant é formal e autônoma, ou seja, postula um dever para todos os hímens, concebendo o comportamento moral equivalente a um sujeito autônomo, livre, ativo, criador e produtor. Hegel, por seu lado, considera o homem como idéia, razão ou espírito absoluto: a realidade real. A sua atividade moral não é senão uma fase do desenvolvimento de espírito ou uma forma como o espírito se manifesta e se realiza (Vazquez, 1990).

A Ética Contemporânea contesta, desde sua origem, o formalismo kantiano e o racionalismo de Hegel, através do existencialismo – perspectiva filosófica identificada com o pensamento de Kierkegard e Heidegger – do pragmatismo e da psicanálise, que procuram compreender aspectos do irracional no comportamento humano.

O marxismo emerge no cenário intelectual e histórico concreto a partir das análises realizadas por Marx sobre as determinações dos diferentes modos de produção que caracterizaram as formas de organização social, de modo especial o capitalismo. Oferece elementos significativos para a ética contemporânea, ao tempo em que indica bases teóricas e praticas para uma nova moral, buscando interpretar o homem na sua dimensão concreta, enquanto unidade indissolúvel – práxis ser produtor, transformador, criador que através do trabalho transforma a natureza externa, nela se plasma e, ao mesmo tempo, cria um mundo à sua medida e de acordo com suas necessidades.

Em sua ontologia, Marx concebe o homem como ser social, portanto, trata-se de um ser que produz e cria determinadas relações sociais de produção e, como ser histórico, pode modificar estas relações sociais mediante certas condições objetivas e, sob o impulso das contradições, provoca a transformação da base econômica e da superestrutura ideológica que compreende, dentre outras, a ética e, consequentemente, a moral (Vazquez, 1990).

De acordo com alguns pensadores, tais como Leonardo Boff, a ética, na atualidade, centra-se em três aspectos com dimensões planetárias: a crise social, a do sistema do trabalho e  a crise ecológica (Boff, 2000).

Observa-se, portanto, que é possível identificar, no debate sobre a ética atualmente, elementos que resgatam princípios e valores da ética na antiguidade e na sociedade moderna. Isso ocorre num momento conjuntural de afirmação do projeto ‘neoliberal’. Entender esse complexo mundo de valores e suas implicações na realidade é um dos desafios éticos atuais.

Para uma maior compreensão da crítica à moral neoliberal presente no debate sobre a ética atualmente, destaca-se o que diz Oliveira (1999): fala-se hoje em mudanças rápidas e profundas dos valores subjacentes à convivência entre os homens, o que implica, implícita ou explicitamente, ruptura com o ethos culturalmente transmitido. Observa-se um individualismo cada vez mais difuso que vai se impondo como mentalidade subjacente aos comportamentos das pessoas em sua convivência social.

A ‘ética’ do sucesso a qualquer custo torna-se elemento aceito acriticamente, mesmo com a substituição, em muitas situações, do direito pela força.  O mais forte estabelece as regras da vida em comum. A partir desse ponto de vista, o principio ‘ético’, se é que se pode considerá-lo como tal, seria levar vantagem em tudo. Nessa ótica, nada importa: a depredação da natureza, a expulsão do homem do campo, a agressão ao Índio. No que diz respeito à prática política, Oliveira (1999) problematiza, ainda, a existência de práticas comumente naturalizadas de corrupção generalizada; clientelismo, autoritarismo, demagogia em diferentes níveis; oportunismo desmascarado; irresponsabilidade social; violência e prepotência.  Sobre a moral neoliberal ressalta, ainda, o referido autor que os meios de comunicação reproduzem e reforçam esta perspectiva de homem e de vida, fortalecendo a idéia do homem consumista, cujo fim principal é o ter e o prazer.

Há, desse modo, um distanciamento entre as determinações jurídicas que orientam para uma ordem política e social, baseada na Constituição do país, fundamentada nos direitos sociais do cidadão e a nossa sociedade que está longe de incorporá-las como valores de convivência social. Segundo o mesmo autor, “a lei, ao invés de ser vista como condição de possibilidade de efetivação de direitos, passa a ser considerada como inimiga da qual se deve fugir como se puder” (Oliveira, 1999).

Esse comportamento vai fomentando uma mentalidade individualista que desvaloriza propostas de caráter coletivo. Observa-se, aos poucos, que as perspectivas universalizantes são secundarizadas, ao tempo em que emerge uma concepção de ética, predominantemente, de caráter particular.

Desnecessário é ressaltar que a emergência e o predomínio dessa mentalidade, no nosso contexto, têm como força propulsora as formas atuais de organização econômica, política e social. A ascensão e o crescimento do projeto neoliberal, em nível mundial, possibilitaram a reciclagem do capitalismo na sua concepção mais sofisticada, ou seja, selvagem, provocando a desestruturação de organizações da vida social e do trabalho.

Estuda-se, assim, durante a disciplina, a moral, situando-a histórica e socialmente, como um produto das relações que o homem estabelece em suas atividades: produtiva, social e espiritual. Desse modo, procura-se indicar como a moral está circunscrita num contexto específico, tendo o papel não apenas de justificar, mas de regular as relações humanas, segundo seus objetivos. A superação dessa moral implicará sempre em um novo olhar e na mudança de atitude em relação a questões significativas, com as quais nos deparamos no quotidiano profissional. Assim, é possível compreender as múltiplas concepções acerca da moral que convivem, simultaneamente, numa mesma sociedade.

Na seqüência do conteúdo da disciplina, procura-se apresentar questões sobre as quais os estudantes já manifestaram um certo discernimento, no sentido de aprovar ou rejeitar determinados comportamentos  sob uma perspectiva reflexiva, apoiada nos parâmetros da escala de valores que possuem. Em face de determinadas circunstâncias, busca-se refletir quais valores devem orientar uma dada ação. Assim, é que, cotidianamente, nos indagamos: que devo fazer? É correto fazer isso? “As perguntas pueris contém dois momentos: o saber que não se sabe, a ausência de preconceitos, o questionamento dos conceitos prontos e acabados, por um lado e por outro a sede de saber do conhecimento” (Heller, 1983:22).

As indagações são muitas. Os dilemas morais são constantes e pertinentes. Freqüentemente se questiona, por exemplo: é certa a realização da esterilização obrigatória, tendo em vista prevenir a fome ou a catástrofe econômica? Podemos admitir os saques aos estabelecimentos comerciais, quando as pessoas estão com fome? Como explicar a seca secular no nordeste, em relação a outras regiões do país? É correta a realização do aborto, quando identificada mal formação nos fetos? A eutanásia deve ser realizada quando a esperança de vida se extinguiu? O que dizer ou como analisar a apropriação indevida de recursos públicos: o seu desvio e uso inapropriado, nos diversos setores, instâncias que compõem a vida social, na política institucionalizada, no esporte, na economia, (bancos empreendimentos da construção civil) e, até mesmo, na área do poder judiciário?

Ressalte-se que uma das formas mais comuns de responder ao conteúdo moral implícito nessas interrogações é a invocação e a explicação a partir da ótica religiosa, pela vontade divina e do sobrenatural.

Vazquez afirma que para se estabelecer a relação entre o que é bom e o que não é, duas questões fundamentais devem ser consideradas: bom para quem? E em que consiste o bem?

Partindo desses questionamentos, procura-se trabalhar com os estudantes a idéia de que quando o bem está circunscrito à satisfação e ao bem estar de um indivíduo, prescindindo o bem da coletividade, não seria correto considerá-lo como bem. Isso porque só a superação e a compatibilização entre interesses individuais e coletivos proporcionaria o ideal ético.

Nessa perspectiva de busca do bem, se produz a moral, aqui entendida como “conjunto de normas e regras destinadas a regular as relações dos indivíduos em um determinado momento histórico” (Vazquez, 1990). Assim sendo, as morais se sucedem, se modificam, de acordo com os interesses das sociedades. A ética como ramo da filosofia, que estuda estas morais representa o conhecimento da moralidade em sua totalidade, nas suas contradições e historicidade.

A ética em Serviço Social, também, reflete os diferentes momentos da historia da profissão. A discussão sobre a moral o Serviço Social vem se constituindo como resultado da análise sobre a forma de produção social, superando as bases tradicionais e tendo como compreensão que a ética profissional está para além, é subjacente e transversal à estrutura e conjuntura social do fazer do cotidiano profissional.

Em relação às reflexões realizadas pelos alunos e alunas, a esse primeiro nível de abordagem, observa-se um certo grau de compreensão, referente a uma postura filosófica. Os estudantes atingem um nível de reflexão crítica, na medida em que percebem sob a forma de análise, os valores que se devem adotar em relação às questões cotidianas, para evitar o senso comum e os pré-julgamentos a busca de apreender o saber verdadeiro. A esse respeito, podemos nos reportar a Heller quando esta afirma que este saber: “representa uma posição teórica que requer a superação do particularismo individual” (Heller, 1983:108). Alguns estudiosos de filosofia dizem que, neste procedimento, ou seja, na consideração da face e contra-face de uma questão, constitui-se uma atitude crítica, um pensar crítico.

Através dessa primeira etapa, busca-se, alcançar, também, o desenvolvimento da reflexão para posterior formação de um conhecimento sistemático e de um agir profissional crítico, bem como proporcionar elementos para a construção de uma nova visão de mundo.

Durante, ainda, a primeira unidade, estudam-se as categorias subjacentes à constituição de uma Ética não apenas profissional, mas uma ética da atualidade que, segundo Boff, “configura a atitude de responsabilidade e de cuidado com a vida, com a convivência societária, com a preservação da Terra, com cada um dos seres nela existentes e com a identificação de um derradeiro Sentido do Universo” (Boff, 2000:26).

A análise, a crítica e a visão de mundo consideradas anteriormente vão constituindo-se em pressupostos para a concepção de moral que se estabelecerá na prática profissional e em compatibilidade com o Código de Ética Profissional de 1993, no qual está explicitada uma dada concepção de moral.

Uma outra categoria estudada é a dos valores. No processo de escolha, supõe-se que os valores não existem sem que estejam diretamente vinculados aos sujeitos históricos e sociais que lhes atribuem uma determinada escala de hierarquia. Os valores, excetuando-se aqueles que constituem os elementos da natureza são produtos humanos.

Destaca-se entre os valores estudados, a liberdade, cujo enfoque geralmente provoca, entre alunos e alunas, uma forte polêmica. Isso porque o entendimento dos estudantes consiste numa interpretação restrita sobre o que é liberdade, ou seja, enquanto sinônimo de fazer o que se quer, quando e como se quer.

A tradição liberal, originada em Locke, valoriza a autodeterminação da liberdade, reduzindo-a ao plano individual. Heller, ao contrário, refletindo sobre a liberdade, enfatiza que esta pode ser considerada como o “Sumo Bem” da filosofia burguesa (Heller, 1983). A discussão sobre liberdade tem em Vazquez aspecto significativo, considerando a relevância que dá à questão da responsabilidade: “não basta julgar determinado ato segundo uma norma ou regra de ação, mas é preciso também examinar as condições concretas nas quais ele se realiza, a fim de determinar se existe a possibilidade de opção de decisão necessária para poder imputar-lhe uma responsabilidade” (Vazquez, 1990:91).

Procura-se construir com o corpo discente, através dos elementos constituintes da teoria de alguns autores, uma noção de liberdade interdependente, de tendência mais coletiva, sem, no entanto, eliminar da sua racionalidade, a responsabilidade individual.

Neste sentido, privilegia-se uma análise dos valores contidos nos Códigos de Ética do (a) Assistente Social. Procura-se observar se estão em sintonia com certa generalidade que a ética comporta ao tratar dos aspectos cotidianos e das situações concretas, sem perder de vista que a função da ética é a reflexão crítica sobre a moralidade para melhor esclarecimento e compreensão da realidade.

Integra, ainda, o conteúdo da disciplina uma reflexão sobre as sistematizações presentes no debate profissional sobre a ética. Ressalte-se a preocupação de que, apesar dos avanços e do acúmulo de conhecimentos obtidos pelo Serviço Social, no debate sobre a ética, ainda se espera a elaboração de elementos substanciais que incorporem seu significado histórico filosófico, estabelecendo a relação com as categorias que dão suporte aos princípios do Código de Ética.

Considerando este aspecto, procura-se identificar o conhecimento histórico sobre a construção das categorias que constituem os princípios contidos no nosso Código de ética atual: liberdade, cidadania, democracia, justiça social, direitos humanos, eliminação da discriminação baseada em preconceitos e outros no intuito de refletir sobre o projeto ético-político profissional e o projeto.

Nesse sentido, por exemplo, quando se discute, sob o ponto de vista de uma ética emancipatória, a questão da democracia, surge o questionamento sobre como realizá-la, tendo em vista a materialização de um outro projeto societário, uma vez que, na perspectiva liberal hegemônica, a democracia afirma-se, sobretudo, formalmente.

Discute-se, ainda, o princípio da cidadania com o objetivo de fornecer elementos para o entendimento sobre as possibilidades de avanço, considerando as raízes históricas do termo; a diversidade de enfoque utilizados no cotidiano; as lutas sociais e o papel desempenhado pela classe trabalhadora neste processo.

Com relação à equidade e justiça social, questiona-se qual o seu significado histórico e como podem ser viabilizadas na atual conjuntura, bem como em que medida o Serviço Social pode interferir nesta instância ao materializar seu projeto ético-político.

Dando continuidade a reflexão sobre os princípios do Código de 1993, o eixo da discussão passa pelas seguintes questões: como os preconceitos se desenvolvem e quais as suas expressões na história brasileira? Quais projetos profissionais podem ser desenvolvidos, no sentido de contribuir para redução ou mesmo a extinção dos procedimentos e das discriminações em qualquer aspecto da convivência social?

Em relação aos direitos humanos, busca-se referências em autores que, a exemplo de Tosi, afirmam que “as violações sistemáticas e maciças dos direitos humanos aumentam com a mesma velocidade da assinatura dos tratados e são tão universais quanto as declarações que o proclamam, como denunciam quotidianamente os relatórios das Nações Unidas e das Organizações Não-Governamentais (…) Para encontrar uma resposta a este paradoxo, nos parece crucial enfrentar o problema da relação que se estabelece na modernidade, entre os direitos civis e políticos (ou direitos de liberdade) e os direitos econômicos sociais (ou direitos de créditos) proclamar a integralidade, a indissolubilidade dos direitos humanos, é certamente algo de louvável, mas pode escamotear e esconder o problema da heterogeneidade dos direitos e, às vezes, de uma possível contrariedade entre classes de que não podem ser garantidos ao mesmo tempo com a mesma eficácia (…) A globalização dos direitos humanos tende a incluir um número sempre maior de direitos, de primeira, de segunda, terceira e quarta geração; mas não basta acrescentar a lista dos direitos para que estes se tornem efetivos. Existem direitos fundamentais sem os quais a longa lista de direitos se torna vazia: sem os direitos econômicos e sociais não é possível garantir os direitos sociais e políticos. Os direitos de liberdade só podem ser assegurados garantindo a cada homem as condições mínimas de bem estar social que lhe permita viver com dignidade” (Tosi, 2001:12-13).

Nesta perspectiva, é fundamental, no ensino da disciplina de ética profissional, a análise das perspectivas concretas em relação à efetiva possibilidade quanto à materialização dos valores em nossa sociedade e de como é possível, em termos teóricos, pontuá-los para que não se limitem a uma mera abstração do Código de Ética Profissional.

Finalmente, procura-se estabelecer conexões entre as categorias subjacentes ao estudo da ética e aos Códigos de Ética, que são analisados numa perspectiva histórica. Nesse sentido, a prática é observada e analisada segundo os parâmetros inspirados no Código de Ética vigente.

Em relação aos diversos Códigos de Ética elaborados no Brasil pela profissão, ao longo do seu percurso histórico, indica-se as questões pontuadas a seguir. Cada uma delas, tem um objetivo a ser atingido, no que diz respeito ao processo de conhecimento de demandas postas à profissão, ao contexto econômico, social e político do país, que se inscrevem os Códigos de Ética, bem como das correntes filosóficas e perspectivas metodológicas que influenciaram cada código. Este estudo, também, proporciona elementos para o desvendamento da historia do Serviço Social através da compreensão das determinações postas à profissão e a análise da sua ruptura com a base tradicional.

Nesses termos, as questões indicadas para o estudo dos Códigos são:

  • contexto histórico do Brasil no momento em que cada Código foi elaborado;
  • momento vivido pela profissão de Serviço Social nesse contexto histórico;
  • as demandas que levaram à elaboração de cada Código de Ética Profissional;
  • correntes filosóficas e metodológicas que influenciaram na formação de cada Código de Ética Profissional;
  • o perfil característico de cada um dos Códigos de Ética;
  • participantes da elaboração dos Códigos de Ética Profissional;
  • o significado do Código de Ética Profissional para a profissão de uma sociedade mais justa.

 

Os depoimentos dos alunos e alunas, em relação às questões apresentadas, vêm oferecendo contribuição efetiva para o ensino da disciplina, confirmando a convicção inicial de que o estudo da Ética Profissional  requer uma adequada base de conhecimento filosófico. A disciplina permite aos estudantes adquirirem uma visão mais aprofundada, ou seja, a fundamentação filosófico-histórica que subjaz os princípios do Código do (a) Assistente Social atualmente.

Podemos afirmas que a articulação entre fundamentos filosóficos e Código de ética no ensino da disciplina de ética profissional é imprescindível para a formação de profissionais mais críticos em relação às diferentes expressões da dimensão ética/antiética da questão social.

Tendo como finalidade a materialização do conteúdo do Código, acredita-se na necessidade de constituição de uma formação cada vez mais alicerçada e coerente com os princípios que o norteiam, promovendo, também, o desenvolvimento de valores compatíveis com o ideário Profissional, em um processo de retroalimentação, que refletirá em atitudes éticas, não apenas numa postura de dever profissional, mas numa perspectiva mais ampla da construção de um projeto ético-político profissional e de uma sociedade mais justa.

 

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Um olhar filosófico sobre o Código de Ética do (a) Assistente Social

 

Cinara Nahra1

O filósofo é antes de tudo um ser inquieto. Alguém que se estranha com o seu mundo, alguém que se estranha com aquilo que está estabelecido e pergunta, então, os porquês. O porque do filósofo, porém, não tem apenas o sentido da divagação. O porquê do filósofo tem o sentido da tentativa de elucidação, da tentativa de procurar deixar as coisas mais claras, procurar encontrar sentido mesmo lá, naqueles recônditos lugares aonde não parece haver sentido nenhum.

Perguntar pelo porque das coisas, nos conduz, inevitavelmente, à busca por fundamentos e princípios. Isto é constitutivo da filosofia. A filosofia é uma atividade que historicamente se relaciona à busca de fundamentos e a análise e estabelecimento de princípios. É por isso, que qualquer filósofo que se proponha a analisar o atual Código de Ética do Assistente Social já se encontrará, de antemão, bastante à vontade. Exatamente porque estamos diante de um código que está baseado em princípios e que estabelece, claramente, quais são eles. E esta é uma primeira virtude do Código de Ética do Assistente Social. Trata-se de um código cujas regras, deveres e direitos são claramente estabelecidos a partir de princípios.

Isto pode parecer óbvio, mas não é. Muitos códigos de ética profissionais têm entre seus defeitos exatamente o fato de não explicitarem os princípios nos quais estão baseados. Ao não fazerem isto, dão a aparência de consenso a algo que não foi nem mesmo discutido e, que por isso mesmo, jamais pode ser efetivamente absorvido pela categoria.

Códigos de Ética não devem existir “pra bonito” ou para serem utilizados como estratégias de marketing. Códigos de Ética devem ser efetivamente seguidos pela categoria, devem efetivamente orientar a prática dos profissionais. Para que isto aconteça, porém, ele deve ser aceito por este. E para que seja aceito, ele deve ser fruto de uma elaboração coletiva, que, necessariamente, passa pela discussão dos princípios.

Discutir princípios, neste caso, significa discutir a função e a razão de ser de uma categoria profissional. Quem somos, afinal? Quais são nossos compromissos básicos? O que deve sempre mover nossas ações enquanto profissionais?


1 Professora do Departamento de Filosofia da UFRN. Doutoranda em Ética Política e Políticas Públicas na University of Essex. Membro fundadora do Movimento pela Ética e Cidadania em Natal.

 

O atual Código de Ética dos Assistentes Sociais dá estas respostas exatamente nos seus Princípios Fundamentais. Tudo o mais, todos os outros títulos, com seus capítulos e artigos, são decorrentes destes princípios, que definem, em última instância, a identidade do Assitente Social.

O que nos propomos a fazer neste artigo e nos parece que essa é uma das tarefas possíveis de serem exercidas pela filosofia, é oferecer uma contribuição com o objetivo de auxiliar na elucidação e discussão do sentido dos 11 princípios fundamentais estabelecidos no código.

Princípio 1

Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais

Para entender o que significa reconhecer a liberdade com valor ético central, é preciso, antes de tudo, entender o que significa liberdade. O conceito de liberdade, tal como vem sendo trabalhado ao longo da história da filosofia, tem dois sentidos. No primeiro sentido, entende-se liberdade como sinônimo de livre-arbítrio. Liberdade, assim entendida, é a capacidade que só os humanos têm, entre todos os animais, de efetivar escolhas, de tomar decisões. Quando se diz que o homem possui livre-arbítrio, está se querendo dizer que os homens não estão determinados em suas escolhas, seja pela natureza, seja por Deus. Cabe apenas aos seres assumir a total responsabilidade por seus atos. Ser livre significa, também, assumir, de frente, a possibilidade de que nossas escolhas não sejam necessariamente boas, não estejam necessariamente comprometidas com o bem. Liberdade, neste sentido, é o que podemos chamar de liberdade negativa.

Há, no entanto, um outro sentido de liberdade dentro da filosofia. Assim, o homem livre é aquele que é já autônomo, aquele que age moralmente, por sua própria vontade. O homem livre é aquele que age comprometido com o bem. O homem livre, então, é o homem bom, o homem moral. Liberdade, neste sentido, é o que podemos chamar de liberdade positiva2.


2 A distinção entre liberdade negativa, entendida como livre-arbítrio e liberdade positiva é tematizada por Immanuel Kant. A liberdade prática negativa é definida por ele na Fundamentação da Metafísica dos Costumes como sendo a propriedade da vontade de agir independente de causas estranhas que a determinem e, a positiva (autonomia) como a propriedade da vontade de dar a lei para si própria. Observe-se que a definição de negativo ou positivo em Kant não tem um caráter valorativo.

A qual destes sentidos da palavra liberdade este princípio do presente código parece estar se referindo? Aos dois, acreditamos. E isto fica claro quando examinamos, na totalidade, os 11 princípios. O compromisso do Assistente Social com a liberdade no sentido do livre-arbítrio deve ser claro. Trata-se do respeito às opções individuais de quem quer que seja, ainda que, pessoalmente, o profissional não concorde com elas. Para além desse respeito, entretanto, o profissional se compromete com um significado maior de liberdade, que é justamente a liberdade na perspectiva de moralidade, liberdade no sentido de comprometer-se, sempre, com o outro, com os outros, fugindo a uma visão individualista e egoísta.

É a partir daí que o princípio vai apontar para noções ditas políticas, como emancipação, autonomia e expansão dos indivíduos sociais. Estas noções vão derivar, justamente, de uma exigência moral. Se somos seres morais e, portanto, livres no sentido de liberdade positiva, a emancipação e a autonomia dos povos se coloca, também, como uma exigência. Seres morais não podem aceitar um mundo em que os povos e os indivíduos sejam escravos ou mesmo, não autodeterminados.

É esse compromisso com esta segunda noção de liberdade que vai dar ao Assistente Social o sentido maior de sua função. Não cabe ao Assistente Social impedir os indivíduos de exercerem o seu livre-arbítrio, mas cabe, sempre, orientá-los para que decidam e ajam comprometidos com o que poderíamos chamar de “o outro”, comprometidos com a humanidade.

 

Principio 2

Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo

O segundo principio do código de ética do Assistente Social surge quase como um corolário do primeiro. Se faz parte da profissão do Assistente Social comprometer-se com a moralidade e, portanto, com a liberdade, no sentido em que analisamos anteriormente, segue, dedutivamente, o compromisso com a defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa à toda forma de autoritarismo e arbitrariedade.

Não custa, porém, que recordemos quais são os direitos humanos. Convenciona-se, hodiernamente, e parece ser esta uma boa convenção, que os Direitos Humanos estão estabelecidos na Carta das Nações Unidas, composta pela Declaração dos Direitos Humanos e outros.[2]

Nunca é demais recordar os artigos e pontos principais desta declaração. Lá está estabelecido que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos e que estes devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Estabelecido está, também, que todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente declaração, sem distinção nenhuma. Reza que todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, que ninguém será mantido em escravatura ou em servidão, ninguém será submetido a torturas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Reza também, que todos são iguais  perante a lei; todos têm direito a que suas causas sejam julgadas por tribunais independentes; ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado e ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, seu domicílio ou na sua correspondência.

Consta, ainda, na Declaração Universal dos Direitos do Homem que toda pessoa tem direito de circular e escolher sua residência no interior de um estado, bem como abandonar o país em que se encontra, inclusive o seu, e o direito de regressar do seu país. Toda pessoa tem direito ao asilo e a nacionalidade, direito de casar e de constituir família sem distinção de raça, nacionalidade ou religião. Toda pessoa tem direito à propriedade. Tem direito, também à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, bem como o direito à liberdade de opinião e de expressão e direito à liberdade de reunião e de associações pacíficas. Toda pessoa, também, tem direito de tomar parte na direção dos negócios públicos de seu país e direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas de seu país. Reconhece-se a vontade do povo como fundamento da autoridade dos poderes públicos e que deve exprimir-se através de eleições honestas.

É afirmado, também, que toda pessoa tem direito à segurança social e pode exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. Todos têm direito à salário igual por trabalho igual, a uma remuneração equitativa e satisfatória, a fundar sindicatos e a eles se filiar para defender seus interesses,  o direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas.

Finalmente, reza a declaração que toda pessoa tem direito à educação e que esta deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, bem como favorecer a compreensão, amizade e a tolerância entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, bem como a manutenção da paz. Toda pessoa tem direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade e direito à proteção dos interesses ligados à produção científica, literária ou artística de sua autoria. Toda pessoa tem direito a uma ordem capaz de tornar efetivos os direitos e liberdades, enunciados nesta declaração, isto sem esquecer que o indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade e que, no exercício deste direito e no gozo destas liberdades, ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista, exclusivamente, a promover o reconhecimento e o respeito aos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.

Parece que são esses os direitos que os Assistentes Sociais devem defender.

 

Princípio 4 – perguntar à professora

Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida

 

Definir o que é democracia é uma das tarefas mais difíceis que poderiam ser assumidas por quem quer que se ocupe de política. A definição clássica, segundo a qual democracia é o governo em que o povo exerce a soberania, nos remete sempre, num segundo momento, para dúvidas e discordâncias, afinal o que significa o exercício da soberania pelo povo?

Uma boa proposta de definição mínima de democracia é dada por Norberto Bobbio (1989:18): “afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras, (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Todo grupo social está obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria sobrevivência, tanto interna quanto externamente. Mas até mesmo as decisões do grupo são tomadas por indivíduos (o grupo como tal não decide). Por isso, para que uma decisão tomada por indivíduos (uns, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo e à base de quais procedimentos”.

A definição de Bobbio nos mostra, então, que democracia nos remete sempre e inevitavelmente para o estabelecimento de regras, regras estas que devem ser feitas para serem seguidas e conhecidas por todos. Isto é uma diferença básica das estruturas democráticas em relação a estruturas autocráticas. Nos governos autocráticos não existem regras claras e definidas e isso faz com que os detentores só poder possam fazer o que bem quiserem e entenderem.

Quando o código dos Assistentes Sociais se posiciona a favor da democracia, ele está se posicionando em prol de um governo que surja da vontade do povo, e, portanto, da maioria da população e que tenha regras de condução da coisa pública que sejam claras, definidas, conhecidas e universais.

Observe, porém, que o código não fala apenas de defesa da democracia, mas fala, também, da defesa do aprofundamento da democracia, remetendo para a socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida. A concepção de democracia, pois, apontada pelo código, remete para a incorporação de elementos econômicos e sociais. Democracia não seria apenas a existência de regras políticas claras e definidas que garantissem o controle da sociedade sobre o governo, mas democracia exigiria, também, uma ordem social mais justa na qual os frutos daquilo que é produzido fossem melhor distribuídos. A democracia, pois, a que o código aponta é uma democracia que, no mínimo, seja capaz de garantir condições de vida minimamente descentes para a população. O que o código faz, então, é comprometer os assistentes sociais com a construção desse projeto de garantir qualidade de vida para todos.

 

Princípio 5

Posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática

Este princípio trata da questão das políticas públicas, vinculando-as à questão da justiça social. Afinal, se todos tiverem acesso aos benefícios obtidos através de programas e políticas sociais, isto terá sido um passo importante no sentido de nos aproximarmos de uma sociedade que seja mais justa. Estes programas, porém, devem ser geridos democraticamente, ou seja, devem ser controlados pela população e seu funcionamento deve estar baseado em regras claras e definidas.

O principio quinto é uma espécie de corolário dos anteriores e dá o fechamento deste primeiro bloco de princípios, que são aqueles relacionados ao macro-social. Se o código se orienta a partir de princípios de defesa da liberdade, de defesa dos direitos humanos, de construção da cidadania e da democracia, ele vai apontar para uma concepção de justiça social, e esta implica, necessariamente, no estabelecimento de políticas públicas capazes de garantir, no mínimo, os direitos sociais que aventamos quando analisamos o princípio 3, a saber, o direito à alimentação, segurança, trabalho, educação, saúde e habitação.

 

Princípio 6

Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças

 

O Princípio 6 reforça o caráter profunda e efetivamente ético do código de ética dos assistentes sociais, mostrando que nele não se faz confusão entre moral e moralismo.

O ponto de vista universal, que é o ponto de vista efetivamente ético, o ponto de vista efetivamente moral, é completamente diferente do ponto de vista que poderíamos chamar de “moralista”. Moralismo, poderíamos dizer que é uma concepção deturpada em relação ao que é Moral, ao que é certo e ao que é errado. É aquela que se pretende emitir julgamentos de valor negativos sobre aquilo que se refere ao comportamento ou que valora distintamente pessoas ou grupos de pessoas em função de certas características naturais (físicas, sexuais ou geográficas) ou opções diferenciadas.

A confusão entre moral e moralismo é clássica na nossa sociedade e muitos códigos de ética reproduzem-na. Não é o caso deste código. O Código de Ética do Assistente Social estabelece a luta contra o preconceito e o respeito pela diferença, que são princípios efetivamente morais, efetivamente éticos. Ao fazer isso, estabelece como um princípio ético a luta contra o moralismo, uma vez que moralismo e preconceito estão intimamente imbricados. O preconceito é fruto de uma concepção moral deturpada, ou se quiserem, uma concepção moral moralista. O preconceituoso é antes de tudo um “negador de diferenças”. O preconceituoso acha que tudo aquilo que é diferente de si próprio, pelo mero e único fato de ser diferente de si próprio, é inferior. O preconceituoso não aceita a diferença e valora como ruim tudo aquilo que não é feito a sua imagem e semelhança4.

Ao colocar como um princípio o combate ao preconceito e a discriminação, ao colocar o respeito às diferenças como um princípio moral, o Código de Ética do Assistente Social consagra à palavra ética o seu verdadeiro sentido e mostra-se como sendo, efetivamente, um Código de Ética. E com isto estabelecendo já é possível tratar de outros tipos de princípios.

 

Princípio 7

Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o constante aprimoramento intelectual

 

O Princípio 7 inaugura o bloco dos princípios que dizem respeito a atividade do Assistente Social do ponto de vista mais especificamente relacionado à ação imediata. O pluralismo de correntes, opiniões e visões teóricas deve ser um princípio básico em qualquer profissão. Se o princípio primeiro do código de ética que estamos tratando é justamente o reconhecimento da liberdade como valor ético central, esse reconhecimento, obviamente, deve se manifestar no que diz respeito à forma de tratamento das concepções e visões dos profissionais de Serviço Social.

Assim, é que todas as correntes devem ser respeitadas, bem como as posições dos profissionais vinculados a estas correntes, e isto significa pluralismo. Entenda-se, entretanto, que pluralismo não significa negação das diferenças, mas sim, a compreensão de que, para além das divergências que pode haver e que devem ser


4 A respeito desta discussão ver o livro Malditas Defesas Morais (Nahra, Cinara, ed. Cooperativa Cultural) e o texto da Conferência Moral e Moralismo da mesma autora apresentado no Seminário Ética na Contemporaneidade ocorrido em maio de 2001-Mossoró/RN.

discutidos e compreendidas, há algo que é fundamental, que é o respeito pelo outro, por suas concepções e a garantia de que esta poderá ser sempre expressada.

O princípio refere-se, também, ao compromisso com p constante aprimoramento intelectual e este é um aspecto de fundamental importância do ponto de vista ético. Aprimorar-se intelectualmente significa estudo e aperfeiçoamento constante do profissional, e isto claro, contribui para a melhoria do serviço oferecido pelo profissional individualmente e, por conseguinte, pela categoria como um todo.

 

Princípio 8

Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero

 

O princípio aponta para o compromisso da categoria com a construção de uma sociedade mais justa, uma sociedade sem dominação e exploração. Aponta, pois, para o compromisso dos Assistentes Sociais com a construção de um mundo melhor.

Esse compromisso já vinha se manifestando em todos os princípios anteriores. A diferença é que agora se fala de um projeto profissional e, portanto, vincula-se não apenas os indivíduos, particularmente, com essa opção, mas a categoria como um todo. É a categoria que deve se engajar nesse projeto, e isto é novo em nível de códigos de ética profissional no Brasil.

A colocação desse compromisso foge a visão tradicional e coorporativista de ética, que é a visão que, se não está explícita, se coloca, implicitamente, na maioria dos códigos profissionais. Estes códigos preocupam-se, geralmente, em estabelecer um conjunto de regras que protejam os profissionais na sua atividade, deixando, em segundo plano, a preocupação com um bem maior, que é a coletividade, a sociedade, o bem-estar daqueles que são os usuários dos profissionais, e que constituem, em última instância, o público em geral.

O código de Ética do Assistente Social, elaborado em 1993, foge a esta visão corporativista e estabelece, neste princípio, o compromisso com o público não apenas no sentido restrito, de que o bem público deve estar acima dos interesses corporativos, mas num sentido maior, de percepção que a sociedade , como está atualmente constituída, obstaculiza a plena realização do bem comum e, portanto, do próprio bem público. E ao fazer isto, o código estabelece como princípio ético que a categoria se posicione na perspectiva de uma sociedade outra, de um mundo outro, em que o bem comum possa ser efetivamente realizado. Esse mundo outro, obviamente, tem como pressuposto básico a inexistência de qualquer tipo de dominação e exploração, claro, porque se fundamenta no sentido segundo de liberdade do qual já falamos, e na autodeterminação dos povos e dos indivíduos.

 

Princípio 9

Articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem  dos princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores.

 

Este princípio aponta para a organização da categoria, no sentido da articulação da sua luta com outros setores profissionais e sociais que compartilhem dos mesmos princípios éticos estabelecidos no código.

O princípio 9 surge, então, como uma decorrência do princípio 8. Se o código tem entre seus princípios o compromisso da categoria com a construção de um mundo melhor, uma das conseqüências práticas mais imediatas disso é que a categoria articule-se com setores que também tem isto como princípio, a fim de que esses compromissos não sejam apenas um compromisso teórico, efetivando-se na prática, através da luta política.

Colocar este compromisso como sendo um princípio significa, também, estabelecer a luta política como um componente fundamental dos compromissos éticos da categoria. Não basta adotar uma concepção de bem comum, de coisa pública, de sociedade, é preciso lutar por ela, e para isso, evidentemente, faz-se necessária a unificação com setores que adotam esta mesma concepção.

 

Princípio 10

Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional

 

O que aparece no Princípio 10, já havia se desenhado no Princípio 7, através da menção ao compromisso com o constante aprimoramento intelectual. Como vimos, isto implica na melhoria do serviço oferecido pelo assistente social, e por isso, se coloca agora como um compromisso da categoria como um todo.

A prestação de um serviço de qualidade e a competência profissional constituem uma das questões éticas mais importantes em qualquer profissão, e não poderia deixar de ser diferente com os Assistentes Sociais. Se nos comprometemos com a construção de um mundo melhor, o primeiro passo para que efetivemos esse compromisso é na nossa própria prática. Não se muda nenhuma sociedade se não tivermos, cada um de nós, inseridos num processo de mudança de nós próprios, através de nossas concepções, mas, principalmente, através de nossas ações.

Quando um profissional, de qualquer setor, recebe um salário aviltante, o seu ímpeto inicial é o de não cumprir seus deveres profissionais a contento. É como se ele adotasse a ética do egoísmo, o “faça aquilo que é melhor para você e esqueça os outros”, como uma espécie de vingança: se me tratam de modo imoral, eu também serei imoral. O problema é que essa lógica é profundamente deturpada. Se o profissional faz “corpo mole” em seu serviço e não trabalha dando o melhor de si, quem sofre as conseqüências é o usuário, e em última instância, a população. Como, então, poder-se-á falar de bem comum, de qualidade de vida e de mundo melhor, se não contribuímos com nossa prática, naquilo que nos é dado fazer, para a efetivação desta tríade?

É por isso que o Código de Ética do Assistente Social tem entre seus princípios a competência profissional. Ser competente profissionalmente significa realizar o trabalho do melhor modo possível, com eficiência e dedicação, procurando atender as demandas postas pelo usuário, e assim, satisfazendo o público. Ao fazer isto, o profissional e a categoria se colocam efetivamente na perspectiva da construção do bem público e de uma sociedade melhor.

A adoção deste princípio, também, evita a concepção corporativista, assumindo a ética como esta deve ser entendida, ou seja, do ponto de vista do compromisso com o outro, do ponto de vista universal. A categoria não vê a defesa dos interesses particulares de seus membros como o princípio maior, a partir do qual todos os outros estão derivados. A categoria percebe, para além dela própria, os interesses do público como sendo os interesses maiores e, a partir daí, deriva as regras de conduta dos seus profissionais.

 

Princípio 11

Exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, idade e condição física

 

O Princípio 11 dá o fechamento aos princípios deste código. Na realidade, ele é o culminar de todos os compromissos éticos que foram estabelecidos nos outros princípios, estando, particularmente relacionado ao sexto princípio.

Se o Código de Ética do Assistente Social comunga da liberdade como princípio; da defesa dos direitos humanos; da busca pela construção da cidadania e da justiça social; bem como do combate ao preconceito; da busca pelo bem comum; do respeito pelo público e pela coisa pública, o exercício do Serviço Social não poderia dar-se de forma outra que não através de um profundo respeito pelo ser humano.

Respeito pelo ser humano implica, necessariamente, a não discriminação, a não negação de direitos a ninguém, o bom tratamento a todos, indiferenciadamente. Respeito pelo ser humano implica, no exercício profissional através do olho do universal, tratar  cada indivíduo como se este carregasse e representasse em sua pessoa, toda a nossa espécie, a espécie humana.

O que é discriminação? É a negação de direitos que são reconhecidos como sendo direitos de todo ser humano a determinados grupos ou pessoas em função de pertencerem a determinado gênero, determinada classe, determinada raça, determinada região ou terem determinada preferência sexual ou de crença que é perfeitamente compatível com a liberdade alheia. Já vimos quando discutimos o princípio 3 que o mais básico de todos os direitos, o direito fundante, é o direito de ter direitos. E o direito a ter direitos deve pertencer a todo ser humano, sem distinção. Se é assim, exercer a profissão sem discriminar  nem ser discriminado é uma espécie de direito fundante do exercício profissional de todas as categorias e deveria ser incorporado em todos códigos de ética profissionais.

Estabelecido, agora, este e os outros princípios do código de ética dos assistentes sociais, já podem ser estabelecidas as regras particulares que vão reger as diversas relações na qual os profissionais estão envolvidos. Regras estas que nunca poderão se opor a estes princípios básicos que fornecem o norte da atividade do Assistente Social e, do ponto de vista ético, definem a sua identidade enquanto categoria profissional.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

BOBBIO, Norberto – O Futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

BONETTI, Dilséa A. et al (Org.) Serviço social e ética: convite a uma nova práxis. São Paulo: Cortez; Brasília, DF:CFESS, 1996.

Carta dos Direitos Humanos – Organização das Nações Unidas. Publicação internet:

http/www.dhnet.org.br/direito/deconu/onu1.htm. 05/07/2001.  

KANT, Immanuel. Métaphysique des moeurs. Paris: Delagrave.

KANT, Immanuel. Critique de la raison pratique. Paris: Presses Universitaires de France, 1966.

NAHRA, Cinara. Malditas defesas morais. Natal: Cooperativa Cultural, 2000.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Possíveis interpretações dos princípios éticos do serviço social a partir da análise das tendências éticas contemporâneas

 

Maria Alexandra Monteiro Mustafá1

 

1. Considerações sobre as determinações históricas que resgataram a centralidade da questão ética do debate contemporâneo

O processo histórico que caracteriza a existência da vida humana sobre a terra tem permitido o acúmulo de diferentes experiências de modos de convivência social, bem como se constitui um acervo de produção de conhecimento que, por um lado, reflete, analisa e é determinado pela realidade social e, por outro, contribui significativamente na legitimação e/ou na transformação desse “modus vivendi”.

Podemos, portanto, afirmar que as determinações sócio-político-econômicas das formas de organização social são resultantes desta práxis histórica e das alternativas concretas de enfretamento das questões que se colocam como necessidades individuais dos homens entre si e com a natureza.

Dentro deste contexto, surge a necessidade da reflexão ética que pressupõe a criação de princípios e valores capazes de orientar a conduta dos homens em sociedade e a relação que estes estabelecem com o mundo objetivo do qual fazem parte.

Contudo, este movimento histórico não é linear e nem evolutivo; na realidade é pleno de contradições, o que justifica a existência de diferentes culturas, diferentes formas de organização social, política e econômica e de diferentes concepções de princípios e valores que fundamentam as mais variadas formas de compreensão sobre o sentido e o conteúdo da ética. Com base nestas reflexões, chegamos à conclusão de que não existe uma ética universal e absoluta, mas uma variedade de tendências éticas, fundamentadas respectivamente em diferentes concepções de homem e de sociedade.

Mesmo considerando que tais afirmações nos conduziriam necessariamente a um resgate histórico das diversas expressões éticas que inspiram/legitimaram o comportamento do homem enquanto ser social, para os fins deste artigo, nos deteremos, especificamente, na conjuntura que caracterizou o século XX,


1 Professora do departamento de Serviço Social da UFPE. Doutora em Filosofia pela Universidade Salesiana de Roma. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética (GEPE) – UFPE

mais particularmente no que se refere ao processo de consolidação e enfrentamento da questão social, condição evidenciada com o surgimento do modo de produção capitalista e objeto de estudo/intervenção da profissão de Serviço Social.

No entanto, vale considerar, que a discussão ética, neste contexto sócio-histórico, estava relegada a segundo p0lano em nível de importância, seja do ponto de vista de sua relação com a política, seja do ponto de vista epistemológico, no que se refere à sua inserção no rol das ciências humanas. Com efeito, se na antiguidade o debate ético se constituía elemento central na práxis política da sociedade grega (referencia determinante de todo o processo de construção do pensamento ocidental), o mesmo não se pode dizer sobre os rumos que assumiram tal debate no decurso da Idade Média, Moderna e Contemporânea.

Uma breve retrospectiva sobre este percurso histórico, nos permite afirmar que na antiguidade grega – lócus originário da sistematização filosófica sobre a ética – esta disciplina era entendida como fundamento da política, no sentido que ambas tinham com fim a busca da felicidade individual e coletiva dos cidadãos (mesmo que o conceito de cidadania fosse entendido em seu sentido restrito, excluindo desta condição mulheres, escravos e estrangeiros). Segundo Aristóteles, na Ética a Nicômaco e na Política, a felicidade é entendida como bem supremo, alcançável mediante o exercício da virtude, apreendida, por sua vez, num processo educativo, fundamentado na observância das leis que constituíam o corpo da Constituição, elaborada por cidadãos livres e iguais.

Esta intrínseca relação entre a ética e política é desvirtuada já na Idade Média, quando tanto a concepção de ética, quanto a de política passam a ser definidas por uma instância transcendental e a – história, pautadas pela inspiração na lei divina que determina a direção dos princípios éticos e políticos da sociedade feudal. Na Idade Moderna, acentua-se o divário entre ética e política, a partir de uma postura de subordinação da primeira à segunda, explicitada no processo de redefinição do Estado e da relação público-privado.

Trata-se de uma nova organização política – o Estado Moderno – onde a política passa a ser vista como instrumento de poder absoluto, capaz de controlar as tendências naturais de dominação do homem pelo homem, que põe em risco a própria sobrevivência da espécie. O pensamento político de Maquiavel e de Hobbes se constitui elemento fundamental na consolidação desta perspectiva, no sentido de que não se limita apenas a interpretar a realidade circunstante, mas atua como idealizador desta nova racionalidade estratégico-instrumental.

Apesar dos esforços realizados por pensadores como Rousseau, integrante do movimento Iluminista francês, no sentido de desconstruir esta lógica, a partir de uma nova concepção de homem e de sociedade que exige a redefinição da relação indivíduo – Estado e se constitui fundamento de uma perspectiva de resgate da democracia, é apenas com Marx que surgirá a possibilidade teórica e histórica da eliminação das relações, especialmente no modo de produção capitalista e da elaboração da perspectiva de uma sociedade emancipada.

Feitas tais considerações, vale lembrar que as concepções que definem a relação ética e política, anteriormente explicitadas não foram superadas definitivamente, mas se constituem elemento integrante do complexo ideológico característico dos modos de organização sócio-político-econômica das sociedades nos anos 1900. Para ilustrar tal afirmativa, podemos nos remeter ao pensamento de Weber, no tocante à sua contribuição no campo epistemológico, quanto ao conceito de ciência. Para Weber, em consonância com a perspectiva positivista, a ciência deve ser objetiva e desprovida de valores, portanto independente do julgamento de valor sobre o bem e o mal, o justo e o injusto. Cabe, portanto, à política, enquanto ciência positiva, debruçar-se sobre o exercício do poder e das formas de sua implementação na sociedade. O objeto da política, concebida em total desvinculação com a ética, legitima e reatualiza a racionalidade estratégico-instrumental que, como vimos, tem como eixo a preocupação com a manutenção do poder, dando prioridade ao aperfeiçoamento dos instrumentos administrativos e legais capazes de realizar tal objetivo. Do nosso ponto de vista, tal direcionamento contribui significativamente para a conversão dos instrumentos administrativos do Estado em órgãos formais e burocráticos que dificultam a retomada da discussão sobre o sentido da política e sobre o funcionamento do Estado, numa perspectiva de atendimento das necessidades sociais, o que representaria a reinserção do debate ético no âmbito da política, enquanto dimensão concreta da experiência histórica do ser social.

Para entendermos como se dá a retomada do debate ético na contemporaneidade, faz-se necessário uma breve consideração sobre as formas de organização sócio-econômico e políticas que caracterizaram as sociedades no último século e seus rebatimentos nas condições de vida do homem neste contexto, o que se constitui objeto de preocupação e essência da própria razão de ser da ética.

Na realidade, o século XX foi palco de consolidação, crise e reafirmação do modo de produção capitalista, bem como de tentativas e experiências concretas de sua superação, através da instauração do Estado de bem estar social e do socialismo real em algumas sociedades situadas geograficamente no centro e no leste da Europa e da Ásia. A experiência histórica do capitalismo tem gerado uma divisão dos países, em nível mundial, em capitalistas centrais e periféricos, divisão esta, pautada numa relação de exploração e de dominação, fundamentada no individualismo e no princípio da liberdade, entendido como livre iniciativa, direito à propriedade e não intervenção do Estado na economia. As formas de expressão das relações de produção têm assumido configurações diversificadas, em função das demandas do processo de modificação do capital tais como: Taylorismo, fordismo, toyotismo; o que tem gerado, consequentemente, formas diferenciadas de enfretamento do capital expressas no modo de organização da classe trabalhadora.

Dentro desta perspectiva, convém salientar que o Estado de bem estar social pode ser entendido como expressão contraditória da luta entre capital e trabalho, constituindo-se, por um lado, como alternativa de fortalecimento/legitimação do capital, numa perspectiva Keynesiana de inserção do Estado na economia, mediando a correlação de forças entre capitalistas e trabalhadores, a partir da implementação de políticas sociais de caráter universal; e, por outro lado, como tentativa reformista de superação do capital, a partir da consolidação de direitos sociais, fruto do avanço da própria luta de classes.

A experiência historicamente conhecida como “socialismo real” se constitui como alternativa concreta de rompimento da lógica do capital, baseada fundamentalmente na socialização dos meios de produção, sustentada num forte centralismo político que defende como valores centrais a igualdade de condições objetivas de vida e a superação da sociedade de classes e da exploração econômica.

Uma avaliação histórica desses três modelos de organização sócio-político-econômica revela uma série de crises/enfrentamentos/superações que culmina, “aparentemente” com a vitória do capital, expressa pela nova onda de liberalismo globalizado, em oposição ao desmonte da experiência socialista. Tal evidencia se manifesta tanto em nível concreto-real, como do ponto de vista ideológico, ético e intelectual que perpassa o debate corrente nas últimas décadas do século XX.

Com efeito, a “aparente” vitória do capital, sob a forma de neoliberalismo, tem determinado o aguçamento das desigualdades sociais, oportunizando o aprofundamento do abismo entre a acumulação de riqueza de um lado e o empobrecimento cada vez mais alarmante dos setores da classe trabalhadora por outro. Isto repercute imediatamente no agravamento da questão social, especialmente nos países periféricos, que se contrasta com um crescente descomprometimento do Estado para com as políticas sociais.

Toda esta conjuntura tem suscitado uma discussão ética sobre quais valores devem orientar novas alternativas para o enfrentamento da questão social e construção de novos projetos políticos que possam modificar a ordem vigente. Esta se constitui um das preocupações fundamentais dos setores comprometidos com o projeto de uma sociedade emancipada e, entre eles se encontra a categoria dos Assistentes Sociais.

Nesta perspectiva, os princípios do projeto ético-político do Serviço Social, sistematizados no Código de Ética de 1993, fundamentam a idéia de uma concepção de profissão que se insere num contexto mais amplo de projeto societário, no sentido da ruptura com a ordem estabelecida.

No entanto, vale ressaltar que, além da diversidade de valores que embasam o ethos presentes nas sociedades capitalistas, sociais democratas ou socialistas, há um segundo aspecto a considerar: muitas vezes as diferentes formas de organização social defendem valores e princípios comuns, que, no entanto, incorporam significados e interpretações diferenciadas. É neste sentido que priorizamos alguns princípios do Código de Ética de 1993 e nos propomos a analisar as diversas abordagens ou tendências éticas que discutem atualmente tais princípios, tendo como objetivo contribuir para um esclarecimento e discernimento sobre os fundamentos ontológicos destas categorias éticas, suas origens, significados e implicações advindas da escolha de tais princípios, seja na consolidação de projetos societários, seja na definição de outros projetos coletivos a exemplo dos projetos profissionais, tais como o projeto ético-político profissional do Serviço Social.

Considerando que o debate atual sobre ética, em nível internacional, suscita a discussão sobre a democracia, a justiça, a liberdade e a defesa dos direitos humanos e que tais princípios estão presentes no Código de Ética Profissional, priorizaremos estes princípios como eixo norteador da análise das diferentes abordagens ético-políticas que qualificam o discurso teórico e suas possibilidades concretas de realização na atualidade.

 

2. As tendências éticas contemporâneas e seus fundamentos ontológicos: concepção de homem, de sociedade e de ética

 

2.1. O Neoaristotelismo

Não podemos falar de neoaristotelismo no século XX, sem antes fazermos uma referência a interpretações outras do pensamento de Aristóteles que deram origem ao tomismo, no período medieval, com a elaboração filosófico-teológica de Tomás de Aquino e com sua reatualização, nos finas do século XIX e início do século XX, sob a forma de neotomismo, a partir dos estudos de Emanuel Mounier e Jacques Maritain.

Partindo de uma concepção aristotélica e naturalista de homem, entendido como ser racional, social e político, Tomás de Aquino acrescenta a esta visão o conceito de criação, atribuindo ao homem um caráter naturalmente inclinado para o bem – devido à sua origem divina – e que encontra sua felicidade plena no reencontro com Deus, na transcendência de sua existência terrena. A felicidade mundana, portanto, seria uma mediação para a felicidade absoluta e se daria através da organização política que visasse ao bem comum e do exercício da virtude, especialmente da justiça, entendida, à luz do pensamento aristotélico, como ponto de equilíbrio ou “justo meio” entre o excesso e a falta de bens materiais.

O neotomismo, por sua vez, se afirma como suporte da doutrina social da Igreja, nos finais do século XIX, que, face aos valores contraditórios do liberalismo e do socialismo, se atribui o papel de apresentar ao mundo uma “terceira via” que assegurasse à pessoa humana sua realização integral, na sua dupla dimensão material e espiritual, numa proposta de sociedade fundamentada nos princípios da liberdade e da justiça social. Com efeito, a doutrina social da Igreja não condena alguns princípios do liberalismo, tais como o direito à propriedade privada e à livre iniciativa; no entanto se pronuncia contrária ao excesso de individualismo e ao caráter eminentemente secular que subjazem a lógica e experiência concreta da ordem liberal. No que se refere ao socialismo, o embate da doutrina social da Igreja se dá especialmente em função de sua concepção materialista de homem, como sujeito da história, capaz de transformar a própria sociedade independente da vontade divina – característica do materialismo histórico que inspirou o surgimento de sociedades socialistas, bem como em função da perspectiva de socialização dos meios de produção, o que implica descumprimento do direito “natural” de propriedade privada.

Outro aspecto a considerar com relação à crítica da Igreja ao socialismo, diz respeito ao centralismo político, que tem se demonstrado, nas experiências históricas concretas, como negação do princípio da liberdade. Contudo, tal crítica perde sua legitimidade se considerarmos o seu percurso histórico e a ordem hierárquica que caracteriza o interior da própria instituição religiosa: a Igreja tem sempre se revelado como autoritária, detentora do critério de verdade, apoiada numa concepção transcendente de mundo fundamentada na revelação divina; fato que tem contribuído para  sua resistência ao avanço da ciência e sua postura eminentemente conservadora.

Vale salientar, portanto, que na perspectiva da doutrina social da Igreja, o conceito de liberdade é entendido subjetivamente como livre arbítrio ou capacidade de escolha entre o bem e o mal e, objetivamente, como livre iniciativa e livre expressão, subentendendo-se aí a garantia do direito de propriedade como direito natural.

Estas considerações nos remetem, imediatamente, aos princípios fundamentais do primeiro Código de Ética Profissional, elaborado no Brasil em 1947, pautado numa concepção de homem abstrata e a – histórica, a partir da qual se defendia o humanismo integral, a autodeterminação e a solidariedade como valores fundantes da prática profissional do Assistente Social.

Entretanto, não é exatamente na mesma perspectiva que se coloca o movimento neoaristotélico. Com efeito, os pensadores que se definiram pelo resgate do pensamento de Aristóteles na contemporaneidade, delimitam sua análise para um aprofundamento do conceito de virtude (Alasdair MacIntyre), de phronesis ou aplicação da virtude nas situações concretas da vida (George Gadamer), de política, entendida numa perspectiva da racionalidade dos fins que via no Estado a busca da realização da felicidade coletiva (Eric Voegelin e Leo Strauss) e, finalmente, no enfrentamento da discussão da política como atividade central e inerente à condição humana (Hannah Arendt).

A perspectiva de Hannah Arendt, que nos interessa mais de perto, parte de uma concepção de homem construída historicamente, a partir do desenvolvimento de atividades para o atendimento de suas necessidades. Sendo assim, o homem pode ser definido, inicialmente, como “homo laborans” por dedicar-se prioritariamente a atividades voltadas para o atendimento de suas necessidades de sobrevivência, atendidas no contato imediato com a natureza. O “homo faber” pode ser entendido como o homem que alcança o estágio de transformação da natureza, a partir da atividade do trabalho e, assim, gera novas necessidades que, à medida que se complexificam, exigem, deste homem , o aperfeiçoamento de técnicas de domínio e de exploração da natureza, tendo como fim último assegurar a sua sobrevivência. O “homo agens” é visto, pela autora, como aquele que busca estabelecer fins vinculados ao atendimento de suas necessidades enquanto ser que se relaciona com os demais, independente da atividade laborativa, e que, por isto, preocupa-se com as formas de organização social e política que melhor respondam à necessidade de realização do ser humano.

Neste sentido, a política, e não o trabalho, ganha centralidade no pensamento de Arendt e, para exemplificar sua postura, ela busca referências na democracia direta grega, onde a pólis representava o lócus da tomada de decisão e exercício da política através do discurso e não pelo uso da força, como acontece nas demais sociedades. Segundo a referida autora, tal situação só é possível graças à dimensão de unicidade e pluralidade que caracteriza a condição humana: cada ser é único e insubstituível, constitui-se uma novidade e uma possibilidade imprevisível, na medida em que é capaz de realizar coisas jamais pensadas anteriormente. Ao mesmo tempo, os homens são todos iguais, possuem as mesmas características, o que lhes imprime a igualdade de gozar de todos os direitos e de vivenciar a condição de “homo agens”, na medida em que lhe é possível pensar e agir no mundo como ser universal, membro de uma humanidade. Esta capacidade lhe confere, também, o direito à imortalidade, na medida em que se insere no processo histórico e realiza obras que se perpetuam para outras gerações, mesmo após sua morte física.

A principal crítica que Arendt imprime à sociedade moderna refere-se à centralidade do trabalho. No seu entender, o “homo laborans” se sobrepõe ao “homo agens” e, com isto, limita-se a viver em função da sobrevivência, em detrimento de uma preocupação com as relações coletivas e de construção de projetos de sociedade passíveis de realização mediante a sua ação política.

As reflexões de Arendt têm contribuído de forma significativa para uma redefinição dos moldes em que se pautam a democracia moderna: democracia representativa, formal, baseada no princípio quantitativo da maioria e do sufrágio universal, sem levar em consideração a criação de novas alternativas que possam viabilizar o exercício da política por todos por todos os seres humanos, a partir do desenvolvimento de suas potencialidades, no sentido da construção de uma nova organização social.

Com isso, identificamos que a autora defende uma idéia de democracia substantiva que implica no respeito às individualidades e extrapola o conceito corrente de política, próprio da racionalidade estratégico-instrumental, visto que ser político não se identifica com assumir o poder ou apenas exercer o direito de voto, mas implica um compromisso com a humanidade, no sentido de atuar no mundo como sujeito histórico.

 

2.2 A teoria da justiça como equidade

 

A questão da justiça se coloca hoje no debate ético-político-filosófico não apenas como virtude ou valor que relembra o conceito romano de “dar a cada um o que é seu”, mas se evidencia como necessidade concreta e emergente, face ao agravamento da questão social, conforme explicitado anteriormente, em função dos avanços do modo de produção capitalista. Poderíamos, aqui, nos remeter a uma série de dados estatísticos que comprovariam a má distribuição de riqueza em nível nacional e internacional, gerando situações insustentáveis de miséria, e comprometendo, em última instância, o direito ao trabalho, à moradia, à saúde, à educação e até mesmo à vida de milhares de seres humanos. No entanto, a realidade é tão gritante que os dados se materializam em nosso cotidiano no aumento da violência, no crescimento do número de crianças e adolescentes nas ruas, em situação de risco, na explosão de favelas, nos grandes centros urbanos, sem qualquer infraestrutura etc.

Daí por que merece uma atenção especial o conceito de justiça e, mais que isto, a sua implementação. Todavia, não existe um consenso sobre o significado da justiça e, considerando que até mesmo os liberais se sentem “incomodados” e buscam legitimar o capitalismo com alternativas passíveis de aceitação pela coletividade, vamos encontrar, até entre eles, os que teorizam sobre a “justiça como equidade”.

Neste contexto liberal é que surge, em contraponto à crise do Estado de bem estar social, a teoria da justiça como equidade, elaborada pelo filósofo-político americano – John Rawls – que adota uma perspectiva ética inspirada no pensamento kantiano, especialmente no que se refere ao conceito de liberdade e, numa perspectiva neocontratualista, que resgata a concepção hobbesiana.

Para Rawls, a sociedade é entendida como uma cooperativa, onde todos produzem e, portanto, onde todos devem sair ganhando. Sendo assim, ele cria o conceito de “desavantajados” e “menos avantajados” para explicar a origem natural das desigualdades sociais que se acentua com a forma de tratamento que a sociedade dispensa aos menos avantajados.

A sua perspectiva é a de que a sociedade deve criar mecanismos que favoreçam, ou melhor, viabilizem melhores condições de oportunidade aos menos avantajados (tais como privilegiar o ensino para os menos dotados e portadores de necessidades especiais), para que estes tenham condições de superar as desigualdades.

Em última instância, Rawls admite a necessidade de uma nova formação social, baseada num novo contrato, que redefina as normas (vê-se que se trata de um deontólogo) e os princípios de justiça, os quais fundamentariam as novas leis constitucionais a regerem as relações entre os homens. Sendo assim, o autor busca suporte no pensamento kanteano sobre o conceito de liberdade, entendendo que esta só será possível numa situação de autonomia que se contraponha a heteronomia. Com efeito, para Kant, a autonomia representa a condição necessária para o homem agir racional e livremente, visto que a sua atuação é determinada em função de interesses universais e não apenas individuais. A heteronomia, ao contrário, reporta à condição de escolha na ação pautada na defesa de interesses particulares e, portanto, não livres.

Ora, entendendo que a sociedade é permeada por conflitos de interesses, Rawls concebe como única possibilidade de alcançar a autonomia e, portanto, a liberdade, a criação de uma situação ideal, por ele definida como situação original, caracterizada pelo “véu de ignorância”, onde todos os membros da sociedade se colocam numa postura de total desconhecimento de sai posição social e das reais condições históricas, para eleger princípios de justiça universais que, em outras palavras, favoreceriam tanto aos avantajados quanto aos desavantajados, considerando que, em não tendo consciência da sua real condição social, os homens optariam por princípios universais e neutros que beneficiariam a todos indistintamente.

Os princípios de justiça, aos quais o autor se refere, se expressam como defesa do direito de liberdade e de igual oportunidade para todos. Com isso, Rawls não apensa nega ao homem a sua condição de sujeito moral, capaz de fazer escolhas éticas e conscientes, como também afirma o princípio da desigualdade social, no momento em que preconiza vantagens para os “avantajados” e “desavantajados”, considerando previamente, que o novo contrato gerará uma sociedade desigual. Tudo isto se fundamenta no chamado cálculo ou princípio da “diferença” em que a justiça se realiza quando o aumento da riqueza e dos benefícios dos mais avantajados não implica, necessariamente, na deterioração ou na perda dos benefícios para os menos avantajados. Em outras palavras, pode-se afirmar: todos saem ganhando, mesmo que de formas diferenciadas.

A grande contradição desta teoria, portanto, é não alcançar o nível de compreensão de que, numa sociedade capitalista, o aumento da riqueza de alguns implica, necessariamente, na perda ou redução da riqueza dos demais, o que se verifica concretamente, como afirmado anteriormente, no agravamento da questão social. Esta é a lógica do capital, o que torna inviável a perspectiva de justiça rawlsiana.

 

2.3 A ética do discurso e a teoria do agir comunicativo

 

            A preocupação com a democracia e com os direitos humanos tem suscitado a discussão da necessidade de estabelecimento de novas regras que possam assegurar tais princípios, dentro de uma perspectiva de ética deontológica.

Jürgen Habermas, filósofo alemão e herdeiro direto da escola de Frankfurt, procura dar continuidade ao pensamento da “teoria crítica”, elaborada por Adorno, Horkheim, Marcuse e Benjamim, nos meados do século passado, no sentido de explorar o universo da supra-estrutura social, das determinações e implicações da cultura na sociedade capitalista. Suas reflexões, no entanto, pouco a pouco, se distanciam da tradição marxista, na medida em que o estudioso se utiliza de outros referenciais, especialmente daquele kantiano para formular sua teoria ética.

Com efeito, Habermas objetiva defender princípios que orientem a criação de normas universais, capazes de serem seguidas por todos, no sentido de afirmar a democracia e os direitos humanos. Ele parte de uma concepção de sociedade formada por três sistemas: o político, o econômico e o sócio cultural que interagem entre si e dão origem a diferentes formas de organização social. A sua análise sobre a conjuntura mundial atual é a de que o sistema político – identificado com o estado – sufoca e impede a expressão do mundo vital – entendido como sistema sócio-cultural e que representa o mundo dos valores e da cotidianidade, provocando o que ele denomina de crise de identidade e crise motivacional: os homens não se reconhecem, nesta sociedade, como sujeitos históricos e sua vida passa a perder o sentido quando buscam apenas atender às demandas políticas e econômicas da sociedade contemporânea.

A sua proposta ética, portanto, se fundamenta numa concepção de agir, entendido como agir voltado a si mesmo, que se diferencia do agir estratégico – característico da política, entendido na perspectiva da racionalidade estratégico-instrumental e pautado na busca do sucesso e do convencimento das pessoas – e do agir dramatúrgico – que se constitui dimensão inerente à vida em sociedade, visto que todos desempenhamos determinados papéis em nossa vida cotidiana.

A ética do discurso pressupõe a possibilidade do consenso, numa perspectiva de superação do conflito, tendo em vista ser viável o diálogo entre sujeitos que defendem diferentes interesses, desde que sejam respeitadas as regras do discurso ou da argumentação. Tais regras referem-se à veracidade, justa e desprovida da defesa de interesses particulares. A proposta consensual se dá em torno da tomada de decisões coletivas, tendo como fundamento a escolha da melhor argumentação.

A crítica que se pode fazer a Habermas se refere, especificamente, à sua postura deontológica que nega a necessidade dos fundamentos para a reflexão ética e se atém à elaboração de regras que possam assegurar a democracia, e não à discussão qualificada sobre o conceito de bem e de justiça. Além disso, a consideração sobre o conflito, especialmente no que se refere ao conflito de classes, por não ser aprofundada por Habermas, na dimensão em que se manifesta na atualidade, faz com que a sua proposta se configure como solução mais idealista que realista: o consenso, como forma de sua superação.

 

2.4 A ética marxista

 

Segundo os estudiosos do pensamento marxista, Marx não formulou uma teoria ética no verdadeiro sentido da palavra, no entanto, pensadores como Lukács e Agnes Heller dedicaram-se a extrair de seus fundamentos ontológicos, os princípios que poderiam fundamentar a elaboração de uma ética em bases marxistas.

Como dito anteriormente, a perspectiva ética pressupõe uma concepção de homem e de sociedade. A literatura marxista, a esse respeito, especialmente a partir da interpretação dos autores anteriormente citados, nos apresenta uma visão de homem que supera a dimensão naturalista, tradicionalmente utilizada para legitimar a existência de direitos naturais, bem como a visão teológica de origem divina, que atribui ao homem uma pré-determinação ao bem, em contraposição ao mal que seria fruto de escolhas desviantes da sua natureza, ou ainda, inerentes à sua condição necessária de luta pela sobrevivência.

Para Marx, o homem é um ser histórico que se produz e se reproduz na medida em que cria as próprias condições de sobrevivência através da atividade do trabalho. O exercício desta atividade lhe permite transformar a natureza, isto é, o mundo circunstante e lhe confere a condição de ser social, posto que exige e determina as formas de relação que o mesmo estabelece com os outros homens, considerando a emergência de novas necessidades a partir do desenvolvimento do próprio trabalho.

Neste sentido, a “essência” humana, se é que podemos falar de essência, estaria na sua capacidade teleológica, isto é, na sua capacidade de planejar as atividades em função das necessidades que se lhe apresentam e de realizá-las, concreta e coletivamente, num processo definido como práxis, que implica a atividade de reflexão sobre o que precisa fazer, sobre o que faz e como faz e, acima de tudo, a execução concreta do idealizado que, se diferencia da simples aplicação de teorias ou modelos, na medida em que exige modificações no processo do fazer, a partir da consideração das determinações das condições objetivas do real.

É assim que o home faz história, construindo e modificando o mundo objetivo, construindo e reconstruindo as relações sociais, os princípios e os valores que devem fundamentar as relações que se estabelecem entre os próprios homens e entre estes e a natureza. É, portanto, nesse processo dialético que o homem se torna senhor de si e da história, definindo e redefinindo o significado da liberdade, da justiça, da igualdade, do direito: é assim que ele constrói e reconstrói a sua ética.

Partindo destes pressupostos, a perspectiva marxista identifica que a experiência histórica do homem tem se pautado em relações conflitantes, na medida em que, em não sendo naturalmente bom ou mal, o homem possui necessidades e interesses que podem ser satisfeitos coletivamente, numa perspectiva comunitária, ou, o que tem sido mais frequente, numa postura de exercício do domínio de uns sobre outros, o que define os diferentes modos de organização social, política e econômica das sociedades.

Neste sentido, vale considerar que as condições objetivas não são dadas, mas construídas historicamente e, por isto mesmo, passíveis de mudança, especialmente por que o homem possui também a faculdade da consciência que lhe permite julgar as situações objetivas e o seu próprio agir diante das mesmas, estabelecendo princípios, valores e, por fim, normas que orientam a conduta individual e coletiva.

É nessa perspectiva, portanto, que o conceito de liberdade na ótica marxista não se restringe ao uso do livre arbítrio ou à livre iniciativa. Marx concebe o homem como ser humano genérico e, por esta razão, a liberdade é um pré-requisito para a humanidade e não um atributo meramente individual, como preconiza o liberalismo. A liberdade pressupõe a existência de condições objetivas que permitam ao homem realizar escolhas de ações e de modos de vida.

Na lógica liberal, materializada no modo de produção capitalista, entende-se que “a liberdade de um começa onde termina a liberdade do outro”. Ora, tal concepção de liberdade admite, em princípio, a existência de limites para a liberdade de todos, visto que as condições objetivas não oferecem igualdade de condições para escolhas subjetivas. Neste sentido, o princípio da liberdade, do ponto de vista marxista, está diretamente relacionado com o princípio da igualdade: igualdade de condições e igualdade de direitos, o que só se concretiza numa sociedade que supere o modo de produção capitalista, numa sociedade emancipada, sem dominação do homem sobre o homem e sem as relações de exploração.

Assim, a justiça não se fundamenta na lógica de “dar a cada um o que é seu”, por que isto pressupõe o individualismo e não define a forma como cada um veio a se apropriar daquilo que chama de seu; nem se fundamenta na idéia de limites impostos a uns pelo exercício da liberdade de outros; mas radicalmente embasada no atendimento às necessidades humanas (considerando-se que o homem é tão mais rico, quanto mais necessidades possui) e, na idéia de socialização dos meios de produção e dos resultados do trabalho coletivo, trabalho este que caracteriza a sociedade capitalista e, cujo produto final que contraditoriamente, é apropriado por alguns em detrimento dos demais.

É nesta perspectiva que se coloca o projeto ético-político do Serviço Social brasileiro que vem se construindo, paulatinamente, a partir do movimento de reconceituação que caracterizou a década de sessenta e que teve como marcos fundamentais a elaboração dos Códigos de Ética de 1986 e 1993, respectivamente.

Para ilustrar o que acabamos de afirmar, reportaremos, a seguir, os princípios delimitados no Código de 1993, referentes especialmente à concepção de liberdade, igualdade e justiça e, consequentemente, a uma postura democrática e de respeito aos direitos humanos, enquanto telos a ser observado na convivência social e política da sociedade.

A esse respeito, os termos utilizados pelo referido código são os seguintes:

  • “posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais bem como sua gestão democrática”;
  • “reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes: autonomia, emancipação e plena expressão dos indivíduos sociais”;
  • “defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida”;
  • “opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia, gênero”.

3. Proposta de uma nova racionalidade para implementação do Projeto Ético Político Profissional do Serviço Social

A análise das diferentes perspectivas éticas, apresentadas até o momento, nos permite identificar a existência de uma racionalidade estratégico-instrumental, que caracteriza a experiência histórica do Estado moderno e da sociabilidade nele contida, a partir da implementação do modo de produção capitalista e de uma racionalidade comunicativa que pretende fundamentar princípios e normas para o exercício da democracia, mas não contempla, em toda sua dimensão, a possibilidade da superação da sociedade de classes.

A perspectiva marxista aponta, por sua vez, para uma nova racionalidade e para a possibilidade de uma sociedade emancipada, livre do domínio e da exploração do homem pelo homem.

Neste sentido, o grande desafio que se coloca, hoje, para a humanidade e, de modo muito particular, para a profissão de Serviço Social que comunga deste projeto societário, é a construção de mediações que viabilizem, concretamente, tal experiência histórica.

É partindo destas considerações, que propomos uma nova racionalidade: a racionalidade do senso que tem como características fundamentais uma concepção de homem como sujeito moral e histórico, e uma visão teleológica que resgata a racionalidade dos fins. Quando falamos em racionalidade do senso queremos nos referir à categoria sentido, direção, o que implica a consideração do homem como sujeito que, a partir da consciência que tem de si mesmo, dos outros e da história é capaz de julgar e refletir crítica e filosoficamente sobre esta realidade, no sentido de projetar perspectivas de ação que transformem a mentalidade (incluindo aí cultura, valores, princípios éticos) e as condições objetivas da sociedade em que vive.

A consciência de si implica uma compreensão de sua situação no mundo, do ponto de vista concreto das relações sociais, econômicas e políticas, bem cômodo ponto de vista ontológico-existencial, indagar-se sobre a razão de ser de sua vida e de sua contribuição histórica. A consciência do outro e a consciência histórica permitem ao homem perceber-se como ser social, historicamente situado no tempo e no espaço e como ser humano-genérico, universal, membro de uma humanidade e, por isso mesmo, responsável pelo destino que esta venha a imprimir na história.

Tais considerações se fazem necessárias em função do determinismo histórico que predomina no âmbito de muitas interpretações marxistas, que se limitam a analisar as determinações impostas pelo modo de produção capitalista e a lógica interna que o faz superar as suas crises cíclicas e redefenir-se sem perder sua essência. Ao mesmo tempo, há os que afirmam que o estágio em que se encontram as relações de produção não possibilita, ainda, um processo de mudança sendo premente que o capital evolua até determinado nível para que se dêem as condições objetivas necessárias para um processo de transformação.

Ora, pensar desta forma é atribuir ao capital um sentido de “senhor da história”, invertendo-se, assim, a condição do homem de sujeito simples para simples objeto. Para alguns, pensar na possibilidade imediata de uma sociedade emancipada é puro idealismo, ingenuidade, purismo. No entanto, esquece-se a capacidade humana de projetar e se superar as dificuldades a partir das necessidades que se objetivam no processo contraditório de limites/possibilidades que caracteriza a história.

Daí porque a necessidade de uma reflexão profunda sobre o projeto ético-político do Serviço Social em consonância com o projeto societário, considerando as mediações que são passíveis de realização, no cotidiano profissional, nível coletivo, tendo em vista a construção de novos valores e de novas condições objetivas que culminem com o processo de transformação.

Esta é uma perspectiva fundamentada numa proposta ética que não se pretende ingênua, ao contrário, requer um profundo conhecimento da realidade social e de seus limites, mas não concebe a perspectiva do novo como possibilidade remota ou impossível; afinal, como afirma um dos maiores artistas do último século – Charles Chaplin – “as grandes conquistas da humanidade são realizações daquilo que parecia impossível”.

 

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RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

 

 

 

 

 

 

 

 

Contribuições à crítica do preconceito no debate do Serviço Social

 

Marylucia Mesquita[3]

Sâmia Rodrigues Ramos[4]

Silvana Mara Morais dos Santos[5]

“…É fácil tcrer no que

crê a multidão (…)

difícil é saber

o que é diverso.”

Goete

 

O preconceito, materializado em diferentes formas de discriminação, é uma realidade objetiva para amplos segmentos de homens e mulheres. Isso por que as diferenças no jeito de ser e viver têm significado uma arena fértil para a manifestação de múltiplas modalidades de opressão. Raça, etnia, cor gênero, orientação sexual e muitos outros itens compõem a agenda de questões que, historicamente, estão no alvo da intolerância, da não aceitação da diferença.

As questões que provocam preconceito precisam ser problematizadas e desmistificadas, por que o preconceito, enquanto algo que dizima o humano, destitui os indivíduos sociais de sua autonomia e liberdade. Nestes termos, o debate em torno do preconceito favorece à argumentação e à reflexão crítica sobre a vida cotidiana, espaço-tempo no qual se materializam as expressões de discriminação e opressão.

De saída, uma questão premente: em que medida este tema interessa ao Serviço Social?

Com o código de 93, abre-se um campo de possibilidades para o entendimento e desnaturalização do preconceito. Neste sentido, o objetivo deste artigo é fornecer elementos para a crítica do preconceito, fortalecendo, desse modo, tal discussão no âmbito do projeto ético-político do Serviço Social (PEPSS). Situaremos, brevemente, a trajetória de construção do PEPSS a partir dos anos 80, contextualizando os códigos de ética de 1986 e 1993, para, estabelecer uma relação entre a dimensão ética e a necessidade de superação dos preconceitos.

  1. 1.      Contextualizando o Código de Ética Profissional de 1993: um olhar sobre as lentes do Projeto Ético-Político do Serviço Social

 

O novo projeto Ético-Político do Serviço Social começou a ser gestado na conjuntura de transição da década de 70 à de 80, momento em que a realidade objetiva sinalizava a necessidade de mudanças no arcabouço teórico-metodológico do Serviço Social. É o que Netto (1989) sintetizou como sendo a “intenção de ruptura”, ou seja, no processo de desenvolvimento do Serviço Social brasileiro se tece a recusa e a crítica ao conservadorismo profissional. O que merece destaque é que mudanças não se efetivam sozinhas, como mera consequência da realidade objetiva.

Sob este ponto de vista, pode-se afirmar que o projeto de “intenção de ruptura” foi produto da ação político-profissional de um significativo número de assistentes sociais sob dadas condições históricas. Assume relevância, portanto, a direção teórico-política que orientou, naquele momento, segmentos expressivos da categoria profissional, que viria, na continuidade do processo histórico, se expressar, de forma mais coletiva, no cenário profissional durante o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais – CBAS, em 1979, em São Paulo. Podemos identificar, além do III CBAS, outros marcos históricos que expressaram mudanças qualitativas na direção social da profissão, como por exemplo: o Currículo de 82 e o Código de Ética de 86.

As profissões não atualizam suas agendas de forma linear, como mera evolução, desse modo, apesar de todo o esforço teórico-político para sintonizar o Serviço Social com uma racionalidade crítico-dialética, logo foi possível identificar alguns limites e contradições que permearam esse movimento amplo de redefinição da profissão. Como exemplo, podemos citar que ocorreu, no Serviço Social, aquilo que Consuelo Quiroga tematizou como sendo a “invasão positiva no marxismo”, ou seja, até o início dos anos 80, esteve presente, com muito realce, a concepção althusseriana instituição, sustentada ora pelo caráter voluntarista e messiânico da de ação profissional, expresso, sobretudo, na hipertrofia e na ilusória pretensão de autonomização da dimensão política da profissão, ora pelo seu caráter fatalista, evidenciado, sobretudo, na impossibilidade de realizar, no âmbito institucional, ações que expressem compromisso com os reais interesses das classes trabalhadoras. Na concepção althusseriana está a idéia de que o fator econômico é auto-explicativo de todos os fenômenos. Desse modo, anulava-se um dos grandes ensinamentos de Marx, aquele que nos diz que “o real é a síntese de múltiplas determinações”.

Na esteira desses limites vieram outros, expressos na redução da assistência ao assistencialismo e na forma secundária e periférica na qual foi tratada a Ética na materialização dos currículos etc. Estes equívocos eram presentes, de tal forma que, por algum tempo, não foi possível conceder maior atenção àqueles(as) que, na década de 70, já alertavam para os perigos analíticos do economicismo.

Na verdade, a disseminação do pensamento gramsciano no Brasil, no início dos anos 80, e o próprio amadurecimento teórico dos profissionais, possível, entre outras formas, pelo acesso aos estudos na Pós-Graduação, permitiram profundas avaliações e reflexões sobre o Serviço Social. Esse movimento de pensar a profissão tem possibilitado o encontro de assistentes sociais que debatem e problematizam o cotidiano profissional, sendo neste processo, de maturação intelectual permanente, que se constrói e reconstrói o Projeto Ético-Político profissional. Exatamente por isso, pode-se dizer que “trata-se de um projeto que também é um processo, em contínuos desdobramentos” (Netto, 1999:104).

Esse projeto não se constrói e nem se materializa de forma abstrata. Ele revela a opção teórico-ético-política de segmentos expressivos da categoria que, na sua trajetória individual e coletiva, sobretudo, das duas últimas décadas, contribuem de diferentes formas, para a disseminação e valorização de uma racionalidade crítico-dialética no entendimento da realidade social, bem como na leitura do próprio Serviço Social e das respostas profissionais que lhe são exigidas.

Poderíamos nos perguntar: tal projeto é endógeno ao Serviço Social? Sobre isso vale considerar que toda profissão existe como resposta às necessidades objetivas postas no tecido social. Da mesma forma, um projeto profissional expressa um tipo de projeto coletivo e como tal ganha materialidade ao vincular-se a um determinado projeto societário.

Ou seja, o Projeto Ético-Político do Serviço Social não pode ser elaborado descolado da realidade social mais ampla, embora guarde particularidades por ser algo específico de uma determinada profissão. Segundo Netto (1999:97) “embora seja frequente a sintonia entre projeto societário hegemônico e projeto hegemônico numa determinada categoria profissional, podem ocorrer situações de confronto entre eles. É possível que, em conjunturas precisas, o projeto societário hegemônico seja contestado por projetos profissionais que conquistem hegemonia em suas respectivas categorias (essa possibilidade é tanto maior quanto mais estas categorias tornem-se sensíveis aos interesses das classes trabalhadoras e subalternas e quanto mais estas classes se afirmem social e politicamente)”.

No que se refere ao projeto Ético-Político do Serviço Social, podemos afirmar que ele se coloca na contra-mão do projeto societário ora hegemônico em nossa sociedade. Há um conjunto de lutas que já foram enfrentadas e outras que se tecem no tempo presente. Frente a elas, o protagonismo das entidades representativas da categoria, com sua orientação política, sinaliza um horizonte de crítica e resistência ao projeto neoliberal. No entanto, é preciso considerar que “esse confronto de projetos profissionais com projeto societário hegemônico tem limites numa sociedade capitalista. Exceto se quiser se esterilizar no messianismo, cuja antítese é o fatalismo, mesmo um projeto profissional questionador e avançado deve levar em conta tais limites, cujas balizas mais evidentes se expressam nas condições do mercado de trabalho” (Netto, 1999:97).

O projeto profissional enquanto projeto coletivo não esgota e nem substitui a necessidade de outras mediações históricas na singularidade da vida do(a) profissional. Daí a importância da participação em espaços coletivos, tais como movimentos sociais e partidos políticos – ambientes com condições de possibilidade para a formação da vontade coletiva-nacional-popular, conforme advertia Gramsci.

À medida que o termo Projeto Ético-Político Profissional ganha visibilidade, o que ocorre somente nos anos 90, conquistam relevo os questionamentos e dúvidas sobre o seu real significado e alcance. Um desses questionamentos é quanto à possibilidade desse projeto configurar-se ou não enquanto hegemônico no seio do Serviço Social nos dias atuais. Sobre esta questão, embora a resposta seja afirmativa, faz-se necessário levar em consideração diversos aspectos relacionados entre si.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que o fato desse Projeto Ético-Político Profissional conquistar hegemonia nos anos 90, não significa dizer que ele tenha pretensões de apresentar-se de forma acabada, ao contrário, enquanto projeto, o entendimento repousa sobre o seu caráter inconcluso e aberto ao movimento dinâmico da vida social e da ação política dos sujeitos profissionais.

Em segundo lugar, afirmar-se hegemônico não significa sua exclusividade no campo profissional. Isso porque “por uma parte, não se desenvolveram suficientemente as suas possibilidades, por exemplo, nos domínios dos indicativos para a orientação de modalidades de práticas profissionais (neste terreno, ainda há muito por fazer-se); por outra, a ruptura do quase monopólio do conservadorismo no Serviço Social não suprimiu tendências conservadoras ou neoconservadoras…” (Netto, 1999:106).

Nesse horizonte, tal projeto insere-se num campo vivo de correlação de forças e torna-se ilusório supor, apesar do aparente silêncio, a idéia de uma categoria completamente unificada em torno de um único projeto, bem como a inexistência de oposição. Na verdade, sob um olhar crítico é possível visualizar que as diferenças se manifestam, mais claramente, nos vários fóruns de discussão e deliberação da categoria profissional, através do debate, das publicações, pelo confronto de idéias, ou seja, na configuração de um espaço plural, no qual é possível e pertinente a expressão de projetos distintos.

O Projeto Ético-Político Profissional traz nas suas linhas fundamentais uma sintonia “com tendências significativas do movimento (o movimento das classes sociais) da sociedade brasileira. Essas linhas não foram fruto do desejo ou da vontade subjetiva de meia dúzia de Assistentes Sociais envolvidos numa militância cívica e/ou política: elas expressam, processadas, numa perspectiva profissional, refratadas no interior da categoria, demandas e aspirações da massa dos trabalhadores brasileiros. Numa palavra:esse projeto profissional vinculou-se a um projeto societário que, antagônico ao das classes possuidoras e exploradoras, têm raízes efetivas na vida social brasileira” (Netto, 1999: 106).

Nessa perspectiva, e considerando todo o acúmulo teórico-ético-político que possibilitou, sobretudo, a partir da década de 80, inscrever o Serviço Social na chamada maturidade intelectual, vivemos desde a década de 70 e, mais explicitamente nos anos 80 e 90, uma profunda crise que atinge, a um só tempo, todas as esferas da vida humana (a economia/ a política/ a ética/ a ciência/ a literatura/ a filosofia/ a música/ a cultura dentre outras).

Trata-se, pois, de um novo reordenamento do capital, traduzido na ofensiva para recuperar o seu ciclo produtivo. Assim, o objetivo destina-se a “reestruturar o padrão produtivo estruturado sobre o binômio taylorismo e fordismo, procurando, desse modo, repor os patamares de acumulação existentes no período anterior, especialmente no pós-45, utilizando-se, de novos e velhos mecanismos de acumulação” (Antunes, 1999:36)4.


4 Para aprofundar as discussões sobre a ofensiva do capital e suas repercussões na sociedade das classes trabalhadoras ver Harvey (19993); Mota (1995 e 1998); Teixeira (1998); Antunes (1999); Mészaros (1999) etc.

Desse modo, há, nos dias atuais, como conseqüência de todo esse movimento do capital, a presença, no tecido social, de uma classe trabalhadora que se apresenta de forma diversa e heterogênea, o que nos autoriza a pensar, segundo Antunes (1995 e 1999), numa classe-que-vive-do-trabalho. As dimensões de heterogeneidade se materializam, sobretudo, nos trabalhos precarizados, nos quais vigoram uma tendência acentuada de deterioração das condições de trabalho expressa, dentre outros, nos seguintes aspectos: na diminuição/ausência de mecanismos de proteção social; aumento da jornada de trabalho e/ou intensificação do trabalho; insegurança quanto à continuidade-permanência no trabalho diante dos contratos temporários; ausência, na maioria das vezes, de mediações políticas para o tratamento das reivindicações trabalhistas e para o processo de organização coletiva. Tudo isso convivendo com inúmeras exigências quanto ao domínio de novas habilidades na perspectiva da formação do (a) trabalhador (a) polivalente, dinâmico (a) e empreendedor (a).

Esse quadro, traçado, aqui, de forma bastante sintética, revela as orientações ídeo-político-culturais do neoliberalismo que enaltece o papel do mercado em detrimento da ação pública; que reconhece como sujeito tão somente o cidadão-consumidor e que em largas proporções, dissemina na sociedade, a ideologia do neosolidarismo e da filantropia empresarial nas respostas às múltiplas expressões da “questão social”.

Esse conjunto de questões suscita uma interrogação: é possível diante da brutalidade do capital, materializar, no cotidiano, o projeto ético-político profissional que se apresenta de forma antagônica ao projeto neoliberal?

Para Netto (1999:107) “é evidente que a manutenção e o aprofundamento deste projeto, em condições que parecem tão adversas, depende da vontade majoritária da categoria profissional mas não só dela: depende também do revigoramento do movimento democrático e popular”.

Apesar das inúmeras dificuldades, na construção de respostas e iniciativas políticas da classe-que-vive-do-trabalho na perspectiva de fortalecer um projeto societário alternativo, não é momento para desistirmos da elaboração de estratégias reais de enfrentamento. Abraçar a desistência é visualizar, nas respostas do capital, a única possibilidade e, decretar, por antecipação, o capitalismo como único projeto societário possível.

Segundo Tonet (1997:183) “há um sem-número de trincheiras, nesta luta, que podem ser ocupadas, segundo as possibilidades de cada um. Seja nos diversos setores do trabalho, da política, da educação, da arte, das variadas atividades profissionais ou em inúmeros movimentos sociais. E, em cada lugar respeitando as peculiaridades e a especificidade própria, combater não só a perspectiva neoliberal, mas também o reformismo e imprimir a todas as lutas um caráter anti-capitalista”.

Sob esse prisma, a efetivação do projeto ético-político-profissional exige clareza na análise das condições objetivas, do movimento das classes sociais, identificando aí quais as possibilidades e limites. Além disso, há que se considerar as respostas equacionadas pelo Estado no tratamento dispensado à “questão social”.

Ao analisarmos a construção do PEPSS é possível identificar como marcos: a aprovação do Currículo Mínimo para os cursos de Serviço Social de 1982 e do Código de Ética Profissional de 1986. Tais documentos constituem ícones históricos porque sua elaboração se deu de forma coletiva, reunindo, além das entidades representativas, os diversos segmentos que formam esta categoria, tais como: assistentes sociais/professores (as)/estudantes que buscaram disseminar, no conjunto da categoria, um referencial de análise para se pensar a sociedade, o indivíduo e a profissão. Estas expressões concretas do processo de renovação profissional são signos “daquelas conquistas políticas e teóricas, cujo lastro de crítica visava a recusa da base filosófica tradicional, predominantemente conservadora que informava o Serviço Social” (CFESS, 1996:176).

Nos anos noventa, os ganhos teóricos e ético-políticos desta “intenção de ruptura” se aprofundam, tendo como ícones, da consolidação do PEPSS, a aprovação das Diretrizes Curriculares para o Curso de Serviço Social em 19996 e do Código de Ética Profissional em 1993, no qual são ex0plicitados os princípios fundamentais que norteiam o projeto ético-político da profissão.

Destaque-se, no processo de construção e aprovação destes documentos, o protagonismo das entidades representativas da categoria, com especial relevo para o papel da ABEPSS na coordenação do processo de elaboração das Diretrizes Curriculares de 19965 e para o Conjunto CFESS/CRESS na direção da construção coletiva do Código de Ética de 19936.


5 Foram realizadas mais de 200 oficinas locais, regionais e nacionais no processo de construção coletiva das diretrizes curriculares, envolvendo professores (as), estudantes e profissionais.

6 Uma expressão desta construção é a publicação do livro Serviço Social e Ética: convite a uma nova práxis, (1996) que contém aspectos fundamentais das discussões e elaborações teóricas que fundamentaram a nova proposta.

No Código de Ética de 1993 foi assegurada a manutenção da direção presente no Código de 86, superando, no entanto, alguns equívocos teórico-políticos e limitações normativas e operacionais. O Código de 1986 significou uma importante ruptura com as perspectivas éticas conservadoras que fundamentavam os códigos anteriores (47/65/75), notadamente, a concepção neotomista, fundada numa perspectiva a-histórica, metafísica, idealista; revelando, portanto, “a negação da base filosófica tradicional, nitidamente conservadora, que norteava a ética da neutralidade, enfim recusada; e a afirmação de um novo papel profissional, implicando uma nova qualificação, adequada à pesquisa, à formulação e gestão de políticas sociais” (Paiva, 1996:160).

Nesse sentido, o Código de 86 configurou-se como um elemento significativo do processo de renovação profissional, sobretudo, nos aspectos político e teórico, expressando, de forma inconteste, a aproximação com a perspectiva teórica marxista. Sobre a influência do pensamento marxista no Serviço Social, Barroco salienta que “em termos da contribuição do pensamento marxista para o processo de ruptura com o tradicionalismo do Serviço Social, cabe salientar que os anos 80 revelam uma conquista fundamental: a consciência do profissional de sua condição de trabalhador, que rebate na organização política da categoria e na reflexão marxista que, gradativamente, se apropria da realidade social, apreendendo o trabalho como elemento fundante da vida social” (Barroco, 1996:282).

No processo de implantação deste código, mediante determinadas condições objetivas, e considerando novos estudos e pesquisas sobre a ética, foram identificadas sérias limitações teórico-práticas neste documento, o que gerou a necessidade de reformulá-lo.

Dentre os limites detectados “do ponto de vista conceitual, podemos verificar que o texto de 1986 não observa a heterogeneidade intraclasse, que hoje está sendo discutida no interior das Ciências Sociais, em relação a aspectos de diferenças de raça, origem, etnia, geração e gênero. A perspectiva de classe deve ser assegurada, porém melhor explicitada, na direção de uma ampliação conceitual e política dos pressupostos que norteiam a profissão” (Silva, 1996:143).

O conjunto das limitações do Código de 86 foi alvo de problematizações e polêmicas nos debates coletivos, nos estudos e pesquisas, nos fóruns de discussão e deliberação da categoria profissional. Este processo demonstra um amadurecimento do debate ético no interior da profissão, conquistado, sobretudo, no início dos anos 90, meio a uma conjuntura favorável à reflexão ética no contexto sócio-político brasileiro.

A partir de então se construiu um processo coletivo de elaboração do Código de 93, coordenado pelo CFESS e com a importante participação da Comissão Técnica Nacional de reformulação do Código de Ética Profissional do (a) Assistente Social.

Este novo código explicita a defesa de princípios que rompem com uma perspectiva corporativista, na medida em que se inserem em uma dimensão societária e não apenas profissional. A defesa da liberdade, como questão central da reflexão ética; da democracia não só política, mas também econômica, da cidadania na perspectiva da universalização de direitos; da justiça social efetiva; dos direitos humanos como dimensão inalienável de todos os indivíduos sociais; da luta pela eliminação de todos os preconceitos e o respeito à diversidade são princípios defendidos para a profissão. Configura-se, desse modo, uma tensão permanente, pois é possível conquistar a materialização radical de tais princípios.

A vinculação do nosso projeto profissional à construção de uma nova ordem societária, conforme explicita o oitavo princípio do Código de Ética Profissional do (a) Assistente Social, é uma questão polêmica, complexa e que exige um conjunto de mediações e, nesses termos, tal abordagem, em sua profundidade, foge aos objetivos deste artigo. Ressaltamos que esta vinculação expressa a direção social estratégica hegemônica, construída coletivamente pela categoria profissional, ao longo das décadas de 80 e 90, com especial destaque para a ação política das entidades representativas que coordenam a organização política profissional.

Sob este enfoque, o que diferencia o Código de 93 do de 86 é que, no atual código, são construídas mediações para expressar a vinculação do projeto profissional a um projeto societário. Nesse sentido, há a defesa de que “o projeto de transformação mais geral deve ser encaminhado em outros espaços que não exclusivamente, o das práticas profissionais, ou seja, nos sindicatos, nos movimentos sociais, nos partidos políticos. Isto significa que aquela visão do assistente social como o agente privilegiado da transformação social está sendo revista” (Silva, 1996:142).

Uma outra importante modificação do Código de 93 em relação ao anterior se refere à concepção do ser social. Enquanto que no Código de 86, o ser social era analisado apenas na sua dimensão de classe, no atual, há uma abordagem que considera outras dimensões: o gênero, a etnia, a geração e a orientação sexual.

A partir desta concepção, o código coloca-se claramente contrário à exploração de classe e a todas as outras formas de opressão. Sob este ponto de vista, posiciona-se contrário a qualquer tipo de discriminação e preconceito, tanto no âmbito social quanto profissional. Ao se posicionar “a favor da ‘eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças’ e ao ‘exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, idade e condição física’ (CFAS, 1993:11) o código é inovador, abordando questões fundamentais à superação do moralismo” (Barroco, 1996:286).

Para contribuir na reflexão teórica sobre o moralismo e, mas particularmente, sobre o preconceito, no próximo item, abordaremos alguns elementos para a crítica e para a desconstrução dos desvalores que o fundamentam. Vale dizer, elementos estes significativos para a compreensão do quanto é nefasta a disseminação dos preconceitos no cotidiano profissional e em outras esferas da vida social.

 

  1. 2.      Preconceito: uma das expressões do moralismo e do conservadorismo7    

 

A sociabilidade sob o capitalismo tardio, ao preencher e penetrar todos os interstícios da existência humana, imprime, à vida cotidiana contemporânea, uma forma peculiar de alienação, a reificação das relações sociais (Netto, 1989). Nesses termos, a sociabilidade sob o capital reinventa suas formas de aprisionar e arrefecer a existência humana, tornando-a algo banal numa sociedade que ostenta o sentido pragmático e descartável dos objetos, mas também dos indivíduos e de suas relações sociais.

Segundo Tonet (1999:101) “é desta forma de sociabilidade que fazem parte as categorias do capital, do trabalho assalariado, da propriedade privada, da mais-valia, do valor-de-troca como elemento decisivo, do mercado e dos produtos como mercadoria (…) [e] também faz parte desta forma de sociabilidade o fetichismo da mercadoria, processo através do qual os produtos do trabalho humano se transformam em mercadorias e passam a assumir as qualidades típicas daqueles que as produziram enquanto estes tomam a forma de coisas”.

 


7 Importa realçar, de início, que para a elaboração das idéias aqui desenvolvidas inspiramo-nos, de modo especial em Heller, Agnes (Estrutura da vida cotidiana e Sobre os Preconceitos In: O Cotidiano e a história, 1989); Netto, José Paulo (Para a Crítica da vida cotidiana In: Cotidiano: conhecimento e crítica, 1989); Barroco (Ontologia Reflexão Ética, 1996 e Tonet, Ivo (Educação e Concepções de Sociedade In: Revista Universidade e Sociedade, 1999.)

A sociabilidade humana no capitalismo é marcada por profundos antagonismos, contrapondo-se os interesses do capital com os interesses do trabalho, permanecendo os interesses do capital materializados de forma hegemônica. “Deste modo, toda a vida dos indivíduos, em todas as suas manifestações é, de algum modo, colocada sob a ótica do capital. Desde o trabalho propriamente dito, até as manifestações mais afastadas dele, como a religião, os valores morais e éticos, a afetividade e as relações pessoais. O que não significa (…) que os aspectos, em sua totalidade, estejam subsumidos ao capital. Se assim fosse, sequer os indivíduos poderiam existir como indivíduos. Esta afirmação significa, apenas, que nenhum aspecto da vida social e individual, hoje, deixa de ser perpassado pelos interesses do capital” (ibid.,p. 102).

Refletir sobre os preconceitos supõe, em princípio, inscrevê-los na dinâmica da vida cotidiana – lócus privilegiado de sua reprodução e, nesse percurso, problematizar alguns aspectos que caracterizam a cotidianidade. Aqui, repousa o entendimento de que para a compreensão crítica dos preconceitos e o exame cuidadoso de suas manifestações há que se considerar o significado da cotidianidade em sua dimensão mais genérica, alargando o olhar para sua configuração na lógica da sociabilidade burguesa.

Segundo Heller (1989), os preconceitos são criados e disseminados na esfera cotidiana, constituindo-se, desse modo, numa categoria do pensamento e do comportamento cotidianos. A autora adverte, ainda, que os preconceitos exercem função substantiva, também, em esferas que gozam de universalidade e se encontram acima da cotidianidade, como por exemplo: a arte, a ciência, a política; embora, tais esferas se constituam lócus privilegiados que possibilitam a suspensão da cotidianidade e do rompimento do preconceito. Vale realçar que, os preconceitos não advêm dessas esferas, nem enriquecem sua utilidade; ao contrário, empobrecem e obscurecem o descortinar das possibilidades que elas comportam.

A vida cotidiana como centro do acontecer histórico configura-se como a vida de todos os indivíduos, ou seja, todos os seres humanos se produzem e reproduzem na cotidianidade. Trata-se do espaço-tempo de constituição-produção-reprodução do ser social e, conforme o entendimento de Heller (1989:17), “a vida cotidiana é a vida do homem inteiro”, posto que é nesse espaço que homens/mulheres se põem em movimento com todos os seus sentidos, capacidades e potencialidades. Contraditoriamente, a possibilidade da inteireza cancela a realização das capacidades e potencialidades em seu sentido pleno.

Isso por que a vida cotidiana é marcada, sobretudo, pela heterogeneidade tanto no que se refere ao conteúdo e significado das ações, como sobre a relevância das atividades que nos propomos realizar. O indivíduo atua em suas objetivações cotidianas se pondo como homem inteiro – mas apenas no terreno da singularidade, fixado que está na experiência, na busca de conceder respostas imediatas às diferentes atividades.

Somente quando supera a singularidade8 suspendendo a heterogeneidade da vida cotidiana e homogeneizando suas faculdades – não diluindo sua capacidade, mas, ao contrário, jogando toda sua força numa objetivação menos instrumental e imediata – é que o indivíduo se reconhece como portador da consciência humano-genérica9. Afinal, somente quando alcança o terreno da particularidade pode comportar-se, nos termos de Lukács, como homem inteiramente.

Inspirado nas elaborações lukacsianas, Netto (1989) adverte que além da heterogeneidade, os componentes ontológicos estruturais da vida cotidiana são a imediaticidade e a superficialidade extensiva;

Para o entendimento da imediaticidade, reconhecemos o homem e a mulher como seres que têm que dar respostas para inúmeras atividades. Tais respostas são formuladas numa velocidade tal que é razoável admitir o entendimento da vida cotidiana como unidade direta e imediata entre pensamento e ação, expressa, dentre outras formas, na identificação entre o verdadeiro e o correto. Isso porque, segundo Heller (1989:45), “o que revela ser correto, útil, o que oferece ao homem uma base de orientação e de ação no mundo, o que conduz ao êxito, é também ‘verdadeiro’”.

Eis que se põem os automatismos e espontaneísmos característicos da conduta cotidiana. A conduta imediata é marcada é marca indelével da cotidianidade.

A vida cotidiana marcada pela heterogeneidade e imediaticidade requisita de cada indivíduo respostas funcionais, que se referem ao somatório dos fenômenos que comparecem desconectados entre si em cada situação concreta. Trata-se aqui, da superficialidade extensiva que, conforme ilustra Netto (1989:66) “… a vida cotidiana mobiliza em cada homem todas as atenções e todas as forças, mas não toda a atenção e toda a força”. 10


8  O indivíduo, nessa suspensão, materializa a particularidade enquanto espaço de mediação entre o singular e o universal (Netto, 1989).

9 A respeito das possibilidades de objetivação do humano-genérico Cf. Heller (1977 e 1989); Netto, (1989) e Barroco (19996).

10 Grifos do autor

Os momentos característicos11 da conduta e do pensamento cotidianos imprimem uma conexão necessária entre si e são eles: hierarquia, imitação, espontaneidade, probabilidade, pragmatismo, economicismo, uso de precedentes, juízos provisórios, mimese, entonação e a ultrageneralização. Tais características quando levadas ao extremo e absolutizadas agudizam o processo de alienação. Nesse aspecto, adverte Heller que a vida cotidiana, de todas as esferas da realidade, é aquela mais propensa à manifestação da alienação.

Exemplos corriqueiros deste processo de alienação ocorrem quando a hierarquia é levada ao extremo, gerando a inflexibilidade; quando a imitação é exagerada, cerceando a captação do novo; quando nossas ações são demasiadamente pragmáticas, reforçando a padronização ou quando a ultrageneralização é absolutizada, formando-se os pré-juízos que resultam em preconceitos.

Para entendermos o modo como se estruturam os preconceitos, vale centrar o olhar em torno da ultrageneralização, entendendo-a enquanto um elemento característico e inevitável da vida cotidiana, que, no entanto, quando conduzida à extrema rigidez pode ter consequências problemáticas. Segundo Heller (1989:44), “chegamos à ultrageneralização (…) [quando] por um lado, assumimos estereótipos, analogias e esquemas já elaborados; por outro, eles nos são ‘impingidos’ pelo meio em que crescemos e pode-se passar muito tempo até percebermos com atitude crítica esses esquemas recebidos, se é que chega a reproduzir-se uma tal atitude”. E nesse sentido, “toda ultrageneralização é um juízo provisório ou uma regra provisória de comportamento” (id).

A problematização desses esquemas depende tanto das condições subjetivas, através da atitude crítica dos indivíduos, quanto das condições objetivas postas pelo contexto histórico, sendo mais frequente o questionamento dos estereótipos de comportamento e pensamento em épocas dinâmicas do que nos períodos estáticos. Vale destacar que pessoas dinâmicas e críticas tendem mais rapidamente a este questionamento, do que pessoas inclinadas para o conformismo. E vale realçar, ainda o papel das instituições sociais como a família, a escola, a universidade, o trabalho, a igreja, os movimentos sociais, dentre outras, enquanto aparelhos de hegemonia, espaços de correlação de forças nos quais se provoca processos de socialização permanente, ora para contribuir para a manutenção do status quo, ora para transgredi-lo.


11 Para compreensão de cada um desses momentos característicos do comportamento e do pensamento cotidianos Cf. Heller (1989: 17 à 41).

Preconceito é uma manifestação particular do juízo provisório. Segundo Agnes Heller (1989:47), os preconceitos são “juízos provisórios refutados pela ciência e por uma experiência cuidadosamente analisada, mas que se conservam inabalados contra todos os argumentos da razão”. Nesse sentido, os preconceitos têm sua sustentação em bases afetivas e irracionais amparadas na desinformação, na ignorância, no moralismo, no conservadorismo e no conformismo. Numa palavra, na naturalização dos processos sociais. Tais determinações por estarem inscritas numa dada formação sócio-cultural poderão, no nosso entendimento, até explicar atitudes de discriminação, mas nunca justificá-las.

Para Heller, podemos distinguir vários tipos de preconceito: preconceitos científicos, políticos, de grupo, nacionais, religiosos, raciais, morais etc. centrando o olhar para os preconceitos morais, um aspecto torna-se substantivo. Trata-se da vinculação entre preconceitos morais e valores, ou mais precisamente desvalores. Mas o que são valores e desvalores?

Valor é “tudo aquilo que, em qualquer das esferas e em relação com a situação de cada momento contribua para o enriquecimento daqueles componentes essenciais; e pode-se considerar desvalor tudo o que direta ou indiretamente rebaixe ou inverta o nível alcançado no desenvolvimento de um determinado componente essencial” (Heller, 1989:04/05). Os componentes da essência humana são, para Marx, a objetivação pelo trabalho, a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade12.

Heller nos adverte para o entendimento de que o preconceito, abstratamente considerado, via de regra, representa-se com conteúdo axiológico negativo. Numa palavra, “é sempre moralmente negativo”. Isso por que “todo preconceito impede a autonomia do homem, ou seja, diminui sua liberdade relativa diante do ato de escolha, ao deformar, consequentemente, estreitar a margem real de alternativa do indivíduo” (1989:59).

Sobre este aspecto, moralismo enquanto base de sustentação do preconceito, é entendido por Barroco (1996:83) como “uma forma de alienação moral, pois implica na negação da moral enquanto uma forma de objetivação da consciência crítica, das escolhas livres, de construção da singularidade”.

Existem várias expressões dos preconceitos, dentre as quais as mais freqüentes são: a não universalização dos valores morais, a intolerância e a indiferença.


12 Dados os limites objetivos deste ensaio não discorreremos acerca dos componentes da essência humana. A este respeito ver Barroco (1996).

A primeira, se caracteriza pelo respeito apenas às pessoas que gosto, que pertencem a minha família ou ao meu grupo. Nesta perspectiva, fere-se princípios éticos centrais, tais como: a igualdade e a universalidade, no sentido de que estes permitem a visão dos indivíduos como seres humano-genéricos. Vale realçar, ainda, que, sob este ponto de vista, o respeito não é entendido como necessário para com os sujeitos de outros grupos que ajam, pensem, sintam diferente de mim e dos meus. Nestes termos, tanto a negação da igualdade como o desrespeito reforçam a cultura corporativista, traço tão forte de nossa formação histórico-social.

Outra situação do preconceito é a intolerância13 que se dissemina na não aceitação da diferença e na tentativa de censurá-la ou silenciá-la. Por fim, temos, também, a indiferença que se expressa na ignorância e na falta de solidariedade aos que não pertencem ao meu grupo.

Os preconceitos constituem, pois, uma modalidade de discriminação sobre àqueles (as) que se orientam na vida de forma diferente dos padrões dominantes. Nesse horizonte, “o desprezo pelo ‘outro’, a antipatia pelo diferente, são tão antigos quanto à própria humanidade” (Heller, 1989:55).

Assim, inseridos (as) no novo milênio, mas em meio a velhas desigualdades e opressões, em determinados contextos históricos, homens e mulheres permanecem alvo de atitudes de cunho preconceituoso, por que não compõem o padrão dominante de sexualidade, do estético, do étnico, do etário etc. estas atitudes discriminatórias da condição de existir são práticas que ganham legitimidade com a crescente banalização de múltiplas formas de opressão de dominação. Afinal, por que temos que nos enquadrar, nos padronizar?

Homens, mulheres, crianças, adolescentes, idosos (as) na condição de seres humanos necessitam, na sua objetivação enquanto tais, responder a múltiplas dimensões de sua existência, seja de natureza social, política, cultural, ética e sexual. Será legítimo, do ponto de vista ético, negá-las, ocultá-las, obscurecê-las, abstraí-las a partir de bases conservadoras e moralistas?


13 Um exemplo, para ser banal, a este respeito, refere-se à ridicularização do humano através do humor. Tendo o riso como finalidade, por vezes, são criadas situações de constrangimento em que se dicotomizam os meios dos fins. Se fizermos um balanço dos programas de humor apresentados, sobretudo, na televisão brasileira, identificaremos que, na sua maioria quase absoluta, tais programas expressam o humor através de situações vexatórias para: o(a) negro(a); para a mulher; para o(a) homossexual; para os(as) gordos(as); para os(as) portadores(as) de necessidades especiais e para os(as) nordestinos(as), dentre outros. Ora, brincadeiras e piadas que põem o outro em situação de constrangimento são atitudes que expressam profundo preconceito e discriminação. Em uma palavra, degradação do humano. Trata-se do humor sarcástico.

Segundo Jaime Pinsky (1999), o preconceito e a própria discriminação, entendida como preconceito em ação, ganham terreno quando, cotidianamente, falamos da suposta e falsa inferioridade dos (as) negros (as) e das mulheres; dos (as) nordestinos (as) e dos (as) judeus (judias); dos (as) velhos (as) e da juventude; dos indivíduos portadores de baixo-alta estatura e de necessidades especiais; dos (as) gordos (as); dos (as) homossexuais, bissexuais e transgêneros, dentre outros.

Considerando que homens e mulheres só podem conviver em sociedade, a discriminação sempre ocorrerá em relação ao outro, portanto, a discriminação é fruto das relações sociais que estabelecemos através da reprodução de desvalores que, por vezes, incorporamos acriticamente no nosso cotidiano. As várias facetas do preconceito se manifestam em vários lugares, revelam-se na família, na escola, na igreja, no trabalho, nos partidos, nos sindicatos, nos movimentos, nas ruas, nos bares…

A atitude preconceituosa não pode ser destituída do conteúdo ideológico que lhe é inerente, permitindo banalizar e naturalizar através de brincadeiras, piadas e gozações, aspectos do jeito de ser e viver dos indivíduos, colocando-os em situação vexatória.

Nesses termos, partindo das reflexões até então desenvolvidas, uma questão merece destaque: para que serve a reprodução dos preconceitos? Para Agnes Heller, “os preconceitos servem para consolidar e manter a estabilidade e a coesão da integração dada” (1989:54). Poderíamos, desse modo, afirmar que, ao reproduzirmos preconceitos na vida cotidiana, estamos corroborando para manter ideológica e moralmente a estabilidade e coesão da sociedade capitalista na qual vivemos, reforçando, independente da consciência que os sujeitos têm e sua ação preconceituosa, a manutenção da hegemonia de um projeto político opressor e explorador.

Diante do exposto, torna-se fecundo, na atualidade, reeditar a inquietação de Heller (1989:59) quando se interroga: “que é necessário para que o homem possa escolher com relativa liberdade em determinadas circunstâncias concretas?” Ou, com outras palavras, “como libertarmo-nos dos preconceitos?”

O preconceito é contrário a princípios e valores éticos fundamentais: a liberdade, dignidade, respeito, pluralismo e democracia. A construção de uma sociedade emancipada exige o respeito ao diferente e a garantia da dignidade humana. Neste sentido, o “empenho na eliminação de tosas as formas de preconceitos, o respeito à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças”14, deve ser um princípio ético-político defendido por todos os indivíduos e profissionais comprometidos (as) com a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.


14 In: Código de Ética dos (as) Assistentes Sociais, 1993.

Diversos segmentos comprometidos com esta construção democrática estão lutando pela defesa dos direitos de grupos socialmente discriminados, destacando-se a presença do movimento negro, movimento de mulheres, movimento homossexual e movimento de defesa dos direitos humanos, dentre outros. Esses movimentos sociais são extremamente importantes no processo de publicização e crítica dos preconceitos na sociedade, além de pressionares pela aprovação de leis15 que garantam juridicamente aos segmentos discriminados o reconhecimento dos seus direitos. Tais lutas e iniciativas contribuem para o amadurecimento da democracia, da liberdade e da autonomia.

Paiva e Sales (1996) ao refletirem sobre o princípio ético-político presente no Código de 93, que orienta os (as) profissionais a se empenharem na eliminação dos preconceitos, enfatizam a necessidade de formulação de estratégias de ação que contribuam para a desalienação dos sujeitos com os quais os (as) assistentes sociais contracenam no espaço institucional, bem como a importância da tolerância e do respeito ao diferente para o amadurecimento da democracia.

No âmbito Profissional, o enfrentamento deste debate sobre os preconceitos assume relevância em diversas dimensões: na produção teórica, no ensino, no exercício profissional, na normatização e na organização política. Na esfera teórica e no ensino, faz-se necessário aprofundar e ampliar o debate em torno desta temática com o objetivo de estimular o conhecimento crítico sobre a sociedade e a subjetividade dos indivíduos sociais.

No âmbito do exercício profissional é fundamental o desenvolvimento de um constante processo de capacitação e reflexão para que as (os) assistentes sociais entendam e se posicionem de forma crítica frente às manifestações de preconceito. Isso porque cotidianamente lidam com usuários (as) das mais diversas orientações políticas, religiosas, sexuais, sociais, culturais etc. Estarão, assim, contribuindo para a formação de uma postura baseada no respeito à igualdade, à liberdade e ao pluralismo, princípios evidenciados no Código de 93. Estas diferentes orientações no jeito de ser e de viver, muitas vezes, se constituem num solo fértil de disseminação de múltiplas formas de preconceito e discriminação.


15 Destacamos a Lei Caó (Lei 7716 de 05.01.1989) que institui o racismo como crime inafiançável e o Projeto de Parceria Civil Registrada, originalmente denominado de Projeto de União Civil, de autoria da então Deputada Federal e hoje atual Prefeita de São Paulo, Marta Suplicy (PT) que tem como objetivo contribuir na garantia da cidadania sexual dos que amam de forma diferente daquela defendida pelo padrão sexual dominante.

Na dimensão da normatização profissional se destacam os avanços do Código de Ética de 1993 que amplia a compreensão do ser social para além da sua inserção de classe, incluindo as dimensões de gênero, etnia, geração, orientação sexual etc., explicitando, desse modo, a defesa da eliminação dos preconceitos e o exercício do Serviço Social sem discriminar nem ser discriminado (a).

Na esfera da organização política, observa-se uma preocupação das entidades representativas com a discussão sobre esta temática, destacando-se o protagonismo do Conjunto CFESS/CRESS que vem dando uma direção política à dimensão ética na profissão. Destaca-se a importância da existência da Comissão de Ética e Direitos Humanos do CFESS, a realização do Projeto Ética em Movimento16, a discussão e aprovação de Princípios Éticos e Políticos para as Organizações Profissionais de Trabalho Social do Mercosul17, a elaboração de pareceres jurídicos18 que questionam leis discriminatórias e a articulação com outros movimentos de defesa dos direitos humanos.

Nosso posicionamento sobre os preconceitos passa, necessariamente, por reflexões ético-políticas, pelo questionamento sobre quais valores estamos internalizando e disseminando. Enfim, podemos afirmar que a atitude de superação dos preconceitos exige um processo contínuo de reflexão e crítica frente aos desvalores que aprendemos em espaços como a família, a escola etc. Muitas vezes, estes desvalores escondem, na aparência de serem corretos, o desrespeito e a discriminação.


16 Aprovado no XXVIII Encontro Nacional CFESS/CRESS (setembro, 1999) e implementado pela gestão do CFESS “Brasil, mostra a tua cara” (1999/2002) tem como eixos: capacitação, denúncias, visibilidade social da ética profissional e fortalecimento da interlocução com organismos internacionais e nacionais de defesa dos direitos humanos e sociais. Cf. Relatório do Encontro Nacional CFESS/CRESS, MS, 1999.

17 Cf. Revista Inscrita nº7. São Paulo: CFESS, 2001.

18 Durante a realização do XXIX Encontro Nacional do Conjunto CFESS/CRESS (setembro/2000) em Maceió/AL a CEDH/CFESS socializou a informação sobre os folhetos de orientação à doação de sangue dos estados de RN, PE e CE, os quais interditam os chamados, indevidamente, ‘grupos de risco’. Como fruto da discussão ocorrida neste encontro, a CEDH/CFESS incorporou a demanda e encaminhou junto à acessória jurídica do CFESS o pedido de elaboração de parecer sobre o assunto. Em 2001, é aprovado em reunião do Conselho Pleno do CFESS o parecer jurídico (009/2001), cujo conteúdo, dentre outros, sugere ação de interpelação ao Ministério da Saúde. A CEDH/CFESS, considerando a necessidade de fortalecimento e ampliação da ação do conjunto CFESS/CRESS contra práticas que desumanizam, negando a liberdade e dignidades humanas encaminhou este parecer para conhecimento e ampla divulgação aos movimentos de gays, lésbicas e travestis, bem como ao FENTAS e organização que trabalhem com a questão da AIDS.

“Por mais difundido e universal que seja um preconceito, sempre depende de uma escolha relativamente livre o fato de que alguém se aproprie ou não dele. Cada um é responsável pelos seus preconceitos.A decisão em favor do preconceito é, ao mesmo tempo, a escolha do caminho fácil no lugar difícil, o ‘descontrole’ do particular-individual, a fuga diante dos verdadeiros conflitos morais tornando a firmeza algo supérfluo” (Heller, 1989:60).

Posturas de reflexão e questionamento contribuem para romper com o comodismo e geram conflitos necessários ao processo de transformação dos desvalores e das ações preconceituosas, afinal “crer em preconceitos é cômodo porque nos protege de conflitos, porque confirma nossas ações anteriores” (Heller, 1989:48)

Está em nós a possibilidade de transformar tais entendimentos e atitudes preconceituosas. Isso pressupõe identificar que tipo de sociedade e parâmetros de relações humanas desejamos construir. Nós somos responsáveis pela construção dessas respostas e, ao lado de outros sujeitos individuais e coletivos, podemos fortalecer, sob dadas condições históricas, a luta pela materialização do projeto de emancipação humana. Sobre isso, Antunes afirma que, “o fim das formas de opressão de classe, se geradoras de ma forma societal autenticamente livre, autodeterminada e emancipada, possibilitará o aparecimento de condições histórico-sociais nunca igualitários que permitam a verdadeira existência de subjetividades diferenciadas, livres e autônomas” (1999:110).

 

 

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Para uma inclusão da dimensão ética no entendimento da questão social ambiental: elementos para o debate

Andréa Lima da Silva1

“Com a verdade fui solidário: de instaurar a luz na terra. Quis ser tão comum como o pão, a luta não me encontrou ausente”

Pablo Neruda

 

Desde a era primitiva o homem começa a tirar proveito da natureza. No Paleolítico Inferior a descoberta do fogo pelos hominídeos revolucionou o modo de agir e pensar, passando à fabricação e ao uso de instrumentos de pedra e pedra lascada para a caça.

A partir desta era, a história da humanidade registra o surgimento de várias civilizações, bem como a ascensão de impérios e o declínio de outros: a escravidão; o feudalismo; o mercantilismo; o colonialismo; o período das grandes guerras e revoluções e acumulação capitalista. Na realidade, o percurso histórico se desenvolve aqui, mas que marcaram a trajetória histórica de todas as sociedades.

História esta que vai revelando a presença humana na transformação dos objetos, dos valores e das relações sociais, criando o que não poderia nem ser imaginado algum tempo atrás. Exemplo disso é o próprio conceito de Natureza que passa a ser entendido na sua dimensão cultural e não somente no seu aspecto “divino”.

O individuo social da era – mecânica/técnica – torna real o “mito de Sísifo”2, criando pela sua engenhosidade, o avanço da tecnologia e da ciência que, contraditoriamente, torna-se, também, o seu pesadelo, à medida que os seus inventos parecem não resolver os grandes problemas da humanidade, além de criarem novas problemáticas. E, por isto nos perguntamos, afinal: quais são os limites da ciência? A tecnologia avançada, a robotização industrial, a cibernética, a informática estão a serviço de quem? A clonagem humana interessa, de fato, para a humanidade? A volta do programa guerra nas Estrelas dos EUA atenua as desigualdades sociais? Sísifo na mitologia foi castigado pelos Deuses.

 


1 Mestranda em Serviço Social – UFPE. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ética (GEPE) do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UFPE.

2 Sobre o mito de Sísifo Cf. Ferraro, Franco. Dizionario della civiltà clássica.

Hobsbawn (1995:562) profeticamente declarou “as forças geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientemente grandes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida humana… Nosso mundo corre o risco de explosão e implosão. (…) A humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base vamos fracassar. E o preço do fracasso (…) é a escuridão”.

Vivemos hoje uma hecatombe ambiental. O caos se instalou em todas as células que compõem o tecido social; há guerras nos quatro cantos do globo terrestre; o planeta sofre com a emissão de gases poluentes jogados na atmosfera e a fome se perpetua como um mal social na história da humanidade. Atualmente, são 800 milhões de pessoas atingidas pela fome no mundo inteiro. A crise energética afeta dezenas de países, correndo o risco de voltarmos ao tempo em que a luz do fogo clareava as cavernas. A morte de Sísifo agora é eminente.

O desemprego tornou-se o Leviatã da globalização, que, segundo Santos (2000:19) “é uma fábrica de perversidade. O desemprego torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes”.

No campo e na cidade tornamo-nos estrangeiros. A terra continua sendo um bem privado e extremamente concentrada para que os latifúndios não escapem ao domínio dos grandes proprietários da terra. Nos centros urbanos, as cidades informais crescem e se aglomeram meio ao planejamento paisagístico de uma cidade alheia à existência, por exemplo, de personagens tais como seu Chico, um desempregado que mora na Favela do Fio e Dona Maria e sua prole, favelados (as) e retirantes do interior castigado pela seca.

A questão ambiental transcende a ecologização comumente utilizada na abordagem desse tema, ou seja, o entendimento da questão ambiental e a luta dos ambientalistas não podem ser reduzidas ao plano do ambiente natural, da defesa da fauna e da flora. É preciso salvar as espécies as espécies da extinção não só vegetal e animal, mas a própria espécie humana que se encontra, também, em risco de extinção face aos desmandos da questão social e política em nível mundial.

Nessa perspectiva, é relevante estabelecer um olhar crítico na análise do processo de degradação ambiental. A questão ambiental vem sendo discutida, “oficialmente”, especificamente a partir da década de 70. Foi na Conferência de Estocolmo em 1972, que as preocupações com o meio ambiente tornaram-se, de fato, uma preocupação social, envolvendo, assim, a discussão sobre o futuro da humanidade. A inclusão da “questão social” no debate sobre meio ambiente serviu, entre outros fins, para reverter a dicotomia entre homem/natureza que predominou no pensamento ocidental por muito tempo.

Um outro marco na discussão da questão ambiental, aconteceu em 1977, na histórica Conferência de Tibilisi (URSS), realizada a partir da recomendação nº963. Em Tibilisi, foi referendada a necessidade de incorporar todos os aspectos que compõem a complexidade da questão ambiental: o político, o social, o econômico, o ecológico e o cultural. Assim, delineou-se que a Educação Ambiental fosse capaz de “formar para a autonomia, para o reconhecimento dos deveres e também para o conhecimento e exigência dos direitos, tanto para si quanto para os demais. Levando em conta que a humanidade é livre para traçar os destinos de todo o planeta, despertando para a consequente responsabilidade que isso implica, tanto do ponto de vista social quanto do ponto de vista histórico” (PCN, 1995:9).

A Educação ambiental, inicialmente, foi entendida como um tema basicamente relacionado à ecologia. Isso acontecia, principalmente, nos países periféricos como o Brasil, que excluiu, deste debate, o caráter político-social e cultural. “…Ou seja, em termos educacionais, a questão ambiental continuou sendo vista como algo pertinente às florestas, mares e animais ameaçados de extinção, enquanto não era discutida a condição do homem, os modelos de desenvolvimento predatórios, a exploração dos povos, o sucateamento do patrimônio biológico e cultural, a expansão e o aprofundamento da pobreza no mundo e a cruel desigualdade social estabelecida entre os povos” (Dias, 1991:7).

As dicotomias epistemológicas entre homem/natureza, natureza/sociedade aos poucos estão sendo dissolvidas no interior do debate acerca da questão ambiental. O nó conceitual oriundo da cultura greco-romana, serviu, muitas vezes, além de outros aspectos, para disseminar a idéia de que o indivíduo era o senhor de tudo, das coisas, de outros homens e mulheres, donos da natureza. Esse antropocentrismo perdura nos dias de hoje, cristalizado na forma como o indivíduo se apropria da natureza (tanto no seu ambiente natural como no construído). O sistema filosófico antropocêntrico influenciou o modo predatório e a conduta de dominação do indivíduo sobre outros povos e sobre a natureza, reforçado depois pelo Liberalismo com a sua máxima do laissez-faire.


3 Trata-se de uma resolução aprovada na Conferência de Estocolmo que reconhece o desenvolvimento da Educação Ambiental como elemento crítico para o combate à crise ambiental do mundo (Dias, 1991:4).

No auge do fenômeno da globalização, há uma nova designação para o homem: o homo uno, senhor absoluto.

Este homo uno é subproduto do sistema capitalista, considerado o maior responsável pela destruição do meio ambiente. Na Inglaterra do século XIX, no auge da Revolução Industrial, o sistema capitalista revelou toda selvageria que lhe é peculiar. Segundo Huberman (1986:176), “se um marciano tivesse caído naquela ocupada ilha da Inglaterra teria considerado loucos todos os habitantes da terra. Pois teria visto de um lado a grande massa do povo trabalhando duramente, voltando à noite para os miseráveis e doentios buracos onde moravam, que não serviam nem para os porcos; de outro lado, as pessoas que nunca sujaram as mãos com o trabalho, mas não obstante faziam as leis que governavam as massas, e viviam como reis, cada qual num palácio individual”.

As desigualdades sociais causadas pelo capitalismo parecem ter se aprofundado muito ao longo de toda história, criando uma nova era em que, contraditoriamente, “um comércio ativo e próspero seja índice não de melhoramento da situação da classe trabalhadora, mas sim da sua pobreza e degradação…” (Huberman, 1986:176).

Na citação anterior, Huberman (1986) descreve uma determinada situação vivenciada pelos trabalhadores na época da Revolução Industrial, mas qual a diferença deste fato histórico do século passado para a contemporaneidade?

A chamada Revolução Tecnológica tal qual a Revolução Industrial, transformou novamente as forças produtivas do sistema vigente, na busca de reciclar e dinamizar o ciclo reprodutivo do capital. O modelo capitalista, através das transformações advindas da Revolução Tecnológica e Científica, reinventa, permanentemente, novas estratégias e produtos para dinamizar o mercado, criando, na aparência, uma preocupação em garantir “benefícios” para a humanidade mas, tendo, como finalidade real, a garantia do lucro e o processo de acumulação capitalista.

O grande desafio para as Ciências, especificamente para as Ciências Sociais, além da introdução da questão ambiental em suas preocupações analíticas, é imprimir um caráter crítico/global na análise dessa questão, unificada à “questão social”, posto que ambas se agudizam no produtivismo.

O produtivismo é entendido como parte constitutiva do processo de acumulação capitalista e, consequentemente, do modelo de desenvolvimento hegemônico que se pauta na lógica do consumo. Isso porque, “… o capital no uso crescente do incremento tecnológico, como modalidade para aumentar a produtividade, também, necessariamente implica crises, exploração, pobreza, desemprego, destruição do meio ambiente e da natureza, entre tantas formas destrutivas” (Antunes, 1999:34).

O modelo de desenvolvimento hegemônico interfere, substancialmente, no campo da moral e da ética, pois a mundialização capitalista aflora, também, os males morais da sociedade ao superdimensionar, como positivo, desvalores4, tais como: o individualismo, a corrupção, a hipocrisia, o “jeitinho brasileiro”. Estes desvalores são, também, substratos acentuados no projeto político da globalização.

Pensar, hoje, num ambiente equilibrado, com qualidade de vida, é sinalizar, primeiramente, para a superação da dominação entre os diversos povos, da superação da exploração da classe trabalhadora, da superação dos preconceitos contra raça/gênero/orientação sexual/ religião etc. Desta forma, é imprescindível a presença e efetivação da ética como dimensão primaz para garantir um direito indelével: a liberdade.

Milton Santos nos coloca uma questão pertinente para o entendimento de como o avanço tecnológico, a modernidade e a globalização são fenômenos paradoxais que fazem girar as engrenagens da ciranda financeira, aumentando o acúmulo do capital nos países ricos e, por esta mesma engrenagem, forja uma política excludente para os países pobres em “desenvolvimento”.

Nas suas palavras: “a globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internalização do mundo capitalista. Para entendê-la, como, de resto, e qualquer fase da história, há dois elementos fundamentais a levar em conta: o estado das técnicas e o estado da política. As técnicas são oferecidas como um sistema e realizadas combinadamente através do trabalho e das formas de escolhas dos momentos e dos lugares de seu uso. É isso que fez a história… Ela é também o resultado das ações que asseguram a emergência de um mercado dito global, responsável pelo essencial do processo políticos atualmente eficazes… Um mercado global utilizando esse sistema de técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro” (Santos, 2000:23/24).

Chegamos ao ponto central deste debate: a ação política dos homens e mulheres como fator fundamental para a construção de outra sociabilidade.

Há séculos, estamos enraizados (as) a uma perversa lógica capitalista, em que o TER subtrai o significado e a concretude do SER.


4 Cf. Heler (1989)

Nossas ações, atitudes e pensamentos voltaram-se predominantemente, para o incremento das relações das forças produtivas. Viramos coisas, peças, roldanas, máquinas – somos mais um utensílio do conjunto de técnicas do sistema produtivo. A ética aristotélica do “meio-termo de ouro” não se aplica para um cotidiano tecnificado e consumista.

Deste modo, o ético-político torna-se imanente para a construção de uma outra sociabilidade: ecológica, social, cultural, econômica e politicamente equilibrada, “por isso, a posição do homem diante da facilidade é de uma práxis transformatória: ele transforma o que encontra no processo de sua efetivação” (Oliveira, 1993:13).

Para Kant, homens e mulheres deveriam ser “guiados” por uma lei moral universal e toda a humanidade tinha acesso a essas leis morais. Para este filósofo, a razão determina o que é certo e errado, ou seja, a razão prática faz este julgamento no campo da moral.

Kant em suas elocubrações sobre o que é certo ou errado, sobre o bem e o mal compilou uma noção do dever. Os homens e mulheres deveriam ser governados pela consciência do dever. Ele então formulou a sua lei moral: o Imperativo Categórico, válido para todas as situações: “age sempre de modo que a máxima determinante de sua conduta possa transformar-se em lei universal e de modo que todos possam seguir o primeiro determinante de sua ação”. 5

Desta forma, o indivíduo romperia a casca individual e trataria a humanidade como um fim e não como um meio. A lei moral de Kant foi erguida sobre dois pilares fundamentais aos seres humanos: a dignidade e o respeito, no entanto, o imperativo categórico kantiano revelou-se atemporal.

O dever ser que foi edificado ao longo da história das civilizações não propiciou o encontro do indivíduo com o seu ser, ele não consegue ser livre, o homem indubitavelmente continua sendo escravo de uma racionalidade capitalista, continua agindo predatoriamente no uso e na apropriação da natureza e, na sua idiossincrasia cotidiana permanece à mercê de suas terríveis designações: de homo economicus e homo uno.

Nos dias de hoje, há uma carência de comida, trabalho, não há moradia para todo (as), faltam condições para garantia da dignidade, a justiça sucumbe às injustiças, a democracia é volúvel e acovarda-se diante do autoritarismo, a coragem é escassa.


5 In: Gaarder, Jostein. O mundo de Sofia: a história do romance da filosofia. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

O ethos hegemônico vem determinando a corrupção dos valores universais, putrefando como mais uma mercadoria perecível neste mundo de coisas.

Poderia então, a ética “salvar” o planeta e os homens e mulheres de suas próprias ações destrutivas?

A ética, entendida enquanto conjunto de princípios e valores que orientam a ação do indivíduo no mundo, não é um pó mágico que jogado num indivíduo provoque, de forma imediata e mecânica, transformações nos seus valores e atitudes. A ética se materializa na ação política, construída historicamente. O ser ético é, por conseguinte, um ser político lapidado, permanentemente, na sua práxis.

O modelo de desenvolvimento hegemônico é concentrador, privatista e excludente e a proposta de preservação da natureza; equidade; justiça social; democracia; respeito às diferenças de orientação sexual, religiosa, racial etc. tendo a ética como fundamento tornam-se incomparáveis, na sua radicalidade, com o sistema capitalista. O que não significa subtrair as contradições por onde emanam possibilidades concretas para gestar novos valores e práticas. No entanto, a mudança de consciência amparada nos valores ético-políticos, sociais e ambientais exigidos por um novo modelo de desenvolvimento sustentável, por si só, não é capaz de garantir a transformação societária.

Vale considerar, segundo Barroco (2000:32), que “são os homens que criam as normas e valores, porém, nas sociedades de classes, as relações sociais por eles estabelecidas são movidas por necessidades e interesses contraditórios, donde a impossibilidade de existirem valores absolutos ou uma concepção de bem que correspondam ao interesse e às necessidades de todos. Por isso, a moral é também marcada por essa contraditoriedade; historicamente seus valores e princípios adquirem diferentes significados e atendem, indiretamente, a interesses ideológicos e políticos de classes e grupos sociais”.

Para a apreensão e compreensão da questão ambiental é fundamental a materialização do que se convencionou chamar de interdisciplinaridade. É através do caráter interdisciplinar que é possível se evitar alguns reducionismos neste debate tão complexo. Isso porque a questão ambiental é tratada, às vezes, tão somente no enfoque biológico, reduzindo-a numa “biologização” ou é entendida sob o olhar endógeno para seus aspectos exclusivamente geográficos. Mesmo uma análise econômico-político e social, se não levar em consideração o entendimento e o respeito à natureza, não escapará de uma análise reducionista na empreitada em busca do conhecimento da realidade.

Desse modo, as preocupações sociais e políticas introduzidas, a partir da década de 70, na discussão ambiental possibilitaram a transversalidade no seu entendimento, aproximando, como já foi dito antes, as Ciências Sociais do debate sobre o meio ambiente.

Considerando este caráter transversal para a compreensão da questão ambiental e um conjunto de novas demandas que estão postas na contemporaneidade, a profissão de Serviço Social vem tecendo, a cada dia, mecanismos para o enfrentamento dos problemas sociais/políticos/ambientais ocasionados pelo modelo de desenvolvimento do sistema capitalista, tornando-se, a exemplo de outras profissões, partícipe das transformações societárias do século XXI.

Os princípios fundamentais contidos no Código de Ética dos (das) Assistentes Sociais tais como a luta pela defesa intransigente dos direitos humanos, equidade, justiça, erradicação dos preconceitos estão intrinsecamente relacionados à questão ambiental. Isso porque, tais princípios constituem elementos imprescindíveis para a garantia de condições que possibilitem a existência de um ambiente equilibrado: democracia; ampliação e consolidação da cidadania; eliminação dos preconceitos etc. são partes constitutivas de uma agenda ambiental que preconiza o desenvolvimento humano como condição para a construção de um desenvolvimento sustentável.

Vale considerar que, no Código de Ética dos (as) Assistentes Sociais de 1993, não há uma referência explícita à questão ambiental. Tal fato talvez se explique pela forma tardia na qual a questão ambiental se insere como problemática a ser enfrentada no universo das diversas profissões. No entanto, admite-se que a abrangência dos princípios ali contidos permite o desdobramento de inúmeras questões que são fundamentais no processo de luta pela efetivação de um desenvolvimento realmente humano.

A materialização da dimensão ética, mesmo nesse tempo de produção em grande escala, da exclusão e da naturalização da exploração dos indivíduos, não é algo invisível e abstrato, pois a ética não é uma peça arqueológica datada de 384-322 a.c, mas para seu reconhecimento no contexto atual se faz necessário resgatar seus princípios originários, levando em consideração que, no processo histórico, tais princípios foram violados. Criou-se a partir da dimensão ética, uma falsa moral – um moralismo decadente e operante próprio do nosso tempo “de gente cortada e dividida”. Confirma-se o que Oliveira (1993:28) afirmou: “há na sociabilidade capitalista uma negação estrutural do ético.”

Herdamos um mundo doente/carente de políticas públicas e humanas, carentes de justiça e de amor, e por que não falar de amor? Para se amar é preciso estar livre e esta liberdade tem que ser coletiva. O amor, assim como a ética, é universalizante. “A única saída para o homem é a construção de uma sociabilidade alternativa, onde o homem se ponha como sujeito verdadeiro, à medida que possa configurar sua vida como associação de homens livres, o reino da liberdade” (Oliveira, 19993:29).

Já foi dito anteriormente que a proposta de uma sociedade econômico/social/ambiental/cultural e politicamente equilibrada destoa do paradigma de desenvolvimento hegemônico, todavia a ação ético-política dos indivíduos poderá ser decisiva na superação desta sociabilidade tão perversa e desigual em que vivemos. Afinal, “processos de transformação social são mais que mudanças sociais, mais que processos de modernização social. A transformação social não é apenas uma função da existência objetiva de requisições e demandas socialistas: ela é, ainda, sobretudo, função de uma vontade política capaz de fundar uma estratégia apta a orientar a ação política dos homens para a constituição de uma nova ordem social” (Netto, 1996:28).

Nós que pertencemos a esse grandioso clã que é a humanidade, precisamos redimensionar nossa ação política, revisitando de modo contínuo nossos valores, para, desse modo, construir a possibilidade do futuro. Teremos que atender às necessidades individuais sem colocar em xeque uma conduta ético-política, pois, só, assim garantiremos aos homens e mulheres do presente e aos indivíduos do futuro um ambiente habitável e humanizado.

A discussão sobre a questão ambiental, envolvendo particularmente a discussão do desenvolvimento sustentável e da esfera ética, insere-se no jogo de correlação de forças entre projetos societários antagônicos. Sob o domínio do capital, o desenvolvimento é visto na perspectiva meramente econômica, menosprezando a dimensão social e ética. “Todavia, no combate em prol de uma civilização, ao mesmo tempo, mais humana e mais respeitadora da natureza, é necessário que todos os movimentos sociais emancipadores estejam associados” (Lövy, 1999:10). A articulação dos movimentos sociais é fundamental para a elaboração de estratégias políticas que sinalizem, processualmente, acúmulo ético-político numa perspectiva de transformação social.

A luta por um desenvolvimento sustentável, pela liberdade política na China; pela ética no Congresso Nacional; a emancipação das mulheres iranianas; o fim das ditaduras asiáticas; a luta por autonomia das nações frente ao domínio do FMI e a luta dos sem-terra por Reforma Agrária são partes constituintes da mesma luta, apesar do enfrentamento aparentemente diferenciado.

A fome dói e mata, o preconceito corrói a alma dos indivíduos, o desemprego é aviltante, porém, um indivíduo marcado por injustiças e mal-alimentado moralmente, com fome de dignidade e respeito é duplamente faminto. Que a dimensão ética possa não sucumbir, mas, ao contrário, potencializar, cotidianamente, a reconstrução das ruínas humanas que imperam sob a sociabilidade do capital.

 

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PARTE II

 

Códigos de Ética Profissional do (a) Assistente Social

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DOS ASSISTENTES SOCIAIS

(Aprovado em Assembléia Geral da Associação Brasileira de Assistentes Sociais (ABAS) – Seção de São Paulo, em 29-IX-1947)

 

INTRODUÇÃO

       I.            Moral ou Ética pode ser conceituada como a ciência dos princípios e das normas que se devem seguir para fazer o bem e evitar o mal.

II.            A moral aplicada a uma determinada profissão recebe o nome de ÉTICA PROFISSIONAL; relacionada esta com o Serviço Social, pode ser chamada de DEONTOLOGIA DO SERVIÇO SOCIAL.

III.            A importância da Deontologia do Serviço Social provém do fato de que o Serviço Social não trata apenas de fator material, não se limita à remoção de um mal físico, ou a uma transação comercial ou monetária: trata com pessoas humanas desajustadas ou empenhadas no desenvolvimento da própria personalidade.

IV.            A observância dos princípios da Deontologia do Serviço Social exige, da parte do Assistente Social, uma segura formação em todos os ramos da Moral.

 

SECÇÃO I

DEVERES FUNDAMENTAIS

 

É dever do Assistente Social:

  1. Cumprir os compromissos assumidos, respeitando a lei de Deus, os direitos naturais do homem, inspirando-se, sempre em todos seus atos profissionais, no bem comum e nos dispositivos da lei, tendo em mente o juramento prestado diante do testemunho de Deus.
  2. Guardar rigoroso sigilo, mesmo em depoimentos policiais, sobre o que saiba em razão de seu ofício.
  3. Zelar pelas prerrogativas de seu cargo ou funções e respeitar as de outrem.
  4. Recusar sua colaboração ou tomar qualquer atitude que considere ilegal, injusta ou imoral.
  5. Manter uma atitude honesta, correta, procurando aperfeiçoar sua personalidade e dignificar sua profissão.
  6. Levar ao conhecimento do órgão competente da ABAS Secção de São Paulo, qualquer transgressão a este Código.
  7. Manter situação ou atitude habitual de acordo com as leis e bons costumes da comunidade.

 

SECÇÃO II

DEVERES PARA COM O BENEFICIÁRIO DO SERVIÇO SOCIAL

 

I – É dever do Assistente Social:

  1. Respeitar no beneficiário do Serviço Social a dignidade da pessoa humana, inspirando-se na caridade cristã.
  2. Aplicar todo zelo, diligência e recursos da ciência no trabalho a realizar e nunca abandonar um trabalho iniciado, sem justo motivo.

II – Não é permitido ao Assistente Social:

Aceitar remuneração de um beneficiário de uma organização por serviços prestados em nome desta.

 

 

SECÇÃO III

DEVERES PARA COM OS COLEGAS

 

I – É dever do Assistente Social:

  1. Tratar os colegas com perfeita cortesia, evitando fazer quaisquer alusões ou comentários desairosos sobre sua conduta na vida privada e profissional.
  2. Abster-se de discutir em público sobre assunto de interesse exclusivo e reservado da classe.

 

II – Não é permitido ao Assistente Social:

  1. Pronunciar-se sobre serviço confiado a outro Assistente Social, ainda que tenha em vista o bem do Serviço Social, sem conhecer os fundamentos da opinião daquele, e sem contar com seu expresso consentimento.
  2. Aceitar funções ou encargos anteriormente confiados a um Assistente Social sem antes procurar informar-se da razão da dispensa deste, de sorte a não aceitar a substituição desde que esta implique em desmerecimento para a classe.

 

SECÇÃO IV

DEVERES PARA COM A ORGANIZAÇÃO ONDE TRABALHA

 

I – É dever do Assistente Social:

  1. Pautar suas atividades por critério justo e honesto, empregando todo esforço em prol da dignidade e elevação das funções exercidas.
  2. Tratar os superiores com respeito, o que não implica restrição de sua independência quanto às suas atribuições em matéria específica de Serviço Social.

II – Não é permitido ao Assistente Social:

  1. Alterar ou deturpar intencionalmente depoimentos, documentos, relatórios e informes de natureza vária, para iludir os superiores ou para quaisquer outros fins.
  2. Valer-se da influência do seu cargo para usufruir, ilicitamente, vantagens de ordem moral ou material.
  3. Prevalecer-se de sua situação para melhoria de proventos próprios em detrimento de outrem.
  4. Prejudicar a execução de tarefas reclamadas pela natureza do seu cargo, ocupando-se de assuntos estranhos ao mesmo durante as horas de serviço.

 

 

 

 

SECÇÃO V

DISPOSIÇÕES GERAIS

  1. Qualquer alteração no presente Código somente poderá ser feita em assembléia geral da ABAS – Secção de São Paulo, especialmente convocada para esse fim.
  2. O presente Código entrará em vigor na data de sua publicação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL

(APROVADO A 8 DE MAIO DE 1965)

INTRODUÇÃO

Considerando que:

–         a formação da consciência profissional é fator essencial em qualquer profissão e que um Código de Ética constitui valioso instrumento de apoio e orientação para os Assistentes Sociais;

–         o Serviço Social adquire no mundo atual uma amplitude técnica e científica, impondo aos membros da profissão maiores encargos e responsabilidades;

–         só à luz de uma concepção de vida, baseada na natureza e destino do homem, poderá de fato o Serviço Social desempenhar a tarefa que lhe cabe na complexidade do mundo moderno;

–         um Código de Ética  se destina a profissionais de diferentes credos e princípios filosóficos, devendo ser aplicável a todos.

 

O Conselho Federal de Assistentes Sociais – CFAS, no uso de suas atribuições conferidas pelo item IV art.9º do Regulamento aprovado pelo Dec. 994 de 15 de maio de 1962, resolve aprovar o Código de Ética alicerçado nos direitos fundamentais do homem e nas exigências do bem-comum, princípios estes reconhecidos pela própria filosofia do Serviço Social.

 

Capítulo I

DA PROFISSÃO

 

Art. 1º – O Serviço Social constitui o objeto da profissão liberal de assistente social, de natureza técnico-científica e cujo o exercício é regulado em todo o território nacional pela Lei nº 3.252 de 27-08-1957, cujo Regulamento foi aprovado pelo Decreto nº 994, de 15/05/1962.

Art.2º – O assistente social, no desempenho da profissão, é obrigado a respeitar as exigências previstas na legislação que lhe é específica, inclusive as contidas neste Código.

Art. 3º – Ao Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS) e aos Conselhos Regionais de Assistentes Sociais (CRAS), órgãos criados para orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de assistente social, caberá a aplicação de medidas disciplinares, que venham garantir a fiel observância das exigências da profissão e do presente Código.

 

CAPÍTULO II

DOS DEVERES FUNDAMENTAIS

 

Art. 4º – O assistente social no desempenho das tarefas inerentes a sua profissão deve respeitar a dignidade da pessoa humana que, por sua natureza é um ser inteligente e livre.

Art. 5º – No exercício de sua profissão, o assistente social tem o dever de respeitar as posições filosóficas, políticas e religiosas daqueles a quem se destina sua atividade, prestando-lhes os serviços que lhe são devidos, tendo-se em vista o princípio de autodeterminação.

Art. 6º – O assistente social deve zelar pela família, grupo natural para o desenvolvimento da pessoa humana e base essencial da sociedade, defendendo a prioridade dos seus direitos e encorajando as medidas que favoreçam a sua estabilidade e integridade.

Art. 7º – Ao assistente social cumpre contribuir para o bem comum, esforçando-se para que o maior número de criaturas humanas dele se beneficiem, capacitando indivíduos, grupos e comunidades para sua melhor integração social.

Art. 8º – O assistente social deve colaborar com os poderes públicos na preservação do bem comum e dos direitos individuais, dentro dos princípios democráticos, lutando inclusive para o estabelecimento de uma ordem social justa.

Art. 9º – O assistente social estimulará a participação individual, grupal e comunitária no processo de desenvolvimento propugnando pela correção dos desníveis sociais.

Art. 10º – O assistente social no cumprimento de seus deveres cívicos, colaborará nos programas nacionais e internacionais, que se destinem a atender às reais necessidades de melhoria das condições de vida para a sua pátria e para a humanidade.

Art. 11º – Ao assistente social cumpre respeitar a justiça em todas as suas formas: comutativa, distributiva e social, lutando para o seu fiel cumprimento, dentro dos princípios de fraternidade no plano nacional e internacional.

Art. 12º – O assistente social conforme estabelecem os princípios éticos e a Lei penal, deve pautar toda a sua vida profissional incondicionalmente pela verdade.

Art. 13º – O assistente social no exercício de sua profissão deve aperfeiçoar sempre seus conhecimentos, incentivando o progresso, a atualização e difusão do Serviço Social.

Art. 14º – O assistente social tem o dever de respeitar as normas éticas das outras profissões, exigindo outrossim respeito àquelas relativas ao Serviço Social, quer atuando individualmente ou em equipes.

 

CAPÍTULO III

DO SEGREDO PROFISSIONAL

 

Art. 15º – O assistente social é obrigado pela Ética e pela Lei (art. 154 do Código Penal) a guardar segredo sobre as confidencias recebidas e fatos de que tenha conhecimento ou haja observado no exercício de sua atividade profissional, obrigando-se a exigir o mesmo segredo de todos os seus colaboradores.

§ 1º – Tendo-se em vista exclusivamente impedir um mal maior, será admissível a revelação do segredo profissional para evitar um dano grave, injusto e atual ao próprio cliente, ao assistente social, a terceiros e ao bem comum.

§ 2º – A revelação só será feita, após terem sido empregados todos os recursos e todos os esforços, para que o próprio cliente se disponha a revelá-lo.

§ 3º – A revelação será feita dentro do estrito necessário o mais discretamente possível, quer em relação ao assunto revelado, quer em relação ao grau e ao número de pessoas que dele devam tomar conhecimento.

Art. 16º – Além do segredo profissional, ao qual será moral e legalmente sujeito, o assistente social deve guardar discrição no que concerne ao exercício de sua profissão, sobretudo quanto à intimidade das vidas particulares, dos lares e das instituições onde trabalhe.

Art. 17º – O assistente social não se obriga a depor, como testemunha, sobre fatos de que tenha conhecimento profissional, mas intimado a prestar depoimento, deverá comparecer perante à autoridade competente para declarar-lhe que está ligado à obrigação do segredo profissional, de acordo com o art. 144 do Código Civil.

 

CAPÍTULO IV

DOS DEVERES PARA COM AS PESSOAS, GRUPOS E COMUNIDADES

ATIGINDOS PELO SERVIÇO SOCIAL

 

Art. 18º – O respeito pela pessoa humana, considerando nos arts. 4º e 5º deste Código, deve nortear a atuação do assistente social, mesmo que esta atitude reduza a eficácia imediata da ação.

Art. 19º – O assistente social em seu trabalho junto aos clientes, grupos e comunidades, deve ter o sentido de justiça, empregando o máximo de seus conhecimentos e o melhor de sua capacidade profissional, para a solução dos vários problemas sociais.

Art. 20º – A ação do assistente social será perseverante, a despeito das dificuldades encontradas, não abandonando nenhum trabalho sem justo motivo.

Art. 21º – O assistente social esforçar-se-á para que seja mantido um bom entrosamento entre as agências de Serviço Social e demais obras ou serviços da comunidade com o objetivo de assegurar mútua compreensão e eficiente colaboração.

§ único – As críticas construtivas que contribuam para o aperfeiçoamento do Serviço Social e entendimento crescente entre as obras, poderão ser feitas pertinentemente e com discrição.

Art. 22º – O assistente social deve interessar-se por todos os grandes problemas sociais da comunidade, dentro de uma perspectiva da realidade brasileira, colaborando com seus recursos pessoais e técnicos, para o desenvolvimento solidário e harmônico do país.

 

 

CAPÍTULO V

DOS DEVERES PARA COM OS SERVIÇOS EMPREGADORES

 

Art. 23º – O assistente social, profissional liberal, tecnicamente independente na execução de seu trabalho, se obriga a prestar contas e seguir diretrizes, emanadas do seu chefe hierárquico, observando as normas administrativas da entidade que o emprega.

Art. 24º – O assistente social tem por dever tratar superiores, colegas e subordinados hierárquicos com o respeito e cortesia devidos, usando discrição, lealdade e justiça no convívio que as obrigações do trabalho impõem.

Art. 25º – O assistente social deve zelar pelo bom nome da entidade que o emprega, prestando-lhe todo esforço para que a mesma alcance com êxito seus legítimos objetivos.

Art. 26º – O assistente social zelará para que seja mantida em seus serviços perfeita organização, fator valioso de eficiência e produtividade, sem contudo burocratizar suas funções.

Art. 27º – O assistente social deve ser pontual e assíduo no cumprimento de seus deveres para com a entidade, jamais relegando o seu trabalho para ocupar-se de assuntos estranhos à natureza do seu cargo.

Art. 28º – O assistente social exercerá suas funções com honestidade, obedecendo rigorosamente aos preceitos éticos e às legítimas exigências da entidade, não se prevalecendo de sua situação para obter vantagens.

 

CAPÍTULO VI

DOS DEVERES PARA COM OS COLEGAS

Art. 29º – O assistente social deve ter uma atitude leal, de solidariedade e consideração a seus colegas, abstendo-se de críticas e quaisquer atos suscetíveis de prejudicá-los, observando os deveres de ajuda mútua profissional.

§ único – O espírito de solidariedade não poderá entretanto, induzir o assistente social a ser conivente com o erro, ou deixar de combater através de processos adequados os atos que infrinjam os princípios éticos e os dispositivos legais que regulam o exercício da profissão.

Art. 30º – O assistente social não aceitará cargo ou função anteriormente ocupados por um colega, cuja desistência tenha ocorrido por razões de ética profissional previstas no presente Código, desde que mantidas as razões determinantes do afastamento.

 

CAPÍTULO VII

DAS ASSOCIAÇÕES DE CLASSE

 

Art. 31º – O assistente social deve colaborar com os órgãos representativos de sua classe, zelando pelas suas prerrogativas, no sentido de um aperfeiçoamento cada vez maior do Serviço Social e dignificação da profissão.

§ único – O assistente social não deve excusar-se sem justa causa, de prestar aos órgãos de classe qualquer colaboração solicitada no âmbito profissional.

Art. 32º – É dever de todo assistente social representar, junto aos órgãos de classe, sobre assunto de interesses profissional geral ou pessoal e do bem comum.

 

CAPÍTULO VIII

DO TRABALHO EM EQUIPE

 

Art. 33º – O assistente social deve exercer as suas funções na equipe com imparcialidade, independente de sua posição hierárquica.

Art. 34º – O trabalho em equipe não diminui a responsabilidade de cada profissional pelos seus atos e funções, devendo, na sua atuação, colaborar para o êxito do trabalho em comum.

 

CAPÍTULO IX

DA RESPONSABILIDADE E DA PRESERVAÇÃO

DA DIGNIDADE PROFISSIONAL

 

Art. 35º – O assistente social responderá civil e penalmente por atos profissionais danosos a que tenha dado causa no exercício de sua profissão, por ignorância culpável, omissão, imprudência, negligência, colaboração ou má fé.

Art. 36º – Além do respeito às disposições legais, a responsabilidade moral deve ser o alicerce em que se assentará o trabalho do assistente social, pois na consciência reta estará a maior garantia do respeito e exercício dos direitos individuais e sociais.

Art. 37º – Todo assistente social, mesmo fora do exercício de sua profissão, deverá abster-se de qualquer ação que possa desaboná-lo, procurando firmar sua conduta pessoal por elevado padrão ético, contribuindo para bom conceito da profissão.

Art. 38º – É da responsabilidade do assistente social zelar pelas prerrogativas de seu cargo ou funções, bem como respeitar as de outrem.

 

CAPÍTULO X

DA APLICAÇÃO E OBSERVÂNCIA DO CÓDIGO

 

Art. 39º – Todos os que exercem a profissão de assistente social têm o dever de acatar as decisões deste Código, e ao inscreverem-se no respectivo Conselho Regional de Assistentes Sociais (CRAS), deverão declarar conhecê-lo, comprometendo-se, por escrito, a respeitá-lo.

Art. 40º – Compete aos Conselhos Regionais de Assistentes Sociais (CRAS), em primeira instância, a apuração de faltas cometidas contra este Código, bem como, a aplicação de penalidades, cabendo recurso ao Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS), conforme estabelecem os arts. 9º e 12º do Regulamento aprovado pelo Decreto nº 994, de 15/05/1962.

Art. 41º – Os infratores ao presente Código estão sujeitos às seguintes medidas disciplinares:

a)      advertência confidencial;

b)      censura confidencial;

c)      censura pública;

d)     suspensão do exercício da profissão;

e)      cassação do exercício profissional.

Art. 42º – Os processos relativos às infrações do presente Código obedecerão ao disposto no Regimento Interno do Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS) (cap. IV – art. 13º a 17º) e a normas contidas em “Instruções” especialmente baixadas pelo Conselho para este fim.

Art. 43º – É dever de todo assistente social zelar pela observância das normas contidas neste Código, dar conhecimento no Conselho Regional de Assistentes Sociais (CRAS) da respectiva Região, com discrição e fundamentação, de atos que constituírem infrações aos princípios éticos nele contidos.

§único – Em caso de dúvida sobre o enquadramento de determinado fato nos princípios contidos neste Código, o assistente social poderá formular ao respectivo Conselho Regional de Assistentes Sociais (CRAS) consulta que, não assumindo caráter de denúncia, incorrerá nas mesmas exigências de discrição e fundamentação.

 

CAPÍTULO XI

DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

 

Art. 44º – Caberá ao Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS) qualquer alteração do presente Código, consultando os Conselhos Regionais de Assistentes Sociais (CRAS), competindo, ainda àquele órgão, como Tribunal Superior de Ética Profissional, firmar jurisprudência na aplicação do mesmo e ainda nos casos omissos.

 

Art. 45º – Caberá ao Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS) e aos Conselhos Regionais de Assistentes Sociais (CRAS) promoverem a mais ampla divulgação deste Código, de modo que seja do pleno conhecimento de entidades nas quais se desenvolvam programas de Serviço Social.

Art. 46º – O presente Código entrará em vigor na data de sua publicação.

 

Rio de Janeiro, 8 de maio de 1965

CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL

(APROVADO EM 30 DE JANEIRO DE 1975)

INTRODUÇÃO AO CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO

ASSISTENTE SOCIAL

 

A regulamentação do exercício de determinada profissão pressupõe:

  1. tratar-se de profissão organizada;
  2. interessar à defesa da sociedade.

Constitui ponto pacífico exigir-se que uma profissão satisfaça os seguintes requisitos essenciais:

  1. conjunto de conhecimentos organizados, constantemente ampliado e aprimorado, e de técnicas especiais baseadas no mesmo;
  2. facilidade de formação sistemática nesse conjunto e em suas aplicações práticas;
  3. identificação da profissão e qualificação para ingresso;
  4. agremiação constituída de número apreciável de membros credenciados para o exercício profissional, e capaz de influir na manutenção de padrões convenientes;
  5. código de ética profissional.

 

Regulamentar uma profissão antes de corresponder aos reclamos da classe, atende ao mais elevado e marcante interesse social.

Exigências do bem comum legitimam, com efeito, a ação disciplinadora do Estado, conferindo-lhe o direito de dispor sobre as atividades profissionais – formas de vinculação do homem à ordem social, expressões concretas de participação efetiva na vida da sociedade.

As profissões envolvem ingredientes indispensáveis à composição de o bem total humano, encerram valores sociais inestimáveis, como honestidade e verdade. A profissão é mais do que um trabalho orientado para a subsistência dos que a exercem: é um dos fundamentos da estruturação da sociedade e de sua organização em uma diversidade de grêmios profissionais. Em seu aspecto associativista, a organização profissional representa valioso instrumento de defesa social.

Em síntese, na dialética homem-sociedade deve assegurar-se o mais ser do homem, a partir de:

  • subsistência a um “status” social;
  • direito de associação;
  • direito de intervenções pertinentes;

e, por outro lado, salvaguardar-se o bem da sociedade:

  • de busca de valores que respondem às exigências do dever;
  • de legislação fiel ao interesse geral;
  • de Instituições adequadas ao meio social;
  • de oferecimento de condições de vida humana digna, atendendo a aspectos curativos e preventivos;
  • de composição do bem total humano.

Esta, a essência de um Código de Ética Profissional, garantia de respeito aos direitos humanos e de fidelidade ao interesse social.

Em nosso País, os requisitos inicialmente referidos e essência ora aludida são evidenciados no tocante à profissão do assistente social. O Código, a estruturação legal e a probidade técnico-científica, constituem a trilogia sobre a qual se assenta a realização do Assistente Social, como profissional.

O valor central que serve de fundamento ao Serviço Social é a pessoa humana. Reveste-se de essencial importância uma concepção personalista que permita ver a pessoa humana como o centro, objeto e fim da vida social.

Dois valores são essenciais à plena realização da pessoa humana:

  • bem comum considerado como conjunto das condições materiais e morais concretas nas quais cada cidadão poderá viver humana e livremente;
  • justiça social, que compreende tanto o que os membros devem ao bem comum, como o que a comunidade deve aos particulares em razão desse bem.

 

É fora de dúvida que a comunidade profissional é daquela formas sociais que são conaturais, coessenciais ao homem, e condicionantes de um certo desenvolvimento histórico da civilização.

Os postulados versados nesta introdução justificam por que o Serviço Social, no dinamismo de sua atuação, exige contínua referência aos princípios de:

I-    Autodeterminação – que possibilita a cada pessoa, física ou jurídica, o agir responsável, ou seja, o livre exercício da capacidade de escolha e decisão;

II-  Participação – que é presença, cooperação, solidariedade ativa e corresponsabilidade de cada um, nos mais diversificados grupos que a convivência humana possa exigir;

III-   Subsidiariedade que é elemento regulador das relações entre os indivíduos, instituições ou comunidades, nos diversos planos de integração social.

Com base nestes princípios e naqueles valores axiais, explicitam-se direitos e deveres do Assistente Social, no Código de Ética Profissional.

 

CÓDIGO DE ÉTICA DO ASSISTENTE SOCIAL

TÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1º – O Assistente Social, no exercício da profissão, está obrigado à observância do presente Código, bem como a fazê-lo cumprir.

Art. 2º – O Conselho Federal de Assistentes Sociais – CFAS e os Conselhos Regionais de Assistentes Sociais – CRAS promoverão a mais ampla divulgação deste Código.

Art. 3º – Compete ao Conselho Federal de Assistentes Sociais – CFAS:

I-     Introduzir alteração neste Código, consultados os Conselhos Regionais,

II- Como Tribunal de Ética Profissional, firmar jurisprudência na aplicação deste Código e nos casos omissos.

 

 

TÍTULO II

DIREITOS E DEVERES DO ASSISTENTE SOCIAL

 

CAPÍTULO I

DOS DIREITOS

Art. 4º – São direitos do Assistente Social:

I-    Com relação ao exercício profissional:

a-    desempenho das atividades inerentes à profissão;

b-   desagravo público por ofensa que atinja sua honra profissional;

c-     proteção à confidencialidade do cliente;

d-   sigilo profissional;

e-    inviolabilidade do domicílio, do consultório, dos locais de livre acesso ao cliente;

f-    livre acesso ao cliente;

g-   contratação de honorários segundo normas regulamentares;

h-   representação ao Conselho Regional de Assistentes Sociais – CRAS com jurisdição sobre a sede de suas atividades.

 

II-  Com relação ao “status” profissional:

a-    reconhecimento do Serviço Social como profissão liberal, incluída entre as de nível universitário;

b-   garantia das prerrogativas da profissão, e defesa do que lhe é privativo;

c-    acesso às oportunidades de aprimoramento da formação profissional.

 

CAPÍTULO II

DOS DEVERES

Art. 5º – São deveres do Assistente Social:

I-    No exercício profissional:

a-    obedecer aos preceitos da Lei e da Ética;

b-   desempenhar sua atividade com zelo, diligência e consciência da própria responsabilidade;

c-    reconhecer que o trabalho coletivo ou em equipe não diminui a responsabilidade de cada profissional pelos seus atos e funções;

d-   abster-se de atos ou manifestações incompatíveis com a dignidade da profissão;

e-    defender a profissão através de suas entidades representativas;

f-    incentivar o progresso, a atualização e a difusão do Serviço Social e zelar pelo aperfeiçoamento de suas instituições;

g-   respeitar as normas éticas das outras profissões, quer atue individualmente ou em equipe;

h-   aperfeiçoar seus conhecimentos.

 

II-  Nas relações com o cliente:

a-    utilizar o máximo de seus esforços, zelo e capacidade profissional em favor do cliente;

b-   esclarecer o cliente quanto ao diagnóstico, prognóstico, plano e objetivos do tratamento, prestando à família ou aos responsáveis os esclarecimentos que se fizerem necessários.

 

III-   Nas relações com os colegas:

a-    tratar os colegas com lealdade, solidariedade e apreço, auxiliando-se no cumprimento dos respectivos deveres e contribuindo para a harmonia e o prestígio da profissão;

b-   distinguir a solidariedade da conivência com o erro, combatê-lo em face dos postulados éticos e da legislação profissional vigente;

c-    respeitar os cargos e funções dos colegas;

d-   recusar cargo ou função anteriormente ocupado por colega, cuja desistência tenha sido devida a razão, não sanada, de ética profissional prevista neste Código;

e-    pautar suas relações com colegas hierarquicamente superiores ou subordinados, pelo presente Código, exigindo a fiel observância de seus preceitos e respeitando seus legítimos direitos;

f-    prestar aos colegas, quando solicitado, orientação técnica.

 

IV-   Nas relações com entidades de classe:

a-    prestar colaboração de ordem moral, intelectual e material às entidades de classe;

b-   aceitar e desempenhar função, com interesse e responsabilidade, nas entidades de classe, salvo circunstâncias especiais que justifiquem sua recusa;

c-    representar perante os órgãos competentes sobre irregularidades ocorridas na administração das entidades de classe;

d-   denunciar às entidades de classe o exercício ilegal da profissão, sob qualquer forma;

e-    representar às entidades de classe, encaminhando-lhes comunicação fundamentada sobre a infração a princípios éticos, sem desrespeito à honra e dignidade de colegas.

 

V-  Nas relações com instituições:

a-    cumprir os compromissos assumidos e contratos firmados;

b-   respeitar a política administrativa da instituição empregadora;

c-    contribuir para que as instituições destinadas ao trabalho social mantenham um bom entrosamento entre si.

 

VI-   Nas relações com a comunidade:

a-    zelar pela família, defendendo a prioridade dos seus direitos e encorajando as medidas que favoreçam sua estabilidade e integridade;

b-   participar de programas nacionais e internacionais destinados à elevação das condições de vida e correção dos desníveis sociais;

c-    participar de programas se socorro à população, em situação de calamidade pública;

d-   opinar em matéria de sua especialidade quando se tratar de assunto de interesse da coletividade.

 

VII-           Nas relações com a justiça:

a-    aceitar designação por autoridade judicial para atuar como perito em assunto de sua competência;

b-   informar o cliente acerca do sentido e finalidade de sua atuação no desempenho de trabalho de caráter pericial;

c-    agir, quando perito, com isenção de ânimo e imparcialidade, limitando seu pronunciamento a laudos pertinentes à área de suas atribuições e competências.

 

VIII-  Em relação à publicação de trabalhos científicos:

a-    indicar de modo claro, em todo trabalho científico, as fontes de informações e bibliografia utilizada;

b-   dar igual ênfase aos autores e o necessário destaque ao colaborador principal ou ao idealizador, na publicação de pesquisas ou estudos em colaboração.

Art. 6º – É vedado ao Assistente Social:

a-    usar titulação ou outorgá-la a outrem indevidamente;

b-   exercer sua autoridade de forma a limitar o direito do cliente de decidir sobre sua pessoa e seu bem-estar;

c-    divulgar nome, endereço ou outro elemento que identifique o cliente;

d-   reter, sem justa causa, valores que lhe sejam entregues de propriedade do cliente;

e-    recusar ou interromper atendimento a cliente, sem prévia justificação;

f-    criticar de público, na presença de cliente ou de terceiro, erro técnico-científico ou ato de colega atentatório à ética;

g-   prejudicar, direta ou indiretamente, a reputação, situação ou atividade do colega;

h-   valer-se de posição ocupada na direção de entidades de classe para obter vantagens pessoais, diretamente ou através de terceiros;

i-     participar de programa com entidade que não respeite os princípios éticos estabelecidos;

j-     formular, perante cliente, crítica aos serviços da instituição, à atuação de colegas e demais membros da equipe interprofissional;

l-     oferecer prestação de serviço idêntico por remuneração inferior à que se pague a colega da mesma instituição, e da qual tenha prévio conhecimento;

m-  aceitar, de terceiro, comissão, desconto ou outra vantagem, direta ou indiretamente relacionada com atividade que esteja prestando à instituição;

n-   recusar-se, quando denunciante, a prestar declaração que esclareça o fato e as provas de sua denúncia;

  • o-   recusar-se a depor ou testemunhar em processo ético-profissional, sem justa causa;

p-   divulgar informações ou estudos da instituição ou usufruir de planos e projetos de outros técnicos, salvo quando devidamente autorizado;

q-   valer-se do Serviço Social para objetivos estranhos à profissão ou consentir que outros o façam;

r-     funcionar em perícia quando o caso escape a sua competência ou quando se tratar de questão que envolva cliente, amigo, inimigo ou pessoa da própria família;

s-    apresentar como original, idéia, descoberta ou ilustração que não o seja;

t-     utilizar, sem referência ao autor ou sua autorização expressa, dado, informação ou opinião inédita ou colhida em fonte particular;

u-   prevalecer-se de posição hierárquica para publicar, em seu nome exclusivo trabalho de subordinados e assistentes, embora executado sob sua orientação.

CAPÍTULO III

DO SEGREDO PROFISSIONAL

Art. 7º – O Assistente Social deve observar o segredo profissional:

I-    Sobre todas as confidências recebidas, fatos e observações colhidas no exercício da profissão;

II-  Abstendo-se de transcrever informações de natureza confidencial;

III-   Mantendo discrição de atitudes nos relatórios de serviço, onde quer que trabalhe.

 

  • §1º – O sigilo estender-se-á à equipe interdisciplinar e aos auxiliares, devendo o Assistente Social empenhar-se em sua guarda.
  • §2º – É admissível revelar segredo profissional para evitar dano grave, injusto e atual ao próprio cliente, ao Assistente Social, a terceiro ou ao bem comum.
  • §3º – A revelação do sigilo profissional será admitida após se haverem esgotado todos os recursos e esforços para que o próprio cliente se disponha a revelá-lo.
  • §4º – A revelação será feita dentro do estritamente necessário, o mais discretamente possível, quer em relação ao assunto revelado, quer ao grau e número de pessoas que dele devem tomar conhecimento.
  • §5º – Não constitui quebra de segredo profissional a revelação de casos de sevícias, castigos corporais, atentados ao pudor, supressão intencional de alimento e uso de tóxicos, com vista à proteção do menor.

 

Art. 8º – É vedado ao Assistente Social:

I-    Investigar documento de pessoa física ou jurídica sem estar devidamente autorizado;

II- Depor como testemunha sobre fato de que tenha conhecimento no exercício profissional;

III-   Revelar, quando ligado a contrato que o obrigue a prestar informações, o que não for de natureza pública e que acarrete a queda do segredo profissional.

  • §único – Intimado a prestar depoimento, deverá o Assistente Social comparecer perante a autoridade competente para declarar-lhe que está obrigado a guardar segredo profissional, nos termos do Código Civil e deste Código.

 

 

 

TÍTULO III

DAS MEDIDAS DISCIPLINARES

Art. 9º – As infrações aos dispositivos do presente Código estão sujeitas às seguintes medidas disciplinares:

a-      advertência em aviso reservado;

b-       censura em aviso reservado;

c-      censura em publicação oficial;

d-     suspensão do exercício profissional até 30 (trinta) dias;

e-      cassação do exercício profissional “ad-referendum” do Conselho Federal.

§único – Ao acusado são garantidas amplas condições para a sua defesa, mesmo quando revél.

 

TÍTULO IV

DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS

Art. 10º – O Conselho Federal de Assistentes Sociais, no prazo de 30 (trinta) dias a partir da publicação deste Código, expedirá o Código Processual de Ética para os Conselhos Regionais de Assistentes Sociais.

Art. 11º – O presente Código entrará em vigor dentro de 45 (quarenta e cinco) dias de sua publicação.

 

 

Rio de Janeiro, 30 de Janeiro de 1975.

 

 

 

 

 

CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL

(APROVADO EM 09 DE MAIO DE 1986)

 

RESOLUÇÃO CFAS Nº 195/86

09.05.86

 

Aprova o Código de Ética Profissional

dos Assistentes Sociais e dá outras providências

A Presidente do Conselho Federal de Assistentes Sociais – CFAS, no uso de suas atribuições legais e regimentais e de acordo com a aprovação do Conselho Pleno em reunião ordinária realizada em Brasília, em 09 de maio de 1986.

Considerando a necessidade de dotar os Assistentes Sociais de um instrumento mais eficaz no resguardo da atividade profissional;

Considerando que o antigo Código de Ética não mais refletia os interesses da categoria e as exigências da sociedade;

Considerando as profundas modificações porque passa a sociedade brasileira no atual momento histórico;

Considerando a necessidade de superar a perspectiva que coloca os valores éticos como universais e acima dos interesses de classe em que se divide a sociedade;

Considerando as contribuições recebidas de todos os Conselhos Regionais com a participação das demais entidades e bases da categoria;

Considerando a longa discussão havida sobre o assunto, que culminou no XV Encontro Nacional CFAS/CRAS foi reafirmado o compromisso por uma prática profissional vinculada às lutas e interesses da classe trabalhadora,

RESOLVE:

Art. 1º – Aprovar o Código de Ética Profissional do Assistente Social em anexo.

Art. 2º – Os Conselhos Regionais de Assistentes Sociais – CRAS deverão fazer constar das Carteiras de Identidade Profissional emitidas a partir de um ano da data de vigência do código de ética ora aprovado, o inteiro teor das disposições referentes a direitos e obrigações do Assistente Social.

Art. 3º – Fica determinado que os Conselhos Regionais de Assistentes Sociais – CRAS, promoverão a imediata divulgação do Código de Ética entre os profissionais inscritos nos seus quadros.

Art. 4º – A presente Resolução entrará em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial da União, revogadas as disposições em contrário, em especial a Resolução CFAS nº 65/75.

Rio de Janeiro, 09 de Maio de 1986.

(Ass.) Júlia Damiana Nascimento Bitencourt

AS. Nº 1001/CRAS 5ª Região

CFAS Presidente

 

 

CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL

INTRODUÇÃO

As idéias, a moral e as práticas de uma sociedade se modificam no decorrer do processo histórico. De acordo com a forma em que esta se organiza para produzir, cria seu governo, suas instituições e sua moral.

A sociedade brasileira no atual momento histórico impõe modificações profundas em todos os processos da vida material e espiritual. Nas lutas encaminhadas por diversas organizações nesse processo de transformação, um novo projeto de sociedade se esboça, se constrói e se difunde uma nova ideologia.

Inserindo neste movimento, a categoria de Assistentes Sociais passa a exigir também uma nova ética que reflita uma vontade coletiva, superando a perspectiva a-histórica e a-crítica, onde os valores são tidos como universais e acima dos interesses de classe. A nova ética é resultado da inserção da categoria nas lutas da classe trabalhadora e, consequentemente, de uma nova visão da sociedade brasileira. Neste sentido, a categoria através de suas organizações, faz uma opção clara por uma prática profissional vinculada aos interesses desta classe. As conquistas no espaço institucional e a garantia da autonomia da prática profissional requerida pelas contradições desta sociedade só poderão ser obtidas através da organização da categoria articulada às demais organizações da classe trabalhadora.

O presente Código de Ética Profissional do Serviço Social é resultado de um amplo processo de trabalho conjunto, desencadeado a partir de 1983. Em diferentes momentos deste processo, os Assistentes Sociais foram solicitados através do CFAS/CRAS e demais entidades de organização da categoria a dar contribuições e a participar de comissões, debates, assembléias, seminários e encontros regionais e nacionais. Seu conteúdo expressa princípios e diretrizes norteadores da prática profissional determinados socialmente, e traz a marca da conjuntura atual da sociedade brasileira. Constitui-se em parâmetro para o profissional se posicionar diante da realidade, disciplinado o exercício profissional no sentido de dar garantia à nova proposta da prática dos Assistentes Sociais.

Os princípios e diretrizes norteadores da prática profissional estão expressos neste Código sob a forma de direitos, deveres e proibições, agrupados em títulos e capítulos. Com caráter introdutório, serão destacados aqueles que dão indicações de uma nova ética, tendo como referência o encaminhamento da prática profissional articulada às lutas da classe trabalhadora:

A devolução das informações colhidas nos estudos e pesquisas

–     aos sujeitos sociais envolvidos.

O acesso às informações no espaço institucional e o incentivo ao

–     processo de democratização das mesmas.

A contribuição na alteração da correlação de forças no espaço

–     institucional e o fortalecimento de novas demandas de interesse dos usuários

A denúncia das falhas nos regulamentos, normas e programas

–     da instituição e o não acatamento de determinação patronal que fira os princípios e diretrizes deste Código.

–      O respeito à tomada de decisão dos usuários, ao saber popular e à autonomia dos movimentos e organizações da classe trabalhadora.

–       O privilégio ao desenvolvimento de práticas coletivas e o incentivo à participação dos usuários no processo de decisão e gestão institucional.

–      A discussão com os usuários sobre seus direitos e os mecanismos a serem adotados na luta por sua efetivação e por novas conquistas; e a reflexão sobre a necessidade de seu engajamento em movimentos populares e/ou órgão representativos da classe trabalhadora.

–      O apoio às iniciativas e aos movimentos de defesa dos interesses da categoria e à divulgação no espaço institucional das informações de suas organizações.

–      A denúncia de agressão e abuso de autoridade às organizações da categoria e aos órgãos competentes.

–      O apoio e/ou a participação nos movimentos sociais e organizações da classe trabalhadora.

 

TÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1º – Compete ao Conselho Federal de Assistentes Sociais:

a-    zelar pela observância dos princípios e diretrizes deste Código, fiscalizando as ações dos Conselhos Regionais e a prática exercida pelos profissionais, instituições e organizações na área do Serviço Social;

b-   introduzir alteração neste Código, através de uma ampla participação da categoria, num processo desenvolvido em ação conjunta com os Conselhos Regionais;

c-    como Tribunal Superior de Ética Profissional, firmar jurisprudência na observância deste Código e nos casos omissos.

§único – Compete aos Conselhos Regionais, nas áreas de suas respectivas jurisdições, zelar pela observância dos princípios e diretrizes deste Código, e funcionar como órgão julgador de primeira instância.

 

 

 

 

 

 

TÍTULO II

DOS DIREITOS E DAS RESPONSABILIDADES GERAIS

DO ASSISTENTE SOCIAL

 

CAPÍTULO 1

DOS DIREITOS

Art. 2º – Constituem-se direitos do Assistente Social:

a-    Garantia e defesa de suas atribuições e prerrogativas estabelecidas na Lei de Regulamentação da Profissão;

b-   Livre exercício das atividades inerentes à profissão;

c-    Livre acesso aos usuários de seus serviços;

d-   Participação na elaboração das Políticas Sociais e na formulação de programas sociais;

e-    Inviolabilidade do domicílio, do local de trabalho e respectivos arquivos e documentação;

f-    Desagravo público por ofensa que atinja a sua honra profissional;

g-   Remuneração por seu trabalho profissional definida pelas organizações sindicais, estaduais e nacional, articuladas a luta geral da classe trabalhadora;

h-   Acesso às oportunidades de aprimoramento profissional;

i-Participação em manifestações de defesa dos direitos da categoria e dos interesses da classe trabalhadora;

j-Participação nas entidades representativas e de organizações da categoria;

l-Pronunciamento em matéria de sua especialidade;

m-  Acesso às informações no espaço institucional que viabilizem a prática profissional.

 

CAPÍTULO II

DOS DEVERES

Art. 3º – Constituem deveres do Assistente Social:

a-    Desempenhar suas atividades profissionais, com observância da legislação em vigor;

b-   Devolver as informações colhidas nos estudos e pesquisas aos sujeitos sociais envolvidos, no sentido de que estes possam usá-los para o fortalecimento dos interesses da classe trabalhadora;

c-    Democratizar as informações disponíveis no espaço institucional, como um dos mecanismos indispensáveis à participação social dos usuários;

d-   Aprimorar de forma contínua os seus conhecimentos, colocando-os a serviço do fortalecimento dos interesses da classe trabalhadora;

e-    Denunciar, no exercício da profissão, às organizações da categoria, às autoridades e aos órgãos competentes, qualquer forma de agressão à integridade física, social e mental, bem como abuso de autoridade individual e institucional;

f-    Utilizar seu número de registro no Conselho Regional no exercício da profissão.

 

CAPÍTULO III

DO SIGILO PROFISSIONAL

Art. 4º – O Assistente Social deve observar o sigilo profissional, sobre todas as informações confiadas e/ou colhidas no exercício profissional.

§1º – A quebra do sigilo só é admissível, quando se tratar de situação cuja gravidade possa trazer prejuízos aos interesses da classe trabalhadora.

§ 2º – A revelação será feita dentro do estritamente necessário, quer em relação ao assunto revelado, quer ao grau e número de pessoas que dele devam tomar conhecimento.

Art. 5º – É vedado ao Assistente Social:

a-    Depor como testemunha sobre situação de que tenha conhecimento no exercício profissional;

b-   Revelar sigilo profissional

  • §único- Intimado a prestar depoimento, deverá o Assistente Social comparecer perante a autoridade competente para declarar que está obrigado a guardar sigilo profissional, nos termos do Código Civil e deste Código.

 

 

 

 

TÍTULO III

DAS RELAÇÕES PROFISSIONAIS

 

CAPÍTULO I

DAS RELAÇÕES COM OS USUÁRIOS

Art. 6º – São deveres do Assistente Social nas suas relações com os usuários:

a-    Discutir com os usuários seus direitos e os mecanismos a serem adotados na sua efetivação e em novas conquistas;

b-   Refletir com os usuários os limites de sua atuação profissional no sentido de dimensionar as possibilidades reais de sua prática no encaminhamento das lutas conjuntas, bem como identificar os mecanismos de superação dos mesmos;

c-    Contribuir para que os usuários utilizem os recursos institucionais como um direito conquistado pela classe trabalhadora;

d-   Criar, na discussão conjunta, mecanismos, que venham desburocratizar a relação com os usuários no sentido de agilizar e melhorar os serviços prestados;

e-    Privilegiar práticas coletivas com os usuários no sentido de possibilitar a sua participação no processo de decisão e gestão institucional;

f-    Discutir com os usuários sobre a utilização dos recursos sociais, para evitar deslocamentos desnecessários na busca de atendimento às suas necessidades;

g-   Refletir com os usuários sobre a importância de seu engajamento em movimentos populares e/ou órgãos representativos da classe trabalhadora;

h-   Respeitar, no relacionamento com o usuário, o seu direito à tomada de decisões, o saber popular e a autonomia dos movimentos e organizações da classe trabalhadora.

Art. 7º – É vedado ao Assistente Social:

a-    Exercer sua autoridade de forma a limitar ou cercear o direito de participação e decisão dos usuários;

b-   Bloquear o acesso dos usuários aos serviços sociais oferecidos pelas instituições através de atitudes que venham coagir e/ou desrespeitar aqueles que buscam o atendimento de seus direitos sociais.

 

 

CAPÍTULO II

DAS RELAÇÃOES COM AS INSTITUIÇÕES

Art. 8º – São direitos do Assistente Social:

a-    Administrar, executar e repassar os serviços sociais, influenciando para o fortalecimento de novas demandas de interesse dos usuários;

b-   Contribuir para alteração da correlação de forças do interior da instituição para reformulação de sua natureza, estrutura e programa tendo em vista os interesses da classe trabalhadora.

Art. 9º – O Assistente Social no exercício de sua profissão em entidade pública ou privada terá a garantia de condições adequadas de trabalho, o respeito a sua autonomia profissional e dos princípios éticos estabelecidos.

Art. 10º – Constituem deveres do Assistente Social na relação com a instituição:

a-     Atender às demandas institucionais em termos de programar, administrar, executar e repassar os serviços sociais aos usuários;

b-   Denunciar falhas nos regulamentos, normas e programas da instituição em que trabalha, quando os mesmos estiverem ferindo os princípios e diretrizes contidos neste Código, as necessidades, os direitos e os interesses da classe trabalhadora;

c-    Dirigir-se, obrigatoriamente, ao Conselho Regional de Assistentes Sociais, às demais entidades da categoria e a outras que a matéria disser respeito, quando não encontrar ressonância na instituição em termos de modificação das falhas apontadas.

Art. 11º – É vedado ao Assistente Social:

a-    Aceitar emprego ou tarefa de colega exonerado, demitido ou transferido em razão do cumprimento das prerrogativas legais da profissão e/ou dos princípios e diretrizes contidos neste Código, enquanto perdurar o motivo da exoneração, demissão ou transferência;

b-   Acatar determinação patronal que fira os princípios e diretrizes contidos neste Código, ao prestar serviços com qualquer tipo de vínculo;

c-    Emprestar seu nome de Assistente Social a firmas, organizações ou empresas que realizem Serviço Social, sem seu efetivo exercício profissional;

d-   Usar ou permitir o tráfico de influência para obtenção de emprego, desrespeitando concurso ou processos seletivos;

e-    Utilizar os recursos institucionais para fins eleitorais.

 

 

CAPÍTULO III

DAS RELAÇÕES ENTRE PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL

Art. 12º – Cabe aos Assistentes Sociais manterem entre si a solidariedade que consolida a categoria e fortalece a sua organização.

Art. 13º – O Assistente Social, quando solicitado deverá colaborar com seus colegas, salvo impossibilidade real, decorrente de motivos relevantes.

Art. 14º – A crítica pública a colega deverá ser sempre objetiva, construtiva, comprovável de inteira responsabilidade de seu autor e fundamentada nos preceitos deste Código.

Art. 15º – É vedado ao Assistente Social:

a-    Ser conveniente com falhas éticas e com erros praticados por outro profissional;

b-   Prejudicar deliberadamente a reputação de outro profissional divulgando informações falsas.

Art. 16º – Ao Assistente Social deve ser assegurada a mais ampla liberdade na realização de seus estudos e pesquisas, resguardados os direitos de participação de pessoas ou grupos envolvidos em seus trabalhos.

Art. 17º – É vedado ao Assistente Social:

a-    Prevalecer de posição hierárquica para publicar, em seu nome, trabalhos de subordinados, mesmo que executado sob sua orientação;

b-   Deturpar dados quantitativos e/ou qualitativos;

c-    Apropriar-se de produção cientifica de outros profissionais.

Art. 18º – O Assistente Social, ao ocupar uma chefia, deve usar a sua autoridade funcional para a liberação, total ou parcial de carga horária de subordinado que desejar se dedicar a estudos e pesquisas relacionadas à prática profissional, dando igual oportunidade a todos.

Art. 19º – É vedado ao Assistente Social:

a-      Permitir ou exercer a supervisão de aluno de Serviço Social em Instituições Públicas ou Privadas que não tenham em seus quadros Assistente Social que dê acompanhamento direto ao campo de estágio;

b-      Ser conivente com o exercício de função de direção de órgãos formadores de Assistentes Sociais por outros profissionais.

Art. 20º – O Assistente Social deve respeitar as normas éticas das outras profissões.

 

CAPÍTULO IV

DAS RELAÇÕES COM AS ENTIDADES DA CATEGORIA E

DEMAIS

ORGANIZAÇÕES DA CLASSE TRABALHADORA

Art. 21º – O Assistente Social deve defender a profissão através de suas entidades representativas, participando das organizações que tenham por finalidade a defesa dos direitos profissionais, no que se refere à melhoria das condições de trabalho, à fiscalização do exercício profissional e ao aprimoramento científico.

Art. 22º – O Assistente Social deverá apoiar as iniciativas e os movimentos de defesa dos interesses da categoria e divulgar no espaço institucional as informações das suas organizações, no sentido de ampliar e fortalecer o seu movimento.

Art. 23 º – É vedado ao Assistente Social valer-se de posição ocupada na direção de Entidade da categoria para obter vantagens pessoais, diretamente ou através de terceiros.

Art. 24º – O Assistente Social ao ocupar uma chefia deve usar a sua autoridade funcional para liberação total ou parcial da carga horária de subordinado que tenha representação ou delegação de entidade de organização da categoria.

Art. 25º – O Assistente Social como profissional e na sua prática social mais geral deve apoiar e/ou participar dos movimentos sociais e organizações da classe trabalhadora que estejam relacionados ao campo de sua atividade profissional, procurando colocar os recursos institucionais a seu serviço.

CAPÍTULO V

DAS RELAÇÕES COM A JUSTIÇA

Art. 26º – O Assistente Social no exercício legal da profissão, quando convocado, deve esclarecer à Justiça em matéria de sua competência, de acordo com a legislação básica da profissão.

§1º – O Assistente Social deve informar os usuários acerca do sentido e finalidade de sua atuação no desempenho de tarefa de caráter pericial.

§2º – O Assistente Social ao atuar como perito deve limitar seu pronunciamento a laudos pertinentes a área de suas atribuições, seguindo as diretrizes deste Código.

§3º – O Assistente Social deve considerar-se impedido de atuar em processos de perícias quando a situação não se caracterizar como área de sua competência ou quando se tratar de questão que envolva amigo, inimigo ou membro da própria família.

 

 

TÍTULO IV

DA OBSERVÂNCIA, APLICAÇÃO E CUMPRIMENTO

DO CÓDIGO DE ÉTICA

Art. 27º – É dever de todo Assistente Social cumprir e fazer cumprir este Código.

Art. 28º – O Assistente Social deve denunciar ao Conselho Regional de Assistentes Sociais, através de comunicação fundamentada, qualquer forma de exercício irregular da profissão, infrações a princípios e diretrizes deste Código e da legislação profissional.

Art. 29º – Cabe aos Assistentes Sociais docentes e supervisores informar, esclarecer e orientar os estudantes, quanto aos princípios e normas contidas neste Código.

Art. 30º – As infrações a este Código de Ética Profissional acarretarão penalidades, desde a advertência à cassação do exercício profissional, na forma dos dispositivos legais e/ou regimentais.

Art. 31º – Constituem infrações disciplinares:

a-    Transgredir preceito do Código de Ética;

b-   Exercer a profissão quando impedido, ou facilitar o seu exercício por quem não esteja devidamente habilitado;

c-    Participar de sociedade que tendo como objeto o Serviço Social, não esteja regularmente inscrito no Conselho;

d-   Não pagar regulamente as anuidades.

Art. 32º – São medidas disciplinares aplicáveis pelos Conselhos Regionais:

a-    multa;

b-   advertência em aviso reservado;

c-    advertência pública;

d-   suspensão do exercício profissional;

e-    eliminação dos quadros.

Art. 33º – A pena de multa variará de 1 (um) até 10 (dez) Obrigações do Tesouro Nacional (OTN).

Art. 34º – A pena de advertência, reservada ou pública, será aplicada nos casos previstos nas alíneas a, b e c do artigo 31º.

Art. 35º – A pena de suspensão será aplicada:

a-    nos casos em que couber advertência pública e o autor da infração disciplinar for reincidente;

b-   aos que violarem sigilo profissional;

c-    aos que tenham conduta incompatível com o exercício profissional;

d-   aos que demonstrem inépcia profissional;

e-    na hipótese prevista na alínea d do artigo 31º.

Art. 36º – A pena de eliminação dos quadros será aplicada:

a-    nos casos em que couber a pena de suspensão e o infrator for reincidente;

b-   aos que fizerem falsa prova dos requisitos exigidos para registro  no Conselho;

c-    aos que, suspensos por falta de pagamento das anuidades, deixarem transcorrer 3 (três) anos de suspensão.

Art. 37º – Serão considerados na aplicação das penas os antecedentes profissionais do infrator e as circunstâncias em que ocorreu a infração.

Art. 38º – Às pessoas jurídicas que infringirem, no que couber, os princípios e diretrizes contidos neste Código serão aplicadas as penas de multa ou cancelamento do registro. Às multas serão, nesta hipótese, fixadas entre o mínimo de 20 (vinte) e o máximo de 100 (cem) Obrigações do Tesouro Nacional (OTN).

Art. 39º – As dúvidas na observância deste Código e os casos omissos, serão resolvidos pelos Conselhos Regionais de Assistentes Sociais “ad referendum” do Conselho Federal de Assistentes Sociais, a quem cabe firmar jurisprudência conforme alínea “c” do artigo 1º.

Art. 40º – O presente Código entrará em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial da União, revogando-se as disposições em contrário.

Rio de Janeiro 09 de maio de 1986.

Publicado no Diário Oficial da União nº 101, do 02/06/86, Seção I, páginas 7951 e 7952.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL

(Aprovado em 13 de março de 1993, com as alterações

introduzidas pelas Resoluções CFESS Nº 290/04 e 293/94)

RESOLUÇÃO CFESS Nº 273/93 DE 13 DE MARÇO DE 1993

(Institui o Código de Ética Profissional dos

Assistentes Sociais e dá outras providências)

A presidente do Conselho federal de serviço Social – CFESS, no uso de suas atribuições legais e regimentais, e de acordo com a deliberação do Conselho Pleno, em reunião ordinária, realizada em Brasília, em 13 de março de 1993;

Considerando a avaliação da categoria e das entidades do Serviço Social de que o Código homologado em 1986 apresenta insuficiências;

Considerando as exigências de normatização específicas de um Código de Ética Profissional e sua real operacionalização;

Considerando o compromisso da gestão 90/93 do CFESS quanto à necessidade de revisão do Código de Ética;

Considerando a posição amplamente assumida pela categoria de que as conquistas políticas expressas no Código de 1986 devem ser preservadas;

Considerando os avanços nos últimos anos ocorridos nos debates e produções sobre a questão ética, bem como o acúmulo de reflexões existentes sobre a matéria;

Considerando a necessidade de criação de novos valores éticos, fundamentados na definição mais abrangente, de compromisso com os usuários, com base na liberdade, democracia, cidadania, justiça e igualdade social;

Considerando que o XXI Encontro Nacional CFESS/CRESS referendou a proposta de reformulação apresentada pelo Conselho Federal de Serviço Social;

RESOLVE:

Art. 1º – Instituir o Código de Ética Profissional do Assistente Social em anexo.

Art. 2º – O Conselho Federal de Serviço Social – CFESS, deverá incluir nas Carteiras de Identidade Profissional o inteiro teor do Código de Ética.

Art. 3º – Determinar que o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Serviço Social procedam imediata e ampla divulgação do Código de Ética.

Art. 4º – A presente Resolução entrará em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial da União, revogadas as disposições em contrário, em especial, a Resolução CFESS nº 195/86, de 09/05/1986.

Brasília 13 de março de 1993.

MARLISE VINAGRE SILVA

A.S. cress Nº 3578 7º Região/RJ

Presidente da CFESS

INTRODUÇÃO

A história recente da sociedade brasileira, polarizada pela luta dos setores democráticos contra a ditadura e, em seguida, pela consolidação das liberdades políticas, propiciou uma rica experiência para todos os sujeitos sociais. Valores e práticas até então secundarizados (a defesa dos direitos civis, o reconhecimento positivo das peculiaridades individuais e sociais, o respeito a diversidade etc.) adquiriram novos estatutos, adensando o elenco de reivindicações da cidadania. Particularmente para as categorias profissionais, esta experiência ressituou as questões do seu compromisso ético-político e da avaliação da qualidade dos seus serviços.

Nestas décadas, o Serviço Social experimentou no Brasil um profundo processo de renovação. Na intercorrência de mudanças ocorridas na sociedade brasileira com o próprio acúmulo profissional, o Serviço Social se desenvolveu teórica e praticamente, laicizou-se, diferenciou-se e, na entrada dos anos noventa, apresenta-se como profissão reconhecida academicamente e legitimada socialmente.

A dinâmica deste processo – que conduziu à consolidação profissional do Serviço Social materializou-se em conquistas teóricas e ganhos práticos que se revelaram diversamente no universo profissional. No plano da reflexão e da normatização ética, o Código de Ética Profissional de 1986 foi uma expressão daquelas conquistas e ganhos, através de dois procedimentos: negação da base filosófica tradicional, nitidamente conservadora, que norteava a “ética da neutralidade”, e afirmação de um novo perfil do técnico, não mais um agente subalterno e apenas executivo, mas um profissional competente teórica, técnica e politicamente.

De fato, construía-se um projeto profissional que, vinculado a um projeto social radicalmente democrático, redimensionava a inserção do Serviço Social na vida brasileira, compromissando-o com os interesses históricos da massa da população trabalhadora. O amadurecimento deste projeto profissional, mais as alterações ocorrentes na sociedade brasileira (com destaque para a ordenação jurídica consagrada na Constituição de 1988), passou a exigir uma melhor explicitação do sentido imanente do Código de 1986. Tratava-se de objetivar com mais rigor as implicações dos princípios mais adequadamente os seus parâmetros éticos quanto para permitir uma melhor instrumentalização deles na prática cotidiana do exercício profissional.

A necessidade da revisão do Código de 1986 vinha sendo sentida nos organismos profissionais desde fins dos anos oitenta. Foi agendada na plataforma programática da gestão 1990/1993 do CFESS. Entrou na ordem do dia com o I Seminário Nacional de Ética (agosto de 1991), perpassou o VII CBAS (maio de 1992) e culminou no II Seminário Nacional de Ética (novembro de 1992), envolvendo, além do conjunto CFESS/CRESS, a ABESS, a ANAS e a SESSUNE. O grau de ativa participação de Assistentes Sociais de todo o país assegura que este novo Código, produzido no marco do mais abrangente debate da categoria, expressa as aspirações coletivas dos profissionais brasileiros.

A revisão do texto de 1986 processou-se em dois níveis. Reafirmando os seus valores fundantes – a liberdade e a justiça social -, articulou-os a partir da exigência democrática: a democracia é tomada como valor ético-político central, na medida em que é o único padrão de organização político-social capaz de assegurar a explicitação dos valores essenciais da liberdade e da equidade. É ela, ademais, que favorece a ultrapassagem das limitações reais que a ordem burguesa impõe ao desenvolvimento pleno da cidadania, dos direitos e garantias individuais e sociais, e das tendências à autonomia e à autogestão social. Em segundo lugar, cuidou-se de precisar a normatização do exercício profissional, de modo a permitir que aqueles valores sejam retraduzidos no relacionamento entre Assistentes Sociais, instituições/organizações e população, preservando-se os direitos e deveres profissionais, a qualidade dos serviços e a responsabilidade diante do usuário.

A revisão a que se procedeu, compatível com o espírito do texto de 1986, partiu da compreensão de que a ética deve ter como suporte uma ontologia do ser social: os valores são determinações da prática social, resultantes da atividade criadora tipificada no processo de trabalho. É mediante o processo de trabalho que o ser social se constitui, se instaura como distinto do ser natural, dispondo de capacidade teleológica, projetiva, consciente; é por esta socialização que ele se põe como ser capaz de liberdade. Esta concepção já contém, em si mesma, uma projeção de sociedade – aquela em que se propicie aos trabalhadores um pleno desenvolvimento para a invenção e vivência de novos valores, o que, evidentemente, supõe a erradicação de todos os processos de exploração, opressão e alienação. É ao projeto social aí implicado que se conecta o projeto profissional do Serviço Social – e cabe pensar a ética como pressuposto teórico-político que remete para o enfrentamento das contradições postas à Profissão, a partir de uma visão crítica, e fundamentada teoricamente, das derivações ético-políticas do agir profissional.

 

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

–       Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais;

–       Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo;

–       Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis, sociais e políticos das classes trabalhadoras;

–       Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida;

–       Posicionamento em favor da eqüidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática;

–       Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças;

–       Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o constante aprimoramento intelectual;

–       Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero;

–       Articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores;

–       Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional;

–       Exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, ideal e condição física.

 

TÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1º – Compete ao Conselho Federal de Serviço Social:

a)    zelar pela observância dos princípios e diretrizes deste Código, fiscalizando as ações dos Conselhos Regionais e a prática exercida pelos profissionais, instituições e organizações na área do Serviço Social;

b)   introduzir alterações neste Código, através de uma ampla participação da categoria, num processo desenvolvido em ação conjunto com os Conselhos Regionais;

c)    como Tribunal Superior de Ética Profissional, firmar jurisprudência na observância deste Código e nos casos omissos.

  • §único – compete aos Conselhos Regionais, nas áreas de suas respectivas jurisdições, zelar pela observância dos princípios e diretrizes deste Código, e funcionar como órgão julgador de primeira instância.

 

 

TÍTULO II

DOS DIREITOS E DAS RESPONSABILIDADES GERAIS

DO ASSISTENTE SOCIAL

Art. 2º – Constituem-se direitos do Assistente Social:

a)    garantia e defesa de suas atribuições e prerrogativas, estabelecidas na Lei de Regulamentação da Profissão e dos princípios firmados neste Código;

b)   livre exercício das atividades inerentes à Profissão;

c)    participação na elaboração e gerenciamento das políticas sociais; e na formulação e implementação de programas sociais;

d)   inviolabilidade do local de trabalho e respectivos arquivos e documentação, garantindo o sigilo profissional;

e)    desagravo público por ofensa que atinja a sua honra profissional;

f)    aprimoramento profissional de forma contínua, colocando-o a serviço dos princípios deste Código;

g)   pronunciamento em matéria de sua especialidade, sobretudo quando se tratar de assuntos de interesse da população;

h)   ampla autonomia no exercício da Profissão, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais incompatíveis com as suas atribuições, cargos ou funções;

i)     liberdade na realização de seus estudos e pesquisas, resguardados os direitos de participação de indivíduos ou grupos envolvidos em seus trabalhos.

Art. 3º – São deveres do Assistente Social:

a)    desempenhar suas atividades profissionais, com eficiência e responsabilidade, observando a legislação em vigor;

b)   utilizar seu número de registro no Conselho Regional no exercício da Profissão;

c)    abster-se, no exercício da Profissão, de práticas que caracterizam a censura, o cerceamento da liberdade, o policiamento dos comportamentos, denunciando sua ocorrência aos órgãos competentes;

d)   participar de programas de socorro à população em situação de calamidade pública, no atendimento e defesa de seus interesses e necessidades.

Art. 4º – É vedado ao Assistente Social:

a)    transgredir qualquer preceito deste Código, bem como da Lei de Regulamentação da Profissão;

b)   praticar e ser conivente com condutas anti-éticas, crimes ou com base nos princípios deste Código, mesmo que estes sejam praticados por outros profissionais;

c)    acatar determinação institucional que fira os princípios e diretrizes deste Código;

d)   compactuar com o exercício ilegal da Profissão, inclusive nos casos de estagiários que exerçam atribuições específicas, em substituição aos profissionais;

e)    permitir ou exercer a supervisão de aluno de Serviço Social em instituições públicas ou privadas, que não tenham em seu quadro assistente social que realize acompanhamento direto ao aluno estagiário;

f)    assumir responsabilidade por atividade para as quais não esteja capacitado pessoal e tecnicamente;

g)   substituir profissional que tenha sido exonerado por defender os princípios da Ética Profissional, enquanto perdurar o motivo da exoneração, demissão ou transferência;

h)   pleitear para si ou para outrem emprego, cargo ou função que estejam sendo exercidos por colega;

i)     adulterar resultados  e fazer declarações falaciosas sobre situações ou estudos de que tome conhecimento;

j)     assinar ou publicar em seu nome ou de outrem trabalhos de terceiros, mesmo que executados sob sua orientação.

 

TÍTULO III

DAS RELAÇÕES PROFISSIONAIS

CAPÍTULO I

DAS RELAÇÕES COM OS USUÁRIOS

Art. 5º – São deveres do Assistente Social nas suas relações com os usuários:

a)    contribuir para a viabilização da participação efetiva da população usuária nas declarações institucionais;

b)   garantir a plena informação e discussão sobre as possibilidades e conseqüências das situações apresentadas, respeitando democraticamente as decisões dos usuários, mesmo que sejam contrárias aos valores e às crenças individuais dos profissionais, resguardados os princípios deste Código;

c)    democratizar as informações e o acesso aos programas disponíveis no espaço institucional, como um dos mecanismos indispensáveis à participação dos usuários;

d)   devolver as informações colhidas nos estudos e pesquisas aos usuários, no sentido de que estes possam  usá-los para o fortalecimento dos seus interesses;

e)    informar à população usuária sobre a utilização de materiais de registro áudio-visual e pesquisas a elas referentes e a forma de sistematização dos dados obtidos;

f)    fornecer à população usuária, quando solicitado, informações concernentes ao trabalho desenvolvido pelo Serviço Social e as suas conclusões, resguardado o sigilo profissional;

g)   contribuir para a criação de mecanismos que venham desburocratizar a relação com os usuários, no sentido de agilizar e melhorar os serviço prestados;

h)   esclarecer aos usuários, ao iniciar o trabalho, sobre os objetivos e a amplitude de sua atuação profissional.

Art. 6º – É vedado ao Assistente Social:

a)    exercer sua autoridade de maneira a limitar ou cercear o direito do usuário de participar e decidir livremente sobre seus interesses;

b)   aproveitar-se de situações decorrentes da relação Assistente Social – usuário, para obter vantagens pessoais ou para terceiros;

c)    bloquear o acesso dos usuários aos serviços oferecidos pelas instituições, através de atitudes que venham coagir e/ou desrespeitar aqueles que buscam o atendimento de seus direitos.

 

CAPÍTULO II

DAS RELAÇÕES COM AS INTITUIÇÕES EMPREGADORAS E OUTRAS

 

Art. 7º – Constituem direitos do Assistente Social:

a)    dispor de condições de trabalho condignas, seja em entidade pública ou privada, de forma a garantir a qualidade do exercício profissional;

b)   ter livre acesso à população usuária;

c)    ter acesso a informações institucionais que se relacionem aos programas e políticas sociais, e sejam necessárias ao pleno exercício das atribuições profissionais;

d)   integrar comissões interdisciplinares de ética nos locais de trabalho do profissional, tanto no que se refere à avaliação da conduta profissional, como em relação às decisões quanto às políticas institucionais.

Art. 8º – São deveres do Assistente Social:

a)    programar, administrar, executar e repassar os serviços sociais assegurados institucionalmente;

b)   denunciar falhas nos regulamentos, normas e programas da instituição em que trabalha, quando os mesmos estiverem ferindo os princípios e diretrizes desse Código, mobilizando, inclusive, o Conselho Regional, caso se faça necessário;

c)    contribuir para a alteração da correlação de forças institucionais, apoiando as legítimas demandas de interesse da população o usuária;

d)   empenhar-se na viabilização dos direitos sociais dos usuários, através dos programas e políticas sociais;

e)    empregar com transparência as verbas sob a sua responsabilidade, de acordo com os interesses e necessidades coletivas dos usuários.

Art. 9º – É vedado ao Assistente Social:

a)    emprestar seu nome e registro profissional a firmas, organizações ou empresas para simulação do exercício efetivo do Serviço Social;

b)   usar ou permitir o tráfico de influência para obtenção de emprego, desrespeitando concurso ou processos seletivos;

c)    utilizar recursos institucionais (pessoal e/ou financeiro) para fins partidários, eleitorais e clientelistas.

 

CAPÍTULO III

DAS RELAÇÕES COM ASSISTENTES SOCIAIS E OUTROS

PROFISSIONAIS

Art. 10º – São deveres do Assistente Social:

a)    ser solidário com os outros profissionais, sem, todavia, eximir-se de denunciar atos que contrariem os postulados éticos contidos neste Código;

b)   repassar ao seu substituto as informações necessárias à continuidade do trabalho;

c)    mobilizar sua autoridade funcional, ao ocupar uma chefia, para a liberação de carga horária de subordinado, para fins de estudos e pesquisas que visem ao aprimoramento profissional, bem como de representação ou delegação de entidade de organização da categoria e outras, dando igual oportunidade a todo;

d)   incentivar, sempre que possível, a prática profissional interdisciplinar;

e)    respeitar as normas e princípios éticos das outras profissões;

f)    ao realizar crítica pública a colega e outros profissionais, fazê-lo sempre de maneira objetiva, construtiva e comprovável, assumindo sua inteira responsabilidade.

Art. 11º – É vedado ao Assistente Social:

a)    intervir na prestação de serviços que estejam sendo efetuados por outro profissional, salvo a pedido desse profissional; em caso de urgência, seguido da imediata comunicação ao profissional; ou quando se tratar de trabalho multiprofissional e a intervenção fizer parte da metodologia adotada;

b)   prevalecer-se de cargo de chefia para atos discriminatórios e de abuso de autoridade;

c)    ser conivente com falhas éticas de acordo com os princípios deste Código e com erros técnicos praticados por Assistente Social e qualquer outro profissional;

d)   prejudicar deliberadamente o trabalho e a reputação de outro profissional.

 

CAPÍTULO IV

DAS RELAÇÕES COM ENTIDADES DA CATEGORIA E

DEMAIS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL

Art. 12º – Constituem direitos do Assistente Social:

a)    participar em sociedades científicas e em entidades representativas e de organização da categoria que tenham por finalidade, respectivamente, a produção de conhecimento, a defesa e a fiscalização do exercício profissional;

b)   apoiar e/ou participar dos movimentos sociais e organizações populares vinculados à luta pela consolidação e ampliação da democracia e dos direitos de cidadania.

Art. 13º – São deveres do Assistente Social:

a)    denunciar ao Conselho Regional as instituições públicas ou privadas, onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar os usuários ou profissionais;

b)   denunciar no exercício da Profissão, às entidades de competentes, casos de violação da Lei e dos Direitos Humanos, quanto a: corrupção, maus tratos, torturas, ausência de condições mínimas de sobrevivência, discriminação, preconceito, abuso de autoridade individual e institucional, qualquer forma de agressão ou falta de respeito à integridade física, social e mental do cidadão;

c)    respeitar a autonomia dos movimentos populares e das organizações das classes trabalhadoras.

Art. 14º – É vedado ao Assistente Social valer-se de posição ocupada na direção de entidade da categoria para obter vantagens pessoais, diretamente ou através de terceiros.

 

CAPÍTULO V

DO SIGILO PROFISSIONAL

Art. 15º – Constitui direito do Assistente Social manter o sigilo profissional.

Art. 16º – O sigilo protegerá o usuário em tudo aquilo de que o Assistente Social tome conhecimento, como decorrência do exercício da atividade profissional.

§único – Em trabalho multidisciplinar só poderão ser prestadas informações dentro dos limites do estritamente necessário.

Art. 17º – É vedado ao Assistente Social revelar sigilo profissional.

Art. 18º – A quebra do sigilo só é admissível, quando se tratarem de situações cuja gravidade possa, envolvendo ou não o fato delituoso, trazer prejuízo aos interesses do usuário, de terceiros e da coletividade.

§único – A revelação será feita dentro do estritamente necessário, quer em relação ao assunto revelado, quer em grau e número de pessoas que dele devam tomar conhecimento.

 

CAPÍTULO VI

DAS RELAÇÕES DO ASSISTENTE SOCIAL COM A JUSTIÇA

Art. 19º – São deveres do Assistente Social:

a)    apresentar à Justiça, quando convocado na qualidade de perito ou testemunha, as conclusões do seu laudo ou depoimento, sem extrapolar o âmbito da competência profissional e violar os princípios éticos contidos neste Código;

b)   comparecer perante a autoridade competente, quando intimado a prestar depoimento, para declarar que está obrigado a guardar sigilo profissional nos termos deste Código e da Legislação em vigor.

Art. 20º – É vedado ao Assistente Social:

a)    depor como testemunha sobre situação sigilosa do usuário de que tenha conhecimento no exercício profissional, mesmo quando autorizado;

b)   aceitar nomeação como perito e/ou atuar em perícia quando a situação não se caracterizar como área de sua competência ou de sua atribuição profissional, ou quando infringir os dispositivos legais relacionados a impedimentos ou suspeição.

 

TÍTULO IV

DA OBSERVÂNCIA, PENALIDADES, APLICAÇÃO E

CUMPRIMENTO DESTE CÓDIGO

Art. 21º – São deveres do Assistente Social:

a)    cumprir e fazer cumprir este Código;

b)   denunciar ao Conselho Regional de Serviço Social, através de comunicação fundamentada, qualquer forma de exercício irregular da Profissão, infrações a princípios e diretrizes deste Código e da Legislação Profissional;

c)    informar, esclarecer e orientar os estudantes, na docência ou supervisão, quanto aos princípios e normas contidas neste Código.

Art. 22º – Constituem infrações disciplinares:

a)    exercer a profissão quando impedido de fazê-lo, ou facilitar, por qualquer meio, o seu exercício aos não inscritos ou impedidos;

b)   não cumprir, no prazo estabelecido, determinação emanada do órgão ou autoridade dos Conselhos, em matéria destes, depois de regularmente notificado;

c)    deixar de pagar, regularmente, as anuidades e contribuições devidas ao Conselho Regional de Serviço Social a que esteja obrigado;

d)   participar de instituição que, tendo por objeto o Serviço Social, não esteja inscrita no conselho Regional;

e)    fazer ou apresentar, declaração, documento falso ou adulterado, perante o Conselho Regional ou Federal.

 

Das penalidades

Art. 23º – As infrações a este Código acarretarão penalidades, desde a multa à cassação do exercício profissional, na forma dos dispositivos legais e/ou regimentais.

Art. 24º – As penalidades aplicáveis são as seguintes:

a)    multa;

b)   advertência reservada;

c)    advertência pública;

d)   suspensão do exercício profissional;

e)    cassação do registro profissional;

  • §único: Serão eliminados dos quadros dos CRESS, aqueles que fizerem falsa prova dos requisitos exigidos nos Conselhos.

Art. 25º – A pena de suspensão acarreta ao Assistente Social a interdição do exercício profissional em todo o território nacional, pelo prazo de 30 (trinta) a 90 (noventa) dias.

  • §único – A suspensão por falta de pagamento de anuidades e taxas só cessará com a satisfação do débito, podendo ser cassada a inscrição profissional, após decorridos três anos da suspensão.

Art. 26º – Serão considerados, na aplicação das penas, os antecedentes profissionais do infrator e as circunstâncias em que ocorreu a infração.

Art. 27º – Salvo nos casos de gravidade manifesta, que exigem aplicação de penalidades mais rigorosas, a imposição das penas obedecerá à graduação estabelecida pelo artigo 24.

Art. 28º – Para efeito da fixação da pena, serão considerados especialmente graves as violações que digam respeito às seguintes disposições:

Art. 3º – alínea c

Art. 4º – alínea a, b, c, g, i, j

Art. 5º – alínea b, f

Art. 6º – alínea a, b, c

Art. 8º – alínea b, e

Art. 9º – alínea a, b, c

Art. 11º – alínea b, c, d

Art. 13º – alínea b

Art. 14º

Art. 16º

Art. 17º

Parágrafo único do Art. 18

Art. 19º – alínea b

Art. 20º – alínea a, b

  • §único – As demais violações não previstas no “caput”, uma vez consideradas graves, autorizarão aplicação de penalidades mais severas, em conformidade com o Art. 26.

Art. 29º – A advertência reservada, ressalvada a hipótese prevista no art. 32, será confidencial; sendo que a advertência pública, a suspensão e a cassação do exercício profissional serão efetivadas através de publicação em Diário Oficial e em outro órgão da imprensa, e afixados na sede do Conselho Regional onde estiver inserido o denunciado e na Delegacia Seccional do CRESS da jurisdição de seu domicílio.

Art. 30º – Cumpre ao Conselho Regional a execução das decisões proferidas nos processos disciplinares.

Art. 31º – Da imposição de qualquer penalidade caberá recurso com efeito suspensivo ao CFESS.

Art. 32º – A punibilidade do Assistente Social, por falta sujeita a processo ético e disciplinar, prescreve em 5 (cinco) anos, contados da data da verificação do fato respectivo.

Art. 33º – Na execução da pena de advertência reservada, não sendo encontrado o penalizado ou se este, após duas convocações, não comparecer no prazo fixado para receber a penalidade, será ela tomada pública.

  • § Primeiro: A pena de multa, ainda que o penalizado compareça para tomar conhecimento da decisão, será publicada nos termos do art. 29 deste Código, se não for devidamente quitada no prazo de 30 (trinta) dias, sem prejuízo da cobrança judicial.
  • § Segundo: Em caso de cassação do exercício profissional, além dos editais e das comunicações feitas às autoridades competentes interessadas no assunto, proceder-se-á a apreensão da Carteira e Cédula de Identidade Profissional do Infrator.

Art. 34º – A pena de multa variará entre o mínimo correspondente ao valor de uma anuidade e o máximo do seu décuplo.

Art. 35º – As dúvidas na observância deste Código e os casos omissos serão resolvidos pelos Conselhos Regionais de Serviço Social “ad referendum” do Conselho Federal de Serviço Social, a quem cabe firmar jurisprudência.

Art. 36º – O presente Código entrará em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial da União, revogando-se as disposições em contrário.

 

Brasília, 13 de março de 1993

Marlise Vinagre Silva

Presidente do CFESS

 

 

 

 

 

 

Publicado no Diário Oficial da União nº 60, de 30/03/1993, Seção 1, págs. 4004 a 4007 e alterado pela Resolução CFESS nº 290, publicada no Diário Oficial da União de 11/02/1994.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[1] Entre as atividades desenvolvidas no período 2000/20001 destacam-se: o lançamento do GEPE com a presença da Profª Cristina Brites (PUC/SP); a realização do curso “As Possibilidades da Reflexão Ética em Kant, ministrado pela Profª Cinara Nahra (UFRN); a socialização da Tese “A Centralidade da Ética na Discussão sobre o Estado Social” da Profª Maria Alexandra M. Mustafá; a participação de membros do GEPE, na condição de palestrantes no Seminário “Ética na Contemporaneidade” (Mossoró/RN) e durante a Multiplicação do “Projeto Ética em Movimento”.

[2] A carta Internacional dos Direitos do Homem é constituída pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e seu Protocolo Facultativo. A declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada em 1948. Ver site HTTP://dhnet.org.br/diretir/deconu/onu1.html

[3] Mestra em Serviço Social pela UFPE. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética (GEPE/UFPE) e conselheira CFESS, gestão “Brasil mostra a tua cara” (1999/2002).

[4] Professora do departamento de Serviço Social da UERN. Doutoranda em Serviço Social pela UFPE e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética (GEPE/UFPE).

[5] Professora do departamento de Serviço Social da UERN Doutoranda em Serviço Social pela UFPE e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética (GEPE/UFPE).

 

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II Encontro Internacional de Ética, Pesquisa Social e Direitos Humanos

Uma atividade do GEPE em parceria com o Serviço Social Italiano

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Nasce a Presença Ética Online

Estamos criando aqui o Site da Revista Presença Ética. O objetivo do mesmo é publicar artigos que analisem criticamente os temas relativos à ética e às expressões da Questão Social, em particular aqueles que dizem respeito à área do Serviço Social brasileiro e mundial.

O site também publica estudos sobre Filosofia e Sociologia.

Em breve o público será convidado para a inauguração.

Bom passeio virtual.

Ass.: Alexandra Mustafá (coordenadora)

A Revista Presença Ética é uma publicação do GEPE (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Para visitar o site do GEPE vá ao endereço www.gepe.ufpe.biz .

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